No apartamento de Sant'Anna, só os medicamentos – espalhados por mesas e prateleiras em todos os cômodos – competem com os livros. Com 73 anos, o escritor carioca, que já foi viciado em corrida de cavalos, mora sozinho há mais de duas décadas no bairro de Laranjeiras FOTO: MILTON MONTENEGRO_2015
O sobrevivente
Sérgio Sant’Anna e a obsessão pela literatura
Bernardo Esteves | Edição 103, Abril 2015
O escritor Sérgio Sant’Anna pegou um táxi na frente de casa, na rua das Laranjeiras, e pediu ao motorista que tocasse para o Hipódromo da Gávea. Havia tirado a tarde de sábado para matar a saudade de um vício da juventude. Acompanhado do filho André, levava a tiracolo a revista com a programação dos páreos. Enquanto atravessava o túnel Rebouças, lamentou que não estivesse atualizado sobre o mundo do turfe e previu que perderia dinheiro. Sant’Anna – que completara 73 anos na antevéspera – surrupiava dinheiro do pai para as apostas em cavalos, na década de 50, quando ir ao Jockey era programa chique e na tribuna social só se admitiam homens de terno. Naquela tarde de novembro, o escritor trajava o que chamou de “roupa de briga”: uma camiseta velha, bermuda e havaianas.
No primeiro páreo, ele arriscou 10 reais na égua Reynosa e outros 10 numa dupla. Durante a primeira metade da corrida manteve a cabeça baixa, concentrado na narração, e só desviou os olhos quando os cavalos passaram na frente da tribuna. Reynosa partiu em último lugar e fez uma corrida de recuperação: chegou em segundo. O escritor assistiu ao páreo seguinte do bar do Jockey, enquanto tomava refrigerante zero e esperava uma omelete. Caretaker, a dica da revista, que ele acolheu, chegou em terceiro lugar. Sant’Anna retornou à tribuna caminhando vagarosamente e subiu os degraus com cuidado, até se acomodar na terceira fileira. Na quarta corrida da tarde, apostou 20 reais num azarão. “Chegou em penúltimo, a porra do meu cavalo”, praguejou. Só acertou um palpite no páreo seguinte, quando cravou uma dupla que não estava pagando bem – apostou 10 reais e embolsou 19. Ainda esperou uma corrida antes de dar a jornada por encerrada, a tempo de ver o jogo do Fluminense em casa. Perdeu 60 reais, mas parecia satisfeito: “Também não é um prejuízo, deu pra divertir um pouco.”
Entre um páreo e outro, Sant’Anna disse que deixou de frequentar o hipódromo ao se mudar para Belo Horizonte, aos 17 anos, mas teve uma recaída quando voltou ao Rio de Janeiro, dezoito anos mais tarde. “Vinha de manhã com a minha namorada, fazia as apostas e voltava pra casa pra ouvir as corridas pelo rádio”, disse. “Ficávamos tomando sol e bebendo uísque, esperando os páreos.”
O vício em cavalos é um traço que o autor emprestou a Carlos Santeiro, protagonista de Um Romance de Geração, livro que ele lançou em 1981, pouco depois do retorno ao Rio. “A história da minha vida é eu bebendo aqui neste cubículo e os cavalinhos correndo o meu destino lá no hipódromo”, dizia o protagonista, ele também um escritor recém-chegado de Minas Gerais que buscava se afirmar no Rio.
“Sabe por que parei de vir ao Jockey?”, perguntou Sant’Anna, enquanto fitava o placar de apostas. “Nem foi pelo dinheiro que eu estava perdendo. Foi pelo tempo. Disse a mim mesmo: ou viro escritor ou viro um viciado.” Com o pôquer foi a mesma coisa. “Parei com tudo pela literatura.”
Em agosto de 2014, Sérgio Sant’Anna lançou seu 18º livro, O Homem-Mulher – uma coletânea de contos, gênero que o consagrou e com o qual ele é mais identificado, embora também tenha escrito romance e poesia.
O conto que dá título ao livro relata em cinco páginas uma transa de Carnaval em que um ator de teatro amador vestido de mulher tira a virgindade de uma odalisca de 16 anos. A excitação do protagonista ao usar vestido e calcinha funciona como pano de fundo para a história, mas se torna um traço essencial do personagem no último conto, que retoma a trama inicial. Em “O homem-mulher II”, o ator se transforma num crossdresser em tempo integral e assume a direção de uma trupe, com a qual leva a cabo um experimento de dramaturgia radical. A história põe em primeiro plano uma fantasia recorrente na obra de Sant’Anna, povoada de personagens masculinos que se excitam ao provar um vestido da mulher ou da irmã.
O sexo, praticado ou sugerido em mais de metade dos dezenove contos, é frequentemente descrito com riqueza de detalhes. Leitores fiéis encontrarão outros elementos familiares: o humor sutil, a reflexão metalinguística, o flerte com a experimentação, a violência no limite do insuportável.
E há o diálogo com as artes plásticas – outro aspecto marcante na obra do escritor –, já evidenciado pela escolha da capa, que reproduz uma escultura de Li Zhanyang. Exposta numa mostra de arte chinesa contemporânea no Rio, a obra representa uma jovem tentando seduzir Buda. Ao vê-la, o escritor disse ter vivido “uma experiência estética muito forte”. Voltou a visitá-la várias vezes e lhe dedicou um texto em tom ensaístico que devaneia sobre o que passa na cabeça do Buda, imaginando se ele cede ou não à tentação da moça.
O Homem-Mulher também inclui contos de registro delicado, num contraponto à lascívia que domina o livro. Ao sexo urgente do texto de abertura, segue-se o relato da paixão algo platônica de um cinquentão por uma vendedora de lencinhos no Largo do Machado. A mesma doçura romântica reverbera em “Eles dois”, a história da plenitude de dois amantes que dividem uma casa num subúrbio de Belo Horizonte.
A crítica foi receptiva. A obra “não deixa dúvida quanto à continuidade de Sérgio Sant’Anna na linha de frente do conto em língua portuguesa”, registrou em O Globo o escritor José Luiz Passos, professor na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Em resenha para a Folha de S.Paulo, Alcir Pécora, da Universidade Estadual de Campinas, elogiou as cenas de sexo (“Raras vezes se escreveu ‘boceta’ em português com tanta elegância”) e surpreendeu-se com a capacidade do autor de renovar seus recursos narrativos “mesmo no conto, onde sua mestria está bem estabelecida desde meados dos anos 70”.
