Aposentado há vinte anos, Sábato Magaldi conseguiu a proeza de, como crítico, não ser odiado por autores, atores e colegas FOTO: MARCOS MAGALDI
O último crítico
Sábato Magaldi atualiza as 20 mil páginas da mais minuciosa radiografia do último meio século e lança um livro de alerta: abandonado como está, o teatro brasileiro virará saudade
Norma Couri | Edição 24, Setembro 2008
O corredor de 16 metros é forrado de livros de teatro dos dois lados, de alto a baixo. São livros que qualquer um pode comprar, e ainda mais se for Sábato Magaldi, que passou sessenta dos seus 81 anos contemplando cortinas subirem, escrevendo críticas e dando aulas de dramaturgia. Os seus papéis singulares estão no escritório desorganizado, na estante atrás da pilha de papel da mesa sem computador. São cinqüenta cadernos comuns, de capas coloridas, com cerca de 20 mil páginas cobertas por uma caligrafia redonda e clara. Escritos com caneta Bic, as anotações e relatos configuram, como dizem os amigos de Magaldi, a mais minuciosa radiografia do teatro brasileiro e seus bastidores no último meio século.
“Determinei que os cadernos só fossem publicados trinta anos depois da minha morte”, disse o crítico, com voz macia, “mas a Edla descobriu que Carlotta Monterey, viúva do Eugene O’Neill, não agüentou nem três dos vinte anos de embargo que o marido exigiu para lançar Longa Jornada Noite Adentro.” Autobiográfica, com quatro horas de duração, a peça esquadrinha as mazelas dos O’Neill.
Edla van Steen estava no escritório, onde ninguém entra sem a sua escolta: ela suspeita que visitantes possam sucumbir à tentação de afanar um volume da temida crônica da vida teatral brasileira. Autora de 25 livros, casada há 28 anos com Sábato, Edla o ajudava a procurar outros papéis singulares: fotos autografadas de Jean-Paul Sartre, Eugène Ionesco e Vivien Leigh.
“Faltou Marilyn Monroe”, lastimou o crítico, falando da atriz que foi casada com Arthur Miller. “Ele me deu o telefone em Nova York, mas, quando tomei fôlego e liguei, ela tinha viajado.” Sábato tirou da parede o retrato de Carlotta e O’Neill que ganhou com dedicatória do escritor para a mulher. Como o americano encabeça, junto com Nelson Rodrigues, a sua lista de autores prediletos, ele sugeriu a um jovem pesquisador americano, David George, que escrevesse um estudo comparativo. Para alegria de Sábato, o livro com a mistura eclética está prestes a ser lançado. “Veja o quanto de Nelson está embutido em Electra Fica Bem de Luto.”
Ao se fazer o trajeto de volta pelo corredor, se vê no caminho os escritórios de Goethe, Baudelaire, Colette, Oscar Wilde e até um gabinete do próprio Sábato – todos em miniatura, enquadrados em caixas esculpidas por Edla van Steen. Na sala principal, o canto preferido do crítico é junto a um monumento ao vinho: um enorme vaso transparente entupido de rolhas de cortiça, a maior parte vinda de garrafas de Côtes du Rhône, região onde morou num dos cinco anos alternados em que estudou estética e lecionou na Sorbonne, em Paris, e em Aix-en-Provence.
Na sala, cuja vista dá para a praça Buenos Aires, em Higienópolis, e Edla chama de “Central Park”, o crítico falou sobre suas origens. Filho do dono de uma loja de ferragens de Belo Horizonte, como primogênito de oito irmãos, foi educado para ser padre, mas conseguiu escapar: “Sobrou para um irmão e uma irmã, que é freira no Japão até hoje.”
Mineiro que mora em São Paulo há mais de cinqüenta anos, começou a fazer críticas ainda em Belo Horizonte, mas foi no Rio, no Diário Carioca, que se projetou. “Herdei a coluna de teatro porque para o titular, o Paulo Mendes Campos, era uma verdadeira maldição sair da mesa de bar para assistir a uma peça.” O poeta também foi responsável pelo fim da carreira de dramaturgo do amigo, pois perdeu os originais da única peça escrita por Sábato, Os Solitários. “Foi um alívio”, disse o crítico.
