A imagem do copista como criatura obediente e passiva, que reproduz de forma mecânica e sem contestação o original antigo, é certamente desmentida pela postura de Ângelo Vergécio CRÉDITO: © BRITISH LIBRARY_TODOS OS DIREITOS RESERVADOS_BRIDGEMAN IMAGES
O último dos copistas
Para tornar-se escritor, é preciso sempre se tornar escriba
Marcílio França Castro | Edição 151, Abril 2019
I
Você, que começa agora a seguir estas linhas, que está esticado em um sofá ou sentado à sua mesa de trabalho, ou quem sabe dentro de um ônibus, na cadeira da janela, com o braço encolhido para não incomodar o passageiro ao lado, você, que é leitor assíduo desta revista, ou nem tanto, mas reconhece de longe seu formato extravagante e não dispensa manuseá-la em papel, ou, ao contrário, prefere a tela do celular ou de um computador, mesmo sabendo que os artigos aqui costumam ser extensos e podem cansar a vista, você, que às vezes fica indeciso sobre a natureza do que está lendo, e se pergunta, afinal, isso é verdade ou invenção, ou apenas uma reportagem esquisita, carregada de ambiguidade, e é essa dúvida que o instiga ainda mais a continuar a leitura; você que vai aos poucos sendo arrastado por estas palavras, e já não se incomoda com o ruído à sua volta, você, mesmo sendo um leitor excêntrico ou disperso, mesmo tendo que parar para limpar o café que acabou de derramar sobre a folha ou expulsar o mosquito que insiste em pousar no meio da página, provavelmente não vai pensar em interromper o percurso, o vaivém folgado dos olhos, para, se for possível, ir a uma gaveta, tirar lá do fundo aquela lupa arranhada e, por distração ou cisma, passar a examinar cuidadosamente, em tamanho ampliado, o desenho que têm as letras aqui impressas, se são duras ou suaves, se fazem curva ou são retas, se permitem respirar, se o miolo é aberto, se o remate é pontudo. Você pode, no máximo, talvez, sentir de modo inconsciente a leveza do tipo, o conforto óptico que ele produz, mas não irá reparar, por exemplo, na cabeça abaulada deste “t” ou na espora arredondada ao pé deste “a”. Você continua a ler, consegue até detectar certas minúcias, mas dificilmente saberá que estes caracteres, o modo ventilado com que sulcam o papel, carregam uma herança corporal, longínqua – o traço, a bico de pena e em grego, de um copista que viveu em Paris no século XVI. Esse copista, tardio, chamava-se Ângelo Vergécio, provinha de Creta e, por seu talento, tornou-se escrivão oficial de Francisco I, o rei francês, em língua grega. Foi a elegância de sua caligrafia – aerada, limpa, veloz – que, há quase quinhentos anos, por uma espécie de contaminação, ou afeto tipográfico, talvez, acabou impregnando a fonte romana que deu origem à Garamond.
II
Os manuscritos produzidos por Ângelo Vergécio – Ange Vergèce, para os franceses, Angelos Bergikios, para os gregos – e a cultura que gravita em torno deles são o objeto da exposição que acontece até o fim da primavera europeia na Galeria 1 da unidade François Mitterrand da Biblioteca Nacional da França, em Paris. Le Dernier des Copistes [O Último dos Copistas], como a mostra é chamada, reúne cerca de trinta manuscritos da lavra de Vergécio, copiados entre 1535, quando ele vivia em Veneza, e 1568, ano anterior ao de sua morte em Paris. Há também cartas, livros impressos, alguns mapas e objetos, além de três ou quatro manuscritos de copistas que trabalharam com ele. A maioria dos exemplares pertence ao acervo de manuscritos antigos da Biblioteca Nacional, guardados ordinariamente em sua sede velha, a da rua Richelieu (a poucas quadras do Louvre), mas há também os que vieram por cortesia de outras instituições, como as bibliotecas Bodleiana, em Oxford, do Escorial, na Espanha, e a Biblioteca Estatal de Berlim. De fora da Europa, conseguiram trazer uma peça importante de Harvard. Pouco mais de cem manuscritos copiados por Vergécio sobreviveram até nós, a maioria em papel – vários danificados, outros sem autógrafo, alguns ricamente encadernados. Não é improvável, porém, que, escarafunchando por aí coleções ou estantes empoeiradas, ainda se possa descobrir mais algum.