Por telefone, Pécora disse considerar as descrições das obras de arte o ponto alto de O Homem-Mulher. O professor afirmou que poucos dominam como Sant’Anna a técnica de dar vida a uma tela ou a uma escultura por meio da descrição minuciosa, procedimento que os especialistas chamam de écfrase. “Ele consegue produzir uma narrativa intensíssima em torno de telas fixas, consegue fazer o quadro falar”, disse o crítico. A força de Sant’Anna deriva, segundo ele, da capacidade de observação e do controle dos registros de linguagem. “Acho que o Sérgio é o cara que melhor faz frases no Brasil”, sustentou Pécora.
Sérgio Sant’Anna tem o rosto comprido e ovalado, com olheiras marcadas e sobrancelhas anárquicas e expressivas. Os cabelos, bem curtos, só há pouco começaram a branquear. Quando ri, deixa à mostra os incisivos separados que lhe dão um ar meio sinistro. O olho direito, opaco, só consegue enxergar uma luz tênue devido a um glaucoma. Sant’Anna vive de cabeça caída, com o queixo apontando para o peito, como se estivesse sempre consultando o celular (que ele não tem). A postura combalida é agravada pelos problemas circulatórios que ele enfrenta, em decorrência de meio século de tabagismo irrefreado. Nos últimos anos, o escritor se submeteu a algumas cirurgias para desobstruir as artérias. Embora aparente ter constituição sólida, ele se locomove com dificuldade, com o corpo recurvado e a cadência mecânica.
Sant’Anna é uma figura folclórica em Laranjeiras, onde mora há quase quarenta anos num apartamento modesto de três quartos. Vive sozinho há mais de duas décadas. Seus dois filhos – André, de 50 anos, e Paula, de 45 – chegaram a morar com ele, mas hoje estão cada um numa cidade: o mais velho em São Paulo, a filha em Ubatuba, no litoral paulista. O apartamento de Sant’Anna é de solteirão, com decoração desleixada, copos desencontrados e pouca comida fresca na geladeira. “Só sei fazer ovo frito e café”, disse ele, com sua voz anasalada de sotaque pronunciado.
Formado em direito, Sant’Anna fez carreira como funcionário do Tribunal Regional do Trabalho, onde trabalhou em regime de meio período dando pareceres jurídicos em processos administrativos, até se aposentar por tempo proporcional nos anos 90. A aposentadoria confortável – que ele complementa com uma parcela magra de direitos autorais a cada três meses e eventuais freelances de textos na imprensa ou participações em eventos literários – permite que passe seus dias a ler, escrever e ver tevê.
Numa mesinha na sala de estar, convivem um relógio de plástico com o escudo do Fluminense, uma pilha instável de papéis e um aparelho de fax. Numa das paredes estão pendurados retratos dos filhos e da neta, além de uma velha foto de uma equipe perfilada de pé. “É o time amador do Fluminense de 1932. Meu tio era o goleiro.” O escrete fizera bonito na segunda divisão do campeonato carioca daquele ano (a equipe profissional disputara a primeira). O sobrinho não chegou a conhecer o irmão da mãe, um mito na família. “Era acadêmico de medicina e morreu aos 25 anos, de tuberculose.”
Foi outro tio materno quem iniciou Sant’Anna em assuntos de futebol. O jornalista esportivo Luiz Andrade havia sido diretor de imprensa do Fluminense e tinha livre trânsito no clube. Apresentou vários jogadores a Sérgio e a seu irmão mais velho, Ivan, e passou a levá-los a todos os jogos do Fluminense. “Naquela época o time jogava em três divisões no mesmo dia: juvenil, aspirante e profissional. Víamos as três partidas.” Frequentavam não só o Maracanã, como também os estádios de várzea onde atuavam os times menores. Iam ver o Bangu em Moça Bonita, o Olaria na rua Bariri e o Madureira na Conselheiro Galvão.
As andanças de menino pelos campos do subúrbio inspiraram o universo de “Páginas sem Glória”, novela de 108 páginas sobre o filho de uma família abastada que vira um jogador talentoso e descompromissado do Fluminense e do Bonsucesso. Não é sua única narrativa sobre futebol. O conto “No último minuto”, publicado em seu segundo livro, de 1973, narra o pesadelo cubista do goleiro que revive em vários ângulos o frango que tomou no final da partida e custou o título à equipe. “Na boca do túnel”, de um volume de 1982, traz o relato em primeira pessoa do treinador do São Cristóvão que enfrenta um time grande no Maracanã e toma de 7 a 1.
O aposento em que Sant’Anna trabalha é mobiliado com uma cama de casal, uma escrivaninha, uma cadeira de balanço de palhinha e uma arca de madeira que também serve de banco, além de uma estante ampla que ocupa uma das paredes de fora a fora. O ritual de escrita é sempre o mesmo: ele senta à cadeira de balanço, apoia os pés na arca e escreve sobre as próprias pernas, valendo-se de uma pasta como suporte. As folhas brancas de tamanho A4 são preenchidas de um só lado. Ele escreve com caneta esferográfica azul, em linhas nem sempre regulares. Carpinteiro, pode passar dias escrevendo e reescrevendo um mesmo parágrafo, até se dar por satisfeito – só então transcreve no computador, que fica no quarto de dormir.
Numa tarde de janeiro, sobre a cama do escritório viam-se versões anteriores do texto em que ele estivera trabalhando, contos largados pela metade, anotações esparsas, cadernos de jornal, livros, pastas, um pacote de folhas ainda na sacola e incontáveis canetas, que ele tem mania de comprar a cada vez que passa por uma banca ou papelaria.
O quarto de escrever é aquele que seu filho André ocupou por onze anos, quando morou com o pai, em parte da adolescência e da juventude. André começou a trabalhar como redator numa agência de publicidade, tocando em paralelo a carreira de músico. Depois de uma temporada em Berlim, casou-se com uma artista plástica e designer alemã; de volta ao Brasil, os dois se estabeleceram em São Paulo, onde André começou a trabalhar também com marketing político.
Quando ainda vivia no Rio, uma decepção amorosa havia levado o rapaz a arriscar seu primeiro texto de ficção. A escrita não foi adiante, mas anos depois, ao deparar-se com o esboço, ele teve vontade de retomar o que iniciara. Lançou-se como escritor em 1998, com o livro Amor, publicado pela Dubolso, editora mineira de Sebastião Nunes, um velho amigo de seu pai. Sexo saiu no ano seguinte pela carioca 7Letras, dando-lhe mais visibilidade na imprensa e no circuito literário. André Sant’Anna escreveu outros quatro livros desde então, os mais recentes editados pela Companhia das Letras.
