ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
O galo no camburão
A ave que mudou – para melhor – a vida de um pedreiro no Paraná
Angélica Santa Cruz | Edição 184, Janeiro 2022
Pela primeira vez em seus 51 anos de vida, o ajudante de pedreiro Élcio Antunes da Silva vai morar em uma construção de alvenaria. Está quase lá. Faltam apenas reboco, pintura e a parte hidráulica para que os dois quartos, banheiro, sala, cozinha e lavanderia de sua nova casa fiquem prontos. Silva está ansioso. Planeja pendurar na parede da sala duas fotografias. A primeira, meio desbotada pelo tempo, mostra seus pais ainda jovens, no dia do casamento – o pai veste um terno azulado; a mãe usa véu e um vestido branco um pouco abaixo dos joelhos. A segunda foto mostra Silva segurando um galo esguio, com penas brancas e pretas. “Ele foi o responsável por isso tudo, né? Glória a Deus, vou homenagear o bicho!”, diz o pedreiro.
Em 6 de junho do ano passado, Silva foi acordado às duas da manhã por policiais militares. Foi avisado de que um vizinho havia telefonado para o 190, o número de emergência, queixando-se de que o galo cantava alto demais, madrugada adentro, todos os dias. O barulho acontecia no miolo da Vila Santa Terezinha, em Ivaiporã, município de 32 mil habitantes do Paraná. Como o galo estava no perímetro urbano, informaram os policiais, a cantoria configurava “perturbação do sossego”. A ave foi apreendida. “Fui buscar o bicho, que ficava no quintal com três galinhas. Amarraram as patas dele, botaram no camburão. Foi preso, né? Um constrangimento”, recorda Silva, que precisou ainda assinar um termo circunstanciado, que registra infrações de menor potencial ofensivo.
O galo foi levado para a 54ª Delegacia Regional de Polícia de Ivaiporã e caiu nas garras da burocracia. Às oito da manhã, a bióloga Denise Kusminski, diretora do departamento municipal de Meio Ambiente e Serviços Urbanos, recebeu um telefonema de um policial de plantão, comunicando que o animal fora detido. “De acordo com o plano diretor da cidade, é atribuição do nosso setor cuidar disso. Fomos atrás de um lugar para deixá-lo sob custódia”, conta a bióloga.
Acabaram levando o bicho para um pequeno galinheiro de madeira na casa de um funcionário municipal. Ali, foi mantido a portas fechadas, ao lado de uma galinha, até ser resgatado por um comerciante que frequenta a mesma igreja evangélica que Silva, a Assembleia de Deus. Compadecido com a história, ele deu 200 reais para o pedreiro em troca do galo e prometeu deixar a ave em uma chácara onde poderia “cantar à vontade”.
A essa altura, a foto do galo preso no camburão, feita por um curioso, assim que chegou à delegacia, começou a viralizar. O bicho virou memes em série. Montagens hilárias o mostravam usando tornozeleira eletrônica, algemado, vestindo macacão laranja, solto por Gilmar Mendes, cantando no The Voice Brasil. A prisão virou notícia. “Veio repórter de televisão, de jornal, veio tudo”, conta Kusminski.
Silva morava em uma precária casa de madeira com resquícios de uma antiga pintura em azul, móveis quebrados e montes de objetos que ele achava nas ruas. Tocada pela situação do pedreiro, a bióloga aproveitou a repercussão do caso e fez uma vaquinha virtual com o título: “Ajude a melhorar a casa do dono do Galo de Ivaiporã.” Estipulou uma meta de 110 mil reais. A campanha conseguiu 72 apoiadores e arrecadou 3 725 reais.
Mas a maré virou a favor de Silva. “A mobilização para ajudá-lo se transformou em uma brincadeira de amigos e foi crescendo. Resolveram leiloar o galo e acabei arrematando o bicho, em troca da doação de móveis”, diz Pedro Tecachuk, gerente da filial na cidade das Lojas MM Mercadomóveis. Dono da rede e chefe de Tecachuk, o empresário Marcio Pauliki resolveu dar um upgrade na oferta. Liberou o equivalente a 10 mil reais em mobília e eletrodomésticos para Silva. Em troca, ficou com o galo.
Enquanto ocorria o leilão, outras empresas passaram a anunciar suas contribuições nas redes sociais – às vezes em eventos que contavam com a presença de Silva e do galo. A rede Comercial Ivaiporã doou o material de construção. A loja Formigão deu as tintas. A OL Construtora entrou com o pagamento dos pintores. E o dinheiro arrecadado na vaquinha virtual foi usado para pagar a mão de obra da construção. O pedreiro virou hóspede em uma chácara fora da cidade, enquanto sua antiga casa era colocada abaixo. O terreno foi aplainado, e a obra começou. Até hoje, Silva mal consegue acreditar em sua sorte grande.
O galo também saiu diferente da experiência. Antes era arredio e ciumento, colocava para correr os rivais que passavam por baixo da cerca do quintal de Silva para se aproximar das galinhas. De tanto passar pelo colo de humanos, virou um bicho dócil. Depois de uma enquete feita por um site de notícias, chegou a ser batizado de Galvão Bueno. O apelido não pegou – e ele continua conhecido como Galo de Ivaiporã. Hoje mora em um santuário na cidade de Ponta Grossa, mantido pela cadeia de Lojas MM. E vai virar mascote da rede nas próximas campanhas publicitárias. Tem fama de pé quente.
Queixas sobre aves que cacarejam demais são um clássico da disputa entre vizinhos, especialmente nas cidades pequenas e médias. Dependendo do grau de exotismo, vão parar no noticiário. Em julho de 2020, uma mulher de Cascavel, também no Paraná, foi notificada depois que a vizinhança reclamou que ela criava um galo e uma galinha. Conseguiu autorização para ficar com as aves, ao explicar que elas ajudavam a acalmar seu filho, um menino autista de 12 anos. Quatro meses depois, moradores de Sobradinho, no Distrito Federal, prestaram queixa contra um galo que cantava na madrugada. A história virou notícia porque os policiais foram obrigados a percorrer a vizinhança para “fazer um reconhecimento da ave”, antes de conversar com o dono.
E houve o decano de todos os galos incompreendidos, o francês Maurice, da cidadezinha de Saint-Pierre-d’Oléron. Também dedurado por vizinhos, o bicho motivou uma briga judicial de dois anos de duração, virou símbolo nacional da manutenção das tradições rurais diante da urbanização e ainda levou 140 mil pessoas a assinarem uma petição a seu favor. Em 2019, o animal ganhou autorização judicial para continuar cantando. “É um ser vivo dotado de sensibilidade”, considerou o juiz. O galo Maurice morreu no ano passado, durante a pandemia, de gripe.
Silva não sabia dessas histórias. Mas é candidato a protagonizar mais uma delas. Ele é solteiro e seus pais já morreram. Ainda assim, não pretende morar sozinho na casa tinindo de nova. Vai levar suas três galinhas – e comprou um galo novo. “Agora é um bicho vermelhão, bonito demais!”, comemora.