Como o salário era baixo, ele virou funcionário público, lotado no Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado. “Todo mineiro ia para lá, o diretor era o Cyro dos Anjos, mineiro de Montes Claros.” O Instituto ficava a poucos metros do prédio do antigo Ministério de Educação e Cultura, onde Carlos Drummond de Andrade era chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, outro mineiro. Todos os dias, Sábato ia lá tomar um cafezinho com Drummond. Voltava antes das três da tarde: era essa a hora que Nelson Rodrigues saía do Última Hora, para apanhar o amigo para outro café, no Vermelhinho. “O Nelson, que nunca botava a mão no bolso, dizia que eu era tão generoso que ele se esquecia de pagar a conta”, lembrou.
Um dos primeiros a defender que Nelson Rodrigues era um mestre da dramaturgia, Sábato escandalizou amigos e por dois motivos: o autor de Vestido de Noiva era um direitista convicto e tinha fama, como afirmou Millôr Fernandes, de “moralista da Zona Norte”. Ao longo de resenhas, artigos, livros e uma tese acadêmica, Sábato burilou sua reflexão a respeito do teatro de Nelson. Detectou tragédias cariocas e peças míticas onde muitos viam apenas melodrama e escracho, e robusteceu um ponto de vista que acabou por se tornar dominante.
A politização dos anos 60 fez com que essa trajetória fosse acidentada. O decano da crítica teatral na época era Décio de Almeida Prado, um liberal com simpatias pela esquerda, cuja origem foi a revista Clima, dos anos 40, integrada por Antonio Candido e Paulo Emílio Salles Gomes. Sábato Magaldi, que se dizia de esquerda, apoiava Décio de Almeida Prado, que, por sua vez, era crítico do jornal O Estado de S. Paulo e rompeu com atores e diretores de esquerda. Aumentando a confusão, na década de 70 Sábato foi secretário da Cultura de São Paulo, na gestão de Olavo Setúbal, prefeito nomeado pela ditadura – ao mesmo tempo em que pelejava para que peças de Plínio Marcos não fossem censuradas e virava crítico do Estadão.
Contemplando o período, Iná Camargo Costa, professora de teoria literária na Universidade de São Paulo, considera Décio de Almeida Prado “o maior crítico teatral brasileiro”. Historiadora e teorizadora da adaptação de Brecht no Brasil, além de incentivadora do teatro popular na periferia paulistana, Iná diz que é impossível aparecer outro crítico da dimensão de Almeida Prado “por culpa do Brasil, que além de ter passado por uma ditadura, ficou pior em todos os sentidos. Como a crítica é um trabalho da inteligência, o país ficou mais burro”.
Ela preferiu não opinar sobre Sábato Magaldi, mas disse que a intelectual mais adequada a falar a respeito dele seria Mariangela Alves de Lima, que o substituiu no Estadão. “A crítica ficou opinativa, perdeu a importância, junto com as pessoas intelectualmente preparadas”, disse Mariangela. “Isso foi embora com Décio e Sábato, a crítica como missão acabou. Sábato é o último.” Já Magaldi, ao falar sobre grandes críticos, classificou Paulo Francis de “gigante”.
Sábato traçou um diagnóstico severo do teatro e da política feitos no Brasil. “Até na ditadura havia mais subsídio para a arte”, disse. “Esse desgraçado do neoliberalismo acabou com tudo, só enriquece os ricos, o Brasil só está piorando. O teatro foi subsidiado em Roma, na Grécia; a cultura nos Estados Unidos vive das fundações, a Alemanha subsidia 85% das produções.” Ele responsabiliza os políticos de todos os quadrantes: “É estupidez, político não vai ao teatro. Um ministro da ditadura, Nei Braga, adorava teatro, e Jânio Quadros também. Mas nunca vi Lula na platéia. Fernando Henrique, pouco. Qualquer país civilizado tem preocupação com cultura. Aqui é uma porcaria lamentável. Esperava outra coisa de um governo popular. Não mudou nada, me desinteressei da política.”
Quando seus alunos na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo começaram a trabalhar na televisão, o crítico se irritou. “Hoje dou graças a Deus: ou eles faziam novela e propaganda ou morriam de fome.” Sábato diz que dois deles, Francisco Cuoco e Juca de Oliveira, eram ótimos alunos, mas não pode opinar sobre o que fazem na televisão: “Não vejo tevê.”
Magaldi não viu nem a minissérie JK, exibida há dois anos pela Rede Globo, que nasceu num jantar na casa dele, escrita pela sua amiga Maria Adelaide Amaral. “O Sábato detectou que eu era uma autora de teatro quando leu meu texto A Resistência, em 1979″, disse Maria Adelaide. “Ele é o último dos grandes críticos, hoje só tem resenhista machista e ignorante.”