Criada pela mãe em Ubatuba, a irmã de André, Paula Muniz – que adotou o sobrenome materno –, virou surfista e competiu profissionalmente na juventude. Quando terminou o ensino médio, foi morar com o pai para estudar desenho industrial e voltou ao fim do curso a Ubatuba, onde é responsável pela comunicação visual de uma empreiteira. Casou com um fotógrafo e hoje vive no alto de um bairro afastado, numa casa ampla com três cachorros e vista para o mar. O casal tem uma filha, Maria, de 9 anos; a única neta de Sérgio tem o mesmo rosto oblongo do avô e algo dele no olhar.
A lembrança que os filhos guardam do período em Laranjeiras é a do pai trancado no quarto, escrevendo – para ele, uma atividade associada ao sofrimento. “Nunca vi meu pai feliz escrevendo”, me disse Paula quando a encontrei em Ubatuba. “Ele sempre falou do ato de escrever como muito doloroso e angustiante”, contou André num bar ao lado de sua casa. “O único momento bom era quando o livro saía, mas depois voltava a angústia.”
Com o passar dos anos, a dedicação à escrita foi ocupando mais tempo na vida do pai. “O Sérgio de hoje é um ermitão, não gosta de sair”, disse André. “A vida interior dele é muito mais vasta que a exterior.” Essa é também a impressão de Paula quando o pai vai visitá-la. Ele às vezes lhe parece introspectivo e desligado da realidade. “Depois que vai embora, diz que achou ótimo. A vivência da viagem vem depois, na forma de literatura”, disse a filha. “Se lhe tirarem a literatura, ele não é ninguém.”
Quando André ou Paula vão ao Rio de Janeiro, geralmente se hospedam na casa do pai, no quarto de escrever. Para tanto, o anfitrião interrompe sua rotina e recolhe as camadas de papel que cobrem a cama. Vê-se dividido entre a alegria de ter os filhos por perto e a aflição de não poder escrever.
Sérgio Andrade Sant’Anna e Silva nasceu no Rio de Janeiro em 30 de outubro de 1941. O pai, o economista Sebastião de Sant’Anna e Silva, era o braço direito de Roberto Campos e fez carreira no serviço público. Sérgio é o caçula dos três filhos que teve com a mulher, Maria José – antes vieram Sonia e Ivan. Moraram em Botafogo até 1959, quando o presidente Juscelino Kubitschek nomeou o patriarca diretor financeiro da Usiminas e a família se mudou para Belo Horizonte.
Na capital mineira, Sant’Anna casou com a primeira namorada séria que teve, Mariza Muniz, da sua turma de rua no bairro São Pedro. Assim como a primogênita Sonia, Mariza era bandeirante e começou a frequentar a casa da família. “Sérgio ficava trancado no quarto lendo Sartre. Vinha, almoçava, não falava nada e voltava. Aquilo me encantava”, ela me disse quando a entrevistei no início de fevereiro. Namoraram por dois anos e casaram conforme mandavam os costumes à época, ele aos 21 anos e ela virgem aos 24. Mariza, que estudou artes plásticas e piano, frequentava galerias e exposições com o companheiro, cujo interesse pelo tema se deve em parte a sua influência.
Sant’Anna ainda cursava direito na Universidade Federal de Minas Gerais quando se casou. Na faculdade, começou a andar com uma turma que gravitava em torno do Suplemento Literário, um encarte que circulava aos sábados no Minas Gerais, o diário oficial do Estado. A publicação havia sido criada em 1966, sob a direção do contista Murilo Rubião. Uma geração de jovens aspirantes ao ofício de escritor batia ponto regularmente na redação do Suplemento – nomes como Luiz Vilela, Humberto Werneck, Jaime Prado Gouvêa, Adão Ventura ou Sebastião Nunes. “Sérgio trabalhava ali perto, dava umas quatro da tarde e ele subia pro Suplemento”, disse Gouvêa, que desde 2009 dirige a publicação.
Ao fim da tarde, a conversa era invariavelmente transferida para um boteco nas imediações, muitas vezes a Cantina do Lucas, ponto de convergência da boemia belo-horizontina. Sant’Anna costumava pedir uísque nacional. O poeta e editor Sebastião Nunes relembrou numa tarde recente a estratégia do amigo para conciliar a rotina etílica com a vida conjugal. “Sérgio chegava às seis, e às sete ligava pra Mariza dizendo que ia atrasar e só chegaria por volta das oito. Ficava lá até umas nove ou dez pelo menos.”
Em Belo Horizonte, Sant’Anna também circulou com amigos do meio musical, ao lado de Milton Nascimento, Fernando Brant e a turma do Clube da Esquina. Iam a um outro bar, o Saloon, mas só de segunda a quinta. “Na sexta dávamos lugar aos amadores”, contou Brant, que disse ter se inspirado naqueles dias para compor a letra de Saudade dos Aviões da Panair (Conversando num Bar).
Como muitos dos seus amigos, Sant’Anna andava rabiscando algumas histórias. Começou a levar a sério a ideia de escrever depois que tirou segundo lugar num concurso de contos na faculdade, com júri ilustre: Affonso Ávila, Ildeu Brandão e Murilo Rubião. “O conto apresentava uma série de lugares-comuns, mas tinha força dramática”, disse o autor. Falava de um rapaz paranoico que foi tirar satisfação com um sujeito que parecia de olho em sua namorada e descobriu que o homem era cego.
Seus primeiros contos saíram em publicações que veiculavam a produção da nova geração, como a coletânea Porta:, a revista Estória e o próprio Suplemento Literário. A estreia em livro veio com
O Sobrevivente, coleção de narrativas breves lançada em 1969 por conta própria, bancada com recursos do pai. O volume reunia narrativas introspectivas e de pouca ação, que Sant’Anna hoje renega. “Eram histórias subjetivas, imaturas”, avalia. “O livro inteiro não tem um diálogo sequer.” (Exagero dele: o discurso direto aparece num par de contos, não por acaso os mais movimentados do conjunto.) Mas já é possível identificar ali temas aos quais Sant’Anna retornaria em sua escrita mais madura: “Assassino” conta a história de um homem que mata uma mulher a pedradas, “como num sonho mau”, e “Didática” relata o desejo contido de um professor de inglês por suas alunas de 14 anos.
Após a estreia, Sant’Anna conseguiu uma bolsa da Fundação Ford para participar de um programa internacional de escritores promovido pela Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Durante um ano, o carioca conviveu com dezenas de autores do mundo inteiro, foi a Nova York, visitou museus, descobriu o jazz e o teatro de vanguarda, bebeu e fumou maconha à vontade. Ao evocar a viagem quase meio século depois, disse que foi o melhor período de sua vida. “Foi uma abertura para o mundo.”
