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    CRÉDITO: ALLAN MATIAS_2022

poesia

O silêncio não se escreve

Miriam Alves | Edição 186, Março 2022

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MALES E MALÊS

Quero falar de Malês
Não quero falar de Complexo nem do Alemão
Não estou maleando minhas emoções
Quero entrar na contramão
Voando de asas-deltas por sobre
O blindado e o canhão
A tropa que esteve no Haiti
Agora aqui invadindo vidas
Posando de mocinho nos noticiários
Cenário espetáculo
do desamparo desemprego social
apartheid à brasileira
impondo mais uma vez
a democracia racial
Na preparação eugenista do circo da Copa

Eu não quero falar de males
Quero falar de Malês
Voando de asas coloridas deltas
nas cores pretas e vermelhas

Quero exuziar
Extravasar
Destronar estas mentiras
Atirando a revolta a resistência a insistência
de continuar a viver e parir filhos na pátria que me
enjeita

 

MEMÓRIA

Bate a porta
Resvala batente
Invade janelas
Bate persiana
Desperta o que dorme
E range de raiva os dentes

 

BALA PERDIDA

A bala é sempre perdida
Dizem, sempre dizem: “A bala é perdida”

Dizem: “Sem intenção de matar”

Mas eu morro sempre
No morro nas ruas nas avenidas
Mas renasço em arrogância
Sorrisos e atitudes
Para nunca mais morrer

 

ESCREVER O SILÊNCIO

Escrever o silêncio
silêncio
silêncio não se escreve
não se ouve
é
pausa

 

CERTIDÃO DE NASCIMENTO

Nasci no Brasil
negra saída do útero da noite
coroada pela força de Iansã guerreira nagô
nas mãos a espada de Ogum
carregando na pele senda ancestral
trilhada nas forças de Omolu

Com Exu pratiquei a antropofagia da sobrevivência
mastiguei cultura europeia
engoli espinhos do racismo científico
junto com alguns sapos da democracia racial
e do racismo cordial

Banhei-me sim nas águas de Oxum
e vi ressaltar o brilho das estrelas na minha pele noite
regurgitei excessos
bebi chá das folhas de Jurema da nação Tupinambá

No tropicalismo dos meus versos
residem as minhas afropalavras
minhas afroculturas

 

ÉTICO

o eu civil
o eu poético
encontram-se
juntos fazem farra em poesia

 

CAVALGO NOS RAIOS DE IANSÃ

E me vou por entre a greta
aberta no céu
no prenúncio da tempestade

A cidade me asfixia
em concreto desamor

Eu por entre greta aberta
alço-me
entrego-me toda no colo da liberdade

 

OS PASSOS OUTRORA FIRMES

Os passos outrora firmes
outra hora agora cautela
pontas de pés suavidade
caminhar e caminhar

Lento
vai e vem

Vou
ondas de mar
outra hora voo ao céu
adeus medo


Do livro Poemas Reunidos, a ser lançado neste mês pela coleção Círculo de Poemas, das editoras Fósforo e Luna Parque.