Juca de Oliveira não se importa que o antigo professor não o veja na televisão. “Aprendi com ele a amar o teatro não como exercício de vaidade pessoal, mas pela responsabilidade do artista em transformar a sociedade”, disse o ator.
Como crítico do Estadão, Sábato era um dos responsáveis pela concessão do prêmio Saci, o de maior prestígio nos anos 60. Juca recebeu o dele, em 1962, pela sua atuação em A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. Em 1968, numa assembléia da qual participaram estudantes liderados por José Dirceu, a classe teatral decidiu devolver seus Sacis ao jornal. “Era uma represália a um editorial sobre a censura”, contou Juca de Oliveira. No editorial, publicado um dia antes, o jornal defendia a censura de Roda Viva, a peça de Chico Buarque dirigida por José Celso Martinez Corrêa.
“Foi uma estupidez dos artistas”, disse Juca, que se recusou a devolver o prêmio. “Só os ganhadores poderiam decidir sobre a devolução dos Sacis, e não estudantes liderados pelo Zé Dirceu.” O episódio fez com que Décio de Almeida Prado, editor do Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, nunca mais escrevesse uma crítica de teatro. Sábato achou tudo “uma infantilidade da classe”, e ficou ao lado de Almeida Prado.
Aposentado há vinte anos, ele conseguiu a proeza de, como crítico, não ser odiado por autores, atores e pelos colegas. Ou melhor: nem por todos, apesar de o jornalista Wilson Figueiredo, um dos seus melhores amigos, defini-lo como “o crítico de menor nível de agressividade que conheço, um santo, e olhe que ele não acredita em santidade”.
Sábato foi ver Les Éphémerès, que a companhia francesa Théâtre du Soleil trouxe ao Brasil no ano passado. Saiu de fininho, sem falar com a diretora Arianne Mnouchkine, que em outros tempos considerou “a grande animadora do teatro francês”. Com Juliana Carneiro da Cunha, atriz do Théâtre, ele não falaria mesmo. Há 25 anos, Sábato criticou Juliana em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Fassbinder. Ela fazia o papel de uma muda. “Como o papel não existia na peça original”, ele contou, “escrevi que ela entrava sem razão, saía sem razão, ficava se mexendo sem a menor razão e tirava a razão do espetáculo. E não é que ela só faltou me xingar um dia, em Paris?”, choca-se.
Na conversa no apartamento em Higienópolis, Sábato citou como exemplo de bom teatro o do grupo Oficina. Talvez seja uma prova da “santidade” da qual Wilson Figueiredo falou, pois o diretor do grupo, José Celso Martinez Corrêa, é seu desafeto desde 1972, quando Sábato criticou Gracias, Señor, que acabou censurada. “O Zé Celso veio com quatro patas, foi de um mau-caratismo exemplar”, disse. “Quando o espetáculo terminava, lia uma carta aberta contra mim, que distribuía lá fora.”
O dramaturgo Guilherme Figueiredo foi além: atacou-o pelas costas a tapas e pontapés na Livraria São José, no Rio. “Caí, me seguraram, revidei e ele se esborrachou. Mau-caráter alucinado, se achava um Shakespeare.”
Semana sim, semana não, o crítico viaja com Edla para o Rio. Agora, para um apartamento na avenida Atlântica. A vista da praia de Copacabana não é o único contraste com o “Central Park” da janela paulistana. Sábato, que em São Paulo usa calça esporte, tênis e camisa de malha, no Rio estava de camisa branca, terno e gravata pretos. Era dia de chá na Academia Brasileira de Letras, para a qual ele foi eleito imortal em 1994.
Sobre a mesinha da sala, havia o DVD de Vestido de Noiva, uma produção do filho de Nelson, Jofre, com Letícia Sabatella e Marília Pêra. Perguntei-lhe se havia gostado do filme e Sábato disse: “Ainda não vi.” Edla foi eloqüente: “É muito ruim, o filho está acabando com as peças do pai por puro mercenarismo.”
O motorista da Academia chegou e nos levou à sede da entidade, no centro. A mesa do salão de chá estava coberta de empadas de siri, bolinhos de bacalhau, pastéis, quiches, biscoitos, pães de queijo. Sábato só ciscou as frutas. Ao ver Carlos Heitor Cony sentado em frente, o crítico lembrou que, quando fizeram serviço militar, o autor de Pilatos nunca acertava os passos da marcha.