Sant’Anna passou sozinho a maior parte da temporada em Iowa; os filhos ficaram em Belo Horizonte, e sua mulher se juntou a ele apenas por alguns meses. Mariza situa naquele período o ponto em que o então marido abraçou de vez a carreira de escritor.
Seu segundo livro saiu por uma editora de prestígio, a Civilização Brasileira. Lançado em 1973, Notas de Manfredo Rangel, Repórter (A Respeito de Kramer) já traz um universo mais familiar para o leitor de Sant’Anna. Aparece o flerte com a transgressão sexual, numa história que narra um incesto entre irmãos, bem como o diálogo com as artes, no relato da visita de turistas a um museu ou num conto inspirado pela capa de um disco de Thelonious Monk. O contista preza em especial “O espetáculo não pode parar”, em que um ator reflete sobre a peça que está encenando. “Esse conto seria bem publicável hoje em dia”, disse ele. “Ali já tem uma maneira totalmente diferente de ver a literatura.”
O projeto de escrita passou a ditar o rumo de sua vida. Alguns colegas estavam deixando Belo Horizonte para trabalhar em redações do Rio ou de São Paulo. Ele próprio foi chamado pelo Jornal da Tarde, o vespertino do Grupo Estado, mas declinou. “Eu não conseguiria fechar um jornal e depois fazer literatura em casa”, justificou-se. Preferiu manter o emprego na Justiça do Trabalho, inscrevendo-se assim numa extensa linhagem de escritores que ganharam a vida como funcionários públicos. Na repartição, dedicava parte do expediente à literatura. Simulacros – seu quarto livro, de 1977 – “foi todinho escrito no tribunal, em horário de trabalho e com papel timbrado, o que configura crime de peculato”, declarou o autor ao Diário de Natal, em 1997. “Mas tenho a impressão que, depois de vinte anos, esse crime já prescreveu”, emendou.
Sem largar o emprego no tribunal, em 1972 Sant’Anna começou a ensinar técnicas de redação na Escola de Comunicação da PUC mineira. Ali teve uma aluna que deu um cavalo de pau em sua vida: Letícia Dolabela, por quem se apaixonou e com quem iniciou um relacionamento conturbado. Em 1975 seu casamento chegou ao fim e Mariza decidiu ir viver com os filhos em Ubatuba, onde seu pai tinha uma casa desde os anos 50.
Sant’Anna e Letícia foram morar juntos em Venda Nova, distrito afastado do Centro de Belo Horizonte, que nos idos de 1970 mais lembrava um vilarejo do interior. Alugaram uma casa com um pequeno quintal. Saíam pouco, dedicavam-se à jardinagem e à noite gostavam de observar o céu estrelado. Essa rotina serviu de base para o conto “Eles dois”, do último livro do autor (em respeito à ex-amante, já morta, ele deixou de fora as brigas constantes e violentas do casal). Antes disso, Letícia já havia inspirado “O dueto”, de 1982, que fala do início do relacionamento, quando o contista ainda estava casado.
Numa tarde de janeiro, pedi para ver fotografias antigas. O escritor trouxe uma caixa com dezenas de fotos, a maioria delas feitas com a câmera de Letícia. “Olha a rua em que a gente morava”, disse ele, indicando uma imagem de Venda Nova. “Era de terra, num lugar modesto.” Mais adiante, mostrou um altar que a namorada erguera ao diabo, em casa. “Doideira aí é pouco.” O contista não é religioso, mas por via das dúvidas botou uma imagem de são Sérgio logo atrás do totem demoníaco. “Eu tinha medo dessa porra.”
Jaime Prado Gouvêa lembrou que Sant’Anna ficou “meio desgovernado” quando a relação com Letícia terminou. “Você está perdido aqui, por que não vai pro Rio?”, sugeriu Gouvêa. O carioca conseguiu uma transferência na Justiça do Trabalho e em 1977 voltou para sua cidade natal. A ex-namorada foi atrás dele, e os dois chegaram a viver juntos num apartamento no Alto da Glória – era ela sua companheira de turfe, sol e uísque –, mas a história já não tinha futuro.
Sant’Anna teve outras namoradas depois de Letícia, mas nunca mais dividiu o teto com nenhuma. Uma relação estável de quase dez anos com a artista plástica Cristina Salgado, cada um no seu canto (moravam a um quarteirão de distância), foi o mais perto de que chegou de um casamento – instituição retratada como “o tédio da alma e da carne” no romance Simulacros, e como “o doce manto da ilusão” num poema de Junk-Box, de 1984.
O escritor retomou o trabalho de professor, dessa vez na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dava aulas “muito livres”, que em geral partiam de notícias de jornal ou anúncios publicitários para discutir linguagem, literatura e história da arte. Era idolatrado pelos estudantes (consta que as alunas o apelidaram de “Deus”). Gostava de dar aulas e dizia que se identificava como professor nos hotéis em que se hospedava. Ficou na UFRJ até 1990, quando decidiu manter apenas o emprego no tribunal.
Se em Belo Horizonte muitos de seus amigos eram do meio literário, no Rio ele passou a andar com gente do teatro e das artes plásticas. Aproximou-se do diretor paulistano Antunes Filho e de Bia Lessa, então atriz e braço direito de Antunes. Quando decidiu se lançar na direção teatral, Bia procurou Sant’Anna em busca de um texto. O escritor lhe passou a versão preliminar de A Tragédia Brasileira, uma peça que estava escrevendo. Híbrido de romance e teatro, misturava trechos em prosa com diálogos escritos com rubricas para atores e diretores. Seu ponto de partida era a cena rodriguiana de uma virgem de 12 anos atropelada num fim de tarde em Botafogo. Previa uma encenação com explosões, brilhos fulgurantes e imagens oníricas. “Era completamente não montável”, disse a diretora num café em Ipanema. Mas Bia aceitou o desafio – “essa é a dificuldade que me interessa” – e montou um texto em construção, que o autor ia aprimorando em paralelo. A peça estreou em 1984, no Teatro Delfim, com o título Ensaio nº 1 (a diretora tinha resolvido não dar nome a seus espetáculos). “Foi um fracasso retumbante, mas juntou um punhado de fãs.” A Tragédia Brasileira só chegou às livrarias em 1987, pela editora Guanabara. Está entre os livros mais inovadores de Sant’Anna, que até hoje o considera seu preferido.
A proximidade com o teatro e as artes deixou marcas duradouras no escritor. Se alguém o questiona sobre suas maiores influências, ele em geral costuma citar o encenador Bob Wilson, que ele conheceu em Iowa, e o artista Marcel Duchamp, talvez seu maior ídolo intelectual: “Duchamp me enche de ideias a cabeça”, disse. “Quando leio sobre ele fico impregnado de arte, de vontade de fazer.” Mas não se esquiva de citar colegas que admira, como João Gilberto Noll ou Rubem Fonseca. Seu preferido é Dalton Trevisan, que ele disse ter compreendido tempos depois de ler pela primeira vez. “Não há quem escreva contos com a mesma verve”, afirmou. “Ele é o melhor contista do mundo.”