Do ponto de vista conceitual, a mostra poderia ser entendida como uma continuação de dois outros eventos recentes: o conjunto de homenagens ao tipógrafo Claude Garamond promovidas pelo governo francês em 2011, em razão dos 450 anos de sua morte, e a dupla exposição, organizada em 2014 e 2015 pela própria Biblioteca Nacional, dedicada a Francisco I – uma, à figura do rei, a outra, a seus livros. Segundo a curadora, o arranjo não foi calculado, e a escolha de Vergécio, um migrante plebeu na corte francesa, em princípio sem vínculo identitário com o país, não teria nada a ver, ao contrário das anteriores, com o intuito de celebrar personalidades nacionais. Entretanto, quando vejo essa conjunção de personagens tão próximos – Francisco I, Garamond e Vergécio –, os três fincados na mesma cena renascentista e convivendo em torno dos livros, não posso deixar de pensar em uma espécie de trilogia, e no seu propósito subjacente, ainda que involuntário, de interrogar a passagem do mundo manuscrito para o impresso. Mais que isso, me pergunto se não haveria aí o sintoma de uma força mais abrangente, a atração silenciosa que devemos ter por esse século que parece acenar para o nosso, como se sua curiosidade e mobilidade, e seu apetite enciclopédico, fossem uma lembrança de algo que se vive agora, como se, na rede de símbolos e palavras que fazia girar o imaginário daquela época, conectando, por exemplo, um pássaro a uma pedra, a pedra a um espírito, o espírito a uma estrela, se pudesse de repente atar um fio da nossa própria rede, sem dúvida mais promíscua e difusa, mas que também navega, já talvez à deriva, entre pedras e estrelas, entre cristais e bichos, humanos e máquinas. Afinal, não é fato que, sedados pela tecnologia e suas armadilhas cibernéticas, já não discernimos mais, em uma confusão maior do que a dos antigos, entre documento e fábula, entre ciência, religião e magia, astros e signos, animais e quimeras? Não seriam os fantasmas do século XVI – copistas atrapalhados com uma pena nas mãos – parentes próximos desses que nos rondam agora, leitores assustados com o fim da página e do papel?
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Se não estivesse em reforma, o prédio da rua Richelieu, com seu ar amadeirado e os afrescos italianos, seria provavelmente o lugar mais indicado para a exposição – a maioria das peças nem precisaria se deslocar. A opção pela Biblioteca François Mitterrand, entretanto, situada do outro lado da cidade, e que de cara confronta o visitante com um cenário futurista, parece ter acrescentado ao programa, meio sem querer, um prólogo inesperado e destoante.
Mesmo em Paris há dois meses, eu ainda não tinha estado lá. Saindo da praça da Itália, você pode descer a pé até quase o Sena; duas ou três quadras à direita, logo surge a esplanada. Um pátio vasto, retangular, com um prédio em cada ponta, o jardim rebaixado no meio. O vento sopra de todos os lados; há algo de sinistro naquela vaguidão. O único indício de livros parece ser a própria geometria dos prédios, dobrados em L, como um códice aberto. Tabuinhas de madeira cobrem o chão inteiro. A leste e a oeste, há uns painéis de vidro atravessados, escuros; você imagina que, se tateá-los, se tocar no bloco certo, vai descobrir uma parede falsa que, finalmente, te dará passagem para o interior.
III
Vergécio foi uma dessas figuras que dedicam a vida a algo que já desapareceu, ou está em vias de desaparecer, e assim testemunham o fim do próprio ofício. Tornou-se copista respeitado no exato momento em que as prensas avançavam pela Europa e iam varrendo os manuscritos do continente. Nasceu em uma família de calígrafos, em 1505; como vários de seus contemporâneos, migrou de Creta para a Itália, fugindo à ameaça dos otomanos. Isso foi por volta de 1530. Durante dez anos viveu em Veneza, onde praticava o comércio de manuscritos e fazia cópias por encomenda – para colecionadores e eruditos. André Thevet, cosmógrafo de Francisco I que navegava pelo mundo e chegou a visitar o Brasil, registra que Vergécio, em 1535, vende a Georges de Selve um tratado de João Zonaras, historiador do século XII. É uma cópia antiga, com mais de cem anos talvez, marcada por uma caligrafia reta e monótona – sem desperdiçar nenhuma linha do papel. De Selve era chanceler francês em Veneza; foi provavelmente a convite dele que Vergécio, por volta de 1540, transferiu-se para Paris, respondendo ao desejo de Francisco I de transformar a cidade em um importante centro de estudos helênicos.