Antonio Carlos Secchin reforçou o aviso para ninguém sentar à cabeceira, superstição respeitada na Academia desde que Guimarães Rosa ocupou o lugar três dias depois da posse, e morreu horas depois. Marcos Vinicios Vilaça, ex-presidente, num terno alegremente oposto ao de Sábato – listras azuis e brancas, camisa azul-clara com gola branca, gravata cor-de-rosa, abotoaduras vermelha e branca, sapato de duas cores – citou um trecho de Paul Valéry em português, e Sábato o reduziu para o francês: La mer, toujours recommencée.
Lygia Fagundes Telles confessou que “a única inveja que tenho dos cariocas é o mar”. Atiçada por Sábato, Lygia relatou seus quinze minutos de atriz, quando atuou, em 1944, em Heffman, de Alfredo Mesquita. “O Alfredo me dava bronca: ‘Se o homem vai embora, a mulher apaixonada não pede para ele voltar como quem pede uma laranjada’.” Ivan Junqueira chegou de cara fechada. “Não reparem”, disse um acadêmico, “ele já acorda de mau humor.”
Mal terminado o chá, Sábato escapuliu para a biblioteca da ABL, de 100 mil volumes. Em casa, ele acumula 8 500 livros e lê nove horas por dia. Na noite seguinte, houve um show de Gilberto Gil no teatro da Academia. Sábato não foi. No dia subseqüente, Sábato explicou a ausência com uma história comprida: há uns anos caiu sobre uma bola de ferro que o prefeito César Maia colocou na calçada do Leblon para ninguém estacionar. “Quebrei o fêmur, e às vezes me dá uma dor na ponta do osso.” Edla foi sucinta: “Quando ele não quer ir a um lugar, lembra da dor.”
Mineiramente, Sábato mudou de assunto, e enumerou uma lista de conselhos a uma jovem atriz. “Bossa não funciona. Tem de ter dicção, saber se movimentar em cena, estudar muito e depois disso tudo, se tem talento, ótimo, se não, vai fazer outra coisa.” Deu também um conselho a atores e atrizes, experientes ou não: Não representar monólogos. Segundo ele é um “exercício da vaidade tola”.
No dia seguinte, um sábado iluminado, Eva Wilma, Tônia Carrero e a jornalista Susana Schild (que fez um livro de divulgação do filme Noel – Poeta da Vila, do primogênito de Edla, Ricardo van Steen) foram convidadas a almoçar no apartamento da avenida Atlântica. Conversou-se à solta em torno do estrogonofe e garrafas de Côtes du Rhône. Falou-se de casamentos (Sábato está no terceiro), do beijo na boca (“fechada, hein!”) que Eva Wilma deu em Selma Egrei num filme no qual fez papel de lésbica, e da insistência de Lucélia Santos em incensar o palco antes dos ensaios.
O crítico embarcou com gosto na conversa quando entrou em votação o tema “carioca gosta de peças leves; paulista, das mais sérias”. Rebateu a afirmação com vigor, e também não aceitou a tese da superioridade dos intelectuais paulistas. “Devo ser um deles, não é? E contesto.”
Sábato mostrou uma escultura de Amílcar de Castro – “ele morava na minha rua em Minas, sabe?” Contou que Marília Pêra mora no seu prédio paulista e que ele nunca a vê. “O Plínio Marcos era quase vizinho, morava na rua Maranhão.” Disse que almoça às vezes com a viúva de Nelson Rodrigues, “que mora aqui pertinho”. E, dos mineiros, quando bate uma saudade? “Aí vou bater um papinho com a estátua do Drummond, no Posto 6.”
Na recém-lançada coletânea de ensaios Teatro em foco, da editora Perspectiva, Sábato Magaldi retoma no prefácio o tema da nostalgia, dessa vez de um ponto de vista político em relação ao teatro. “Abro esse novo livro tomado de profunda melancolia”, ele escreveu. Ataca a seguir “o neoliberalismo, preocupado sobretudo em enriquecer mais os milionários”, e sustenta que a ideologia “prossegue no suposto regime popular dos nossos dias”. O crítico encerra o texto sustentando que, se não houver uma “mudança radical”, o teatro “correrá o risco de ser lembrado como um passatempo da nossa velhice. E adquirirá o sabor nostálgico de uma riqueza que se perdeu”.