Dos dezoito livros que Sérgio Sant’Anna publicou, nove reúnem narrativas curtas ou médias (ou dez, a depender de como se considere O Livro de Praga, que tem estrutura de romance, mas é apresentado como um conjunto de relatos). Muitos desses textos são de classificação capciosa, em algum lugar entre o conto e a novela. Há ainda os livros de gênero híbrido, que misturam prosa e teatro, como Um Romance de Geração e A Tragédia Brasileira. Mesmo suas narrativas em prosa mais extensas são complicadas de enquadrar. Um Crime Delicado, com tamanho de novela (132 páginas), foi vendido como romance; já Amazona, que tem fôlego de romance (231 páginas), se apresenta como novela. Ambos levaram o Jabuti na categoria em que se autodenominam. Sant’Anna tem outros dois quelônios por contos: O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de 1982, e O Voo da Madrugada, de 2003 (seu quinto Jabuti, por Páginas sem Glória, foi anunciado e depois revogado, pois uma das três narrativas reunidas não era inédita em livro).
O escritor, que já declarou se dar melhor com formas breves, hoje prefere não ser identificado com um só gênero. “Não gosto da palavra contista. Prefiro ser chamado de ficcionista, não quero ficar aprisionado a nada”, disse.
No ano 2000, a editora Objetiva lançou Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, com seleção de Italo Moriconi, que escolheu três textos de Sant’Anna – só Rubem Fonseca e Clarice Lispector, com quatro cada, foram mais contemplados. Para o organizador – que é também escritor e professor de literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro –, Fonseca e Lispector são as matrizes de duas vertentes da prosa contemporânea brasileira, que ele chama de linhagem masculina e feminina, e não têm necessariamente a ver com o gênero biológico do escritor. Sobre Sant’Anna, que ele situa na linhagem masculina, afirmou: “O homem é um fabricador de obras-primas, tem um nível de qualidade que está sempre entre o bom e o ótimo, não raro atingindo o excepcional.”
O conto padece do estigma de ser menos prestigioso do que o romance, tido por muitos como o formato nobre da ficção. Apenas uma vez o Nobel de Literatura foi concedido a um autor associado ao gênero – a canadense Alice Munro, vencedora em 2013. No Brasil, a distinção mais vultosa das letras – o Prêmio São Paulo de Literatura, no valor de 200 mil reais – só aceita a inscrição de romances.
Em 2010, a agente literária Luciana Villas-Boas, então editora da Record, afirmou que achava um equívoco que os escritores se lançassem com livros de contos, poemas ou crônicas – sendo gêneros sem público, associariam os estreantes ao fracasso de vendas. Ainda que a declaração até hoje suscite reações acaloradas dos defensores das narrativas breves, os editores de fato parecem enxergar um potencial mercadológico restrito para o formato. “Contos ou novelas vendem menos que romance”, disse Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, que publica os livros de Sant’Anna desde 1989.
O caso de Sérgio Sant’Anna parece corroborar a tese. Aclamados pela crítica, seus livros nunca foram sucesso de livraria. Segundo números da editora, sua obra de maior sucesso foi O Monstro, com 14 300 exemplares vendidos, o único de seus livros a superar a barreira das 10 mil cópias (foi adotado em vestibulares pelo país, segundo me disse o autor). A Senhorita Simpson, seu primeiro livro pela Companhia, vendeu 9 mil, e O Voo da Madrugada, talvez sua obra mais elogiada pela crítica, vendeu 7 mil. A média de vendas de seus lançamentos é de 4 200 exemplares.
Luiz Schwarcz comparou os dados com o desempenho de romances recentes editados pela Companhia. Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera, chegou a 28 mil exemplares; Nove Noites, de Bernardo Carvalho, passou dos 36 mil, e Dois Irmãos, de Milton Hatoum, está beirando os 150 mil. O editor não se arriscou a apontar o que está por trás da discrepância. Evocou a hipótese levantada por um colega do mercado editorial, segundo a qual os leitores teriam mais dificuldade com os contos por ter de recomeçar a leitura a cada narrativa, como se isso lhes exigisse um esforço maior. “Não sei se essa é a interpretação correta, mas o fato é que as pessoas seguem mais facilmente uma história única.”
Sérgio Sant’Anna já teve livros lançados na Alemanha, Argentina, Chile, Israel, Itália, Macedônia, Portugal e República Tcheca (em março, o francês se juntou à lista de idiomas em que se pode ler o escritor, com o lançamento de Un Crime Délicat). A lista talvez seja mais extensa: o autor não tem um controle estrito das traduções já publicadas pelo mundo – a memória está perdida numa gaveta em que ele vai jogando contas, contratos e documentos variados. As traduções estão espalhadas aleatoriamente na estante do quarto de escrever. Quando lhe pedi que me mostrasse algumas, o autor passou um tempo procurando e foi tirando o que encontrava em prateleiras variadas. Dentre os volumes, chamavam a atenção edições de Amazona em italiano e alemão (esta última em capa dura e edição de bolso), com mulheres nuas na capa.
O escritor elogiou a edição argentina de Un Crimen Delicado, cuja capa retrata o corpo nu da mulher manca por quem o protagonista se apaixona. A iniciativa do lançamento foi do escritor argentino César Aira, que se encarregou da tradução. Por e-mail, Aira disse que leu o livro por recomendação de uma amiga, ficou encantado e o indicou à editora Beatriz Viterbo, que também lançou O Monstro, sempre com a tradução de Aira.
“As virtudes de escritor de Sérgio saltam aos olhos: o domínio da construção, a elegância narrativa, uma melancolia nunca patética, as vozes de seus personagens”, escreveu o argentino. “Mas o que aprecio mais, certamente por motivos pessoais, é o modo como ele recria o sabor e a atmosfera do Rio. Minha saudade da cidade fica mais doída quando o leio.”
A obra de Sant’Anna vem sendo estudada pelo menos desde os anos 90, ainda que numa escala menor que a de contistas como Rubem Fonseca, Dalton Trevisan ou João Gilberto Noll. O escritor e pesquisador Luis Alberto Brandão Santos, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, foi dos primeiros a se debruçar sobre os escritos do carioca. Decidiu estudá-los no mestrado, depois de ler A Tragédia Brasileira, atraído pela elegância, inquietação existencial e desejo libertário da obra, conforme me contou numa entrevista em sua sala. “Ele acerta o tom”, disse o pesquisador. “O humor nunca é grosseiro, a provocação nunca é gratuita.”