Para vários comentaristas, Vergécio foi “o mais célebre copista do século”. Devido a sua familiaridade com os livros, tornou-se uma espécie de curador de obras gregas da recém-instalada biblioteca de Fontainebleau, a preferida de Francisco I. O castelo, situado em uma região de bosques e águas abundantes, como já registrava em diário de 1546 o viajante Nicandre de Corcyre, foi construído e reconstruído ao longo dos séculos, e hoje pode ser visitado de trem, a uma hora de Paris, saindo da Gare du Nord. Entre as dezenas de cômodos e objetos, você verá o quarto das imperatrizes (com uma cama que Maria Antonieta não teve tempo de usar) e o chapéu de Napoleão, mas não descobrirá nada da biblioteca – que parece não ter deixado rastros. É provável que ficasse em algum local acima da refinada galeria erguida por Francisco I com seu nome, mas ninguém tem certeza disso. As únicas estantes instaladas no castelo são do começo do século XIX, da época de Napoleão III, em outra galeria comprida, com vista para o jardim e pinturas dedicadas à deusa Diana.
Junto com dois conterrâneos, Diassorinos e Paleokappa, Vergécio cuidou de ampliar o acervo grego de Fontainebleau e organizar o catálogo da biblioteca que recebeu em 1547 todos os livros vindos de Blois, outro palácio real. Aos poucos, sob o comando de Vergécio, foram reunidos ali, perto dos aposentos do rei, “livros gregos difíceis de encontrar em quase toda a Terra”, relata Corcyre. Depois da morte de Francisco I (em 1547), Vergécio continuou a trabalhar para a realeza e preparou vários volumes de luxo para Henrique II e Catarina de Médici, mãe e regente de Carlos IX. Seu círculo familiar era restrito: um sobrinho, também calígrafo; um filho, que redigia epitáfios e andava com os poetas Pierre de Ronsard e Jean-Antoine de Baïf, e talvez uma filha, a suposta ilustradora dos livros do pai. Vergécio era uma figura menor, sem autoridade nem poder, mas querido e reconhecido na corte – “grego de mão gentil”, diria Baïf em um poema dedicado ao copista, que fora seu professor.
IV
O repertório de títulos copiados por Vergécio é razoavelmente variado. Abrange filosofia, história, religião, mas também temas ligados à engenharia de guerra, à mecânica, à astrologia. Alguns autores são mais frequentes, como Políbio, o historiador, Eneas e Eliano, tratadistas de assuntos militares, e Herão de Alexandria, matemático. Entre os livros que copiou em série ao longo da vida, o mais famoso talvez seja o Das Características dos Animais (De Animalium Proprietate), do bizantino Manuel Philes, uma espécie de bestiário ou tratado em versos sobre o mundo natural, com cerca de 2 mil linhas, composto originalmente entre os séculos XIII e XIV.
Vergécio fez onze versões desse manuscrito; sobraram nove delas, espalhadas em algumas bibliotecas pelo mundo. A maioria dos exemplares vem ornada com vinhetas e iluminuras muito finas, executadas com muita delicadeza. Segundo certa tradição, teriam sido obra da filha do copista, da qual nada se sabe – é um assunto que permanece em aberto. A curadora fez o esforço de reunir seis dessas peças para montar um conjunto que pudesse funcionar, simbólica e fisicamente, como eixo da mostra. Sendo a mais antiga de 1554, e a última, de 1568, seria essa uma síntese da atividade do copista – atuante por cerca de três décadas.
Os exemplares do bestiário ocupam o espaço central da galeria – em torno do qual se organizam em círculo outros cinco espaços contíguos, que o visitante pode percorrer dentro de uma ordem mais ou menos cronológica. Assim, primeiro é apresentada uma contextualização histórica, com mapas e informações sobre a Europa seiscentista. Em seguida, vem a temporada italiana de Vergécio. Aí está, com data de março de 1535, o seu mais antigo manuscrito, de Veneza, visualmente bem pobre – um compêndio de comentários de Olimpiodoro e Damáscio sobre textos de Platão. O ambiente seguinte explora as atividades em torno de Francisco I, e logo se passa ao período de Henrique II e Carlos V. O quinto e último espaço, que fecha o roteiro circular, é dedicado ao método de trabalho do copista, com alguma informação sobre como produzir um manuscrito e suas iluminuras. Quase todas as peças podem ser consultadas na versão digitalizada, disponível em torres montadas no local pelos expositores.