A dissertação do professor, defendida em 1992, foi reelaborada e lançada oito anos mais tarde no volume Um Olho de Vidro, que também inclui uma entrevista com o escritor e um texto até então inédito em livro. A pesquisa aproximou professor e escritor, a ponto de este ter enviado ao outro os originais de O Monstro antes da publicação – privilégio de muito poucos. Sant’Anna também pediu a ajuda de Brandão Santos para a antologia de contos que publicaria em 1997. A “amizade literária” estabelecida entre ambos dissipou no professor o desejo de escrever sobre a obra do carioca. “Meu olhar crítico se desarmou.”
O pesquisador discerne traços que distinguem momentos da produção do autor. “Tem o Sérgio tipicamente anos 70, mais experimental, dentro da tradição tropicalista, meio glauberiano”, disse o estudioso. “Nos anos 80 ele fica menos galhofeiro e com uma ironia mais fina, e a provocação começa a se tornar menos explícita.” O movimento que se inicia a partir dos anos 90 e que se estende até hoje consolidou o que ele chamou de “uma espécie de pacificação da verve vanguardista e tropicalista”. Brandão Santos vê certa similitude entre os livros mais recentes, e se pergunta se o autor não estaria se tornando repetitivo. “É como se ele estivesse fazendo algo que já fez com grande impacto num outro momento, só que agora soa como uma piada já contada”, afirmou. Mas o estudioso se animou com o último lançamento, que resgata um jogo com a diversidade de registros. “Ele continua explorando as possibilidades internas da própria narrativa.”
No dia seguinte à entrevista, Brandão Santos expôs em público algumas de suas reticências a Sant’Anna ao participar da banca de uma dissertação de mestrado sobre a dimensão cênica na obra do carioca. Na arguição que durou mais de uma hora, apontou uma banalização do tratamento da sexualidade em O Livro de Praga, um dos três estudados pela autora. “Há ali certo desejo de transgredir, mas a potência de transgressão me pareceu muito pequena”, disse o professor da UFMG. “A sensação que tenho como leitor é que a obra dele vai ficando cada vez menos obscena, talvez até pelo fato de que a sexualidade se torna mais explícita.”
Num fim de semana de janeiro, um prédio comercial de Ipanema pegou fogo. Dentre as salas afetadas estava o consultório da analista de Sérgio Sant’Anna – a mesma há mais de trinta anos. O escritor soube do ocorrido no dia em que seu pai faria 100 anos. “Esse incêndio me deu um grilo, fiquei pensando nesse negócio de tempo e morte”, disse o escritor, meio macambúzio.
Sant’Anna passou sozinho o último Réveillon. Cumpriu a superstição de escrever na virada do ano, para lhe dar um norte no ciclo que se inicia. Não sem resistir um pouco, ele se dispôs a falar sobre seu novo trabalho e chegou a ler um trecho. “É uma coisa que chama ‘O conto zero’”, anunciou, voltando do escritório com um calhamaço de folhas. “Tem muito a ver com meu passado.” A narrativa, ambientada no Rio dos anos 50, pouco antes de sua família se mudar para Minas Gerais, conta a história de um menino de 12 anos que flana pela cidade, vai ao Maracanã ou joga bola, como ele fazia na adolescência.
O ano vivido na Inglaterra enquanto o pai estudava na London School of Economics foi um período de muita proximidade com o irmão Ivan, seu companheiro de perambulações pelo underground no horário das aulas. “O conto zero” logo derivou para a experiência londrina da infância, lançando-se na descrição das escapadas da dupla para jogar numa máquina caça-níqueis. Mas Sant’Anna estava em dúvida quanto ao rumo da narrativa. “Escrevi sete páginas de Inglaterra e deu uma confusão da qual não sei como sair”, disse ele. “Quero ficar só no Rio.”
De uns anos para cá, o ficcionista começou a evocar com mais frequência os tempos de infância. Diz que pretende continuar explorando esse filão, mas não abre mão da liberdade criativa. “Me identifico muito com o protagonista do ‘Conto zero’, mas não é memória, posso chutar à vontade”, afirmou. “Tem que ter abertura para mentir e inventar.” Sant’Anna não recusa o rótulo de autoficção, termo relativamente recente com que a crítica começou a classificar esse gênero. Vê nele ao menos o mérito de desviar o foco de outro carimbo geralmente colado a sua obra. “Já não aguentava mais ouvir falar em metalinguagem, essa palavra me dá até arrepio.”
Em seus escritos sobre a infância, o menino protagonista está frequentemente ao lado do irmão – o alter ego de Ivan, um ano e meio mais velho. Foram muito ligados na adolescência e chegaram a andar com a mesma turma em Belo Horizonte, os dois de lambreta. Tomaram caminhos diferentes: Sérgio foi viver a vida de escritor e Ivan se tornou operador do mercado financeiro e aviador amador. Ivan morou fora, ganhou e perdeu muito dinheiro na Bolsa, até resolver ele também escrever livros, já aos 54 anos. Virou autor de best-sellers de ficção e não ficção, vendendo bem mais do que o irmão, embora não goze do mesmo prestígio junto à crítica.
Quando soube que eu iria procurar seu irmão, Sérgio Sant’Anna disse que não estavam se falando por causa de uma briga de Facebook. “Não estamos numa boa”, avisou. Não foi essa a impressão que ficou do encontro com Ivan, um homem de cabelos brancos e temperamento jovial, oposto ao de Sérgio – segundo uma velha piada de família, um é o maníaco, e o outro, o depressivo.
Ivan Sant’Anna contou que os dois haviam compartilhado a paixão pelo futebol, e que o tema continuou a uni-los depois que cada um enveredou para um lado. “Quando o Fluminense foi campeão brasileiro em 1970, liguei pro Sérgio em Iowa assim que cheguei do Maracanã.” Disse também que o afastamento dos dois – “não é briga”, insistiu – se deu quando o irmão começou a se interessar por literatura e andar com outra turma. “Não entendo de arte, não compreendia o que ele estava falando.” Acabaram se distanciando. “Hoje em dia somos amigos velhos, falamos só de remédios”, brincou.
Começar a escrever foi a solução que Ivan Sant’Anna encontrou para se reinventar profissionalmente. Desde o início queria fazer literatura de entretenimento. “Nunca me mirei no Sérgio, que escreve pensando na linguagem. Eu só queria ser um contador de histórias. E ser um sucesso de vendas, mesmo que fosse um insucesso de crítica.” O autor emplacou um best-seller logo de saída: Rapina, com uma trama policial ambientada no mercado financeiro, vendeu 23 mil exemplares.
Ele havia preparado para a entrevista um documento com os números de vendas de seus livros. “Escritores e editores sempre mentem quanto à vendagem”, me avisou, ao estender o papel. Seu maior sucesso foi Caixa-Preta, o relato de três acidentes envolvendo aviões brasileiros, com 46 500 exemplares vendidos, segundo o documento. Ivan pegou uma calculadora para obter a média de vendagem de seus treze títulos e chegou a 14 700. Notei que era mais que o maior sucesso do irmão. “Mas o Sérgio nunca escreveu para vender”, disse.
Há prateleiras com livros espalhadas por toda a sala do apartamento de Ivan Sant’Anna na Barra da Tijuca. Ele organiza os volumes por ordem alfabética de título. O Homem-Mulher está junto a biografias de Hitler e livros sobre o Holocausto. Disse que as obras do irmão são para ele uma lição. “Vejo defeito em tudo, mas ali não há o que dizer”, afirmou. “E tem coisas que só eu entendo”, completou, citando cenas de infância registradas nos contos do caçula.
O clã de irmãos escritores inclui ainda Sonia, que a despeito de ser a primogênita foi a lanterninha a se aventurar no mercado editorial. Lançou cinco romances históricos desde 1997, com tramas que têm como pano de fundo a Inconfidência Mineira ou o ciclo do café.
No apartamento de Sant’Anna, só os medicamentos – espalhados por mesas e prateleiras em todos os cômodos – competem com os livros. A maior concentração fica num quarto onde caixas de remédio ocupam quase toda a superfície de uma cama de solteiro, junto com pastas e documentos variados. Álibis não faltam ao escritor: precisa equilibrar o humor e a ansiedade, monitorar a pressão ocular, dilatar os vasos sanguíneos e afinar o sangue, controlar o colesterol, os triglicerídeos e a pressão arterial. “Sou um cara todo biônico, tenho que tomar um cuidado danado”, justificou.
A compulsão farmacológica vem de longe. O glaucoma que lhe custou uma vista foi causado pelo uso continuado de um colírio à base de cortisona. Certa vez um oftalmologista lhe receitou as gotas e o escritor saiu pingando o remédio vida afora. “Nunca falaram que era pra parar.” Seu nervo óptico foi se atrofiando e, quando o paciente se deu conta, era tarde demais. Se não controlar a pressão do olho esquerdo, corre o risco de perder também essa vista.
Quando vai à farmácia (ou pede pelo telefone), Sant’Anna sempre que pode compra várias caixas do mesmo medicamento. “Ele está sempre preparado para algo sério”, disse o filho André. O autor admite ser meio exagerado, “mas hipocondríaco, não: só tomo os remédios de que preciso”. Estima gastar cerca de mil reais por mês com farmácia.
Os medicamentos ocupam em sua dieta psicotrópica um lugar que já foi do tabaco, da bebida e da maconha. O cigarro era uma espécie de combustível para a escrita. No confronto com a folha em branco, acendia um atrás do outro. “Achava impossível uma pessoa escrever ou dar aula sem fumar”, ele me disse. Capitulou há sete anos diante da ameaça de ter a perna amputada. O álcool ele foi deixando progressivamente – disse que o fato de a ressaca atrapalhar a escrita foi um fator decisivo. Não chegou a parar de vez, mas não tem bebida em casa, e raramente pede álcool quando sai. De maconha não corre atrás, mas não nega se lhe oferecem.
Três vezes por semana o escritor costumava descer a pé a rua das Laranjeiras até o Largo do Machado, a cerca de 2 quilômetros de casa, e voltar. Interrompeu o exercício no verão, a pretexto do calor intenso. Começou a fazer pilates, para ficar mais flexível e perder a barriga que o envergonha, mas decidiu interromper as aulas – julgou que o professor havia sido grosseiro com ele. No dia em que fomos ao Jockey, Sant’Anna relatou que haviam chegado a uma trégua. “Tivemos uma longa parlamentação por telefone e ele disse que não gritaria mais. Vou voltar.”
Não seria o primeiro inimigo que arrumou no bairro. Certa feita começou a ouvir um barulho cuja origem ele acreditava ser um exaustor na garagem de uma maternidade vizinha. Ninguém parecia se incomodar com aquilo, mas para Sant’Anna o zunido se transformou numa tortura. Ele infernizou a clínica, ligando várias vezes por dia e escrevendo cartas de protesto. O ruído desapareceu tão misteriosamente como havia surgido.
Detalhes podem atormentá-lo a ponto de tirá-lo do sério. A ex-namorada Cristina Salgado contou que, quando iam ao cinema, não era incomum que mudassem de lugar antes do início da sessão – “Várias vezes na mesma noite” – porque ele suspeitava que os vizinhos falariam durante a projeção.
A ansiedade acompanha o pessimismo agudo daqueles que interpretam o mundo sempre da pior maneira para si. Se ele lança um livro e ninguém resenha, é porque acharam desastroso. Se o dermatologista lhe pede um exame, ele liga para o filho e anuncia que está com câncer de pele. “A vida para ele não é fácil”, disse a amiga Bia Lessa.
O interlocutor que porventura passar alguns dias fora do ar pode encontrar mais de uma dezena de mensagens de Sant’Anna ao se reconectar. Ao longo da preparação deste perfil, em mais de uma ocasião ele julgou que meu silêncio seria um sinal de que a revista havia desistido da reportagem. Certa vez passei duas semanas sem procurá-lo, e ele me mandou um e-mail: “Confesso que eu não esperava que você desse um sumiço sem mais nem menos, tipo brasileiro. Tudo bem não fazer a matéria, mas desaparecer assim é inexplicável.” O incêndio foi apagado na mesma noite e algumas mensagens depois ele já se despedia em tom cordial.
Seu lado urgente e às vezes irascível contrasta com a personalidade afável e generosa. Uma ex-namorada evocou um verso de Drummond para ilustrar o homem doce que se esconde por trás da conduta de animal intratável: “Repara que há veludo nos ursos.”
O urso se esqueceu do veludo quando soube que a reportagem iria a Ubatuba para falar com Mariza Muniz, mãe de seus filhos. “Vou usar meu poder, espero, de veto”, ele me escreveu num e-mail. “Ela tem mágoas demais e ficaria numa situação complicada para falar à imprensa a meu respeito. Eu também ficaria muito preocupado.” Expliquei-lhe que não poderia me abster de procurá-la, mas adiei o assunto para o encontro seguinte. Dias depois, ele próprio voltou atrás: conversara com a filha e se convencera de que, afinal, a ex-esposa não o deixaria mal.
Mariza Muniz é uma mulher de cabelos grisalhos curtos e óculos de armação vermelha. Ágil e despachada, não parece ser quatro anos mais velha que o ex-marido. Dá aulas particulares de piano e flauta doce, além de ensinar arte para crianças num ateliê no Centro de Ubatuba, local em que se instalou quando foi viver ali, em 1975 – hoje ela mora sozinha numa casa ampla, num bairro próximo.
A ex-mulher falou de Sant’Anna num tom condescendente, apesar do rompimento conturbado. Ao evocar o episódio, Mariza afirmou que partiu dela a iniciativa da separação. “Sérgio queria viver uma vida de solteiro e eu tinha um marido fantasma.” Também contou que chorou muito nos primeiros meses (“Parecia que um prédio tinha caído em cima de mim”), mas não manifestou rancor em relação ao ex-marido – ela ainda tem seus livros na estante e continua admiradora da sua prosa. “Tenho uma relação boa com ele, ele é que não tem comigo”, disse.
Numa tarde de sábado de 2001, o telefone tocou na casa de Mariza Muniz. Do outro lado era a irmã Sonia Sant’Anna: “Serginho tentou se matar.”
A deterioração do quadro de saúde tinha precipitado o escritor numa depressão para a qual não enxergava saída. “Nunca pensei que o ser humano pudesse sofrer tanto assim”, ele diria mais tarde à ex-mulher. Tomou dezenas de remédios para dormir, vedou a porta da cozinha, abriu o gás do forno e deitou-se no chão, esperando o fim.
Acordou quatro dias depois numa clínica psiquiátrica, sob observação dos médicos. Sua primeira reação ao abrir os olhos e tomar consciência de que falhara foi de raiva. Ele não previra a possibilidade de a namorada, Cristina Salgado, procurá-lo. Naquele sábado eles haviam almoçado juntos, e ela notara que o companheiro parecia alheio a tudo. Telefonou-lhe mais tarde e, como ninguém respondeu, correu para a casa dele e o encontrou desacordado. (Cristina preferiu não falar do episódio.)
Quando comentou a tentativa de suicídio numa tarde de outubro, o escritor disse que estava mal medicado, e isso acentuou o processo de depressão. Sentado na sala de estar, com os cotovelos plantados na mesa e a cabeça inclinada, parecia um touro pronto para o ataque. “O cara me mandava tomar mais remédio e eu ficava pior, pior, pior”, contou, enquanto levava as mãos à cabeça. “Até que não aguentei mais, não aguentava viver.”
Sant’Anna recorreu ao gás – um método indolor, frequentemente aventado por vários de seus personagens que cogitaram ou levaram a cabo o suicídio. Nenhum de seus escritos sobre o tema, porém, é mais pungente que “A barca na noite”, o “pequeno conto de um sobrevivente” que ele se pôs a escrever ainda na clínica. “A única coisa que você pode fazer para elevar-se um mínimo que seja, na situação em que se encontra, é escrever um conto”, lê-se no relato autobiográfico incluído no Voo da Madrugada.
Ao voltar para casa, deparou-se com a carta de despedida que redigira ao longo dos vários momentos de crise aguda que antecederam o gesto extremo, com instruções práticas e um pedido de desculpas. “Aquele negócio que todo mundo faz”, ele disse. Jogou-a fora.
Na entrevista que integra o livro Um Olho de Vidro, Luis Alberto Brandão Santos perguntou ao escritor que balanço ele fazia de seus então trinta anos de carreira literária. Sant’Anna disse que a sensação era de medo e susto, porque muito tempo já havia passado. Em janeiro, eu quis saber se algo havia mudado na percepção dele, agora que sua trajetória somava 45 anos. Ele reagiu com um palavrão – parecia só então descobrir que estava prestes a completar meio século de vida literária. “Tenho melancolia de envelhecer e nostalgia do princípio da carreira por causa das farras. Mas minha carreira vem num crescendo”, disse.
A idade parece ter despertado em Sérgio Sant’Anna um sentimento de urgência, como se a consciência da passagem do tempo o confrontasse com a própria fragilidade. O escritor disse que nunca mais pensou em se matar e que não teria medo de uma morte tranquila. (“Mas que morte é fácil?”, perguntou.) Coerente com a vida que levou, quando fala da perspectiva do fim ele só parece lamentar o que isso representaria para sua literatura. “Acho que ainda tenho livros pra fazer, não considero encerrado de jeito nenhum. Tenho medo de não escrever mais, ficar doente e morrer, e aí se encerrou uma carreira.”
André Sant’Anna e a mulher passaram uma temporada em Ubatuba no começo de fevereiro, hospedados na casa de Mariza. Num domingo ensolarado, eles se preparavam para ir à praia quando chegou do Rio de Janeiro a notícia de que o escritor tivera um pequeno acidente. Havia levado um tombo enquanto tomava banho e não conseguira se levantar. Fora socorrido pela irmã, que o acompanharia a um pronto-socorro para os exames neurológicos. Enquanto a mãe ligava para o Rio em busca de notícias, André me disse que se sentia um pouco culpado, pois o pai já havia caído na véspera e ele o tranquilizara, minimizando o acidente quando conversaram por telefone.
Na semana seguinte, na última de muitas entrevistas, o escritor atribuiu sua queda à fraqueza muscular provocada pelo ansiolítico que andava tomando em doses liberais. Parecia bem e não se mostrou preocupado com o acidente. Os exames não apontaram nenhuma anormalidade e ele estava convencido de que nada teria acontecido se não tivesse inventado de tomar uma ducha antes de dormir, já meio grogue do remédio. Mas estava avexado com toda a mobilização que o evento deflagrara.
A família confabulou e sugeriu que ele contratasse um acompanhante. A ideia ficou reverberando na cabeça de Sant’Anna, que roçou o assunto diversas vezes naquela tarde. Tomaria medidas, ele disse: mandaria instalar um apoiador no boxe do banheiro e diminuiria a dose de ansiolítico. “Acompanhante, só mais tarde”, disse, peremptório.
No meio da tarde, Sant’Anna interrompeu a conversa para buscar um refrigerante. Voltou ao assunto do acompanhante enquanto examinava o conteúdo da geladeira. “A colocar alguém aqui, prefiro casar”, disse. Lembrou-se de José Saramago, a quem fora apresentado por Luiz Schwarcz num lançamento. Disse invejar o português, que aos 66 anos se casou com uma mulher que acabou sendo sua companheira ao longo da velhice. Nesse momento o contista ergueu a cabeça e virou-se com um brilho no olhar, como se acabasse de ter um estalo. “E se eu fosse atrás da mulher do Saramago?”