O visitante que segue o roteiro tem a opção de, a qualquer momento, passar ao espaço central, retomar o percurso circundante. A série do bestiário acaba funcionando como um ímã – as iluminuras chamam muito a atenção. No manuscrito que veio de Harvard, por exemplo, um dos mais bem conservados, de 1566, a página aberta mostra um pelicano bicando o próprio peito para alimentar seus dois filhotes – um emblema cristão. As cores são vívidas, o vermelho do sangue que goteja da ave é o mesmo das rubricas e legendas de Vergécio. O livro é dividido em três seções, cada uma supostamente dedicada a uma categoria de animais – aéreos, telúricos e aquáticos –, mas sem nenhuma precisão. Antes de Vergécio fazer sua primeira cópia, já havia uma edição impressa desse livro, de 1533, preparada em Veneza por um bispo de nome Arsênio, mas nem esta nem o original dos séculos XIII-XIV continham ilustrações. No exemplar da Biblioteca de Sainte-Geneviève, também de 1566, o desenho à vista é o de um homem com cabeça de cão (um cinocéfalo), e insetos estranhamente desproporcionais. Já no manuscrito mais antigo da série, em papel castigado, não há seções, e o número de iluminuras é menor. A página à mostra, com os desenhos na margem, exibe serpentes e aracnídeos – sua morfologia parece uma extensão da letra do copista.
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Desenhos feitos à mão, que são cópias de gravuras já impressas, que são cópias de desenhos à mão, que podem ser um retrato da natureza viva ou apenas a memória de um sonho. Se hoje eu topasse com um livro desses na estante de uma livraria, diria que é uma obra híbrida – de gênero indeterminado. Um misto de catálogo e ficção. Um bestiário medieval, mas também o esboço de um tratado científico. Faz descrições fantásticas, ativa elementos religiosos; tem também alguma pretensão de poesia. Não há rigor classificatório, mas há uma proposta estética. Assim, se os desenhos nem sempre correspondem aos textos, essa discrepância me parece muito literária. Se quimeras e grifos se misturam com abelhas e ursos, acomodados com perícia e naturalidade, vejo aí uma habilidade combinatória. No manuscrito de Harvard, o espaço para uma miniatura – um pássaro oriental – foi deixado propositalmente em branco, e a nota lateral atribui a omissão à ignorância geral sobre a ave. Tanto a omissão quanto o comentário soam como artifícios narrativos.
Um códice de cor dourada me atrai. A capa é brilhosa, encerada – uma cabeça de leão em cada um dos cantos. Trata-se do manuscrito Grec 2737, da Biblioteca Nacional da França. A lombada se alonga nas pontas, como se tivesse orelhas – é o que chamam de coifa, detalhe próprio do estilo grego. Os arabescos me lembram algo das Mil e Uma Noites, mas o compêndio é de guerra e caça, além de trazer o poema de Philes. É certo que o bestiário, assim como outros manuscritos de luxo, servia menos à pesquisa e à leitura do que a um capricho aristocrático – um fetiche, um modo de presentear. Talvez o bestiário de Philes estivesse em moda na corte, e não saberemos por quê. De qualquer maneira, sempre imagino que a posse de um manuscrito como esse, valioso como objeto ou fonte de conhecimento, devia proporcionar, diante do livro impresso, com sua mecânica vulgar, a sensação de um poderio perdido, tal como temos hoje ao ver um Houaiss em cima da mesa. Me parece que a literatura, e o romance em particular, não se desgarraram desse fascínio; continuam a incorporar e a encenar a mesma cisão – toda vez que evocam um manuscrito perdido.
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Ao longo da exposição, você para, observa o livro aberto, completa a curiosidade folheando a versão digital. O contraste entre os velhos códices e as fontes digitais acaba funcionando como uma provocação entre duas tecnologias. Retirar o livro de seu lugar, da segurança da estante, é enfim expô-lo à inquirição dos dias, de certo modo molestá-lo e observar até que ponto um artefato de quinhentos anos é capaz de responder a uma pergunta que lhe fazemos agora. Um teste de resistência. Forçar o livro, submetê-lo a uma sabatina, emboscá-lo. Mas também afastá-lo da guarda resistente e feroz dos bibliotecários – dar a ele a chance de respirar.
V
Em uma edição de 1840 da Le Magasin Pittoresque, uma revista de variedades que circulou na França durante o século xix, e que hoje está disponível na internet, pode-se ler, na pág. 104, uma pequenina nota sobre a expressão, corrente em francês, “escrever como um anjo” (écrire comme un ange). Sua origem estaria associada ao nome de Ângelo Vergécio, e à ideia de perfeição caligráfica por ele evocada. O trocadilho é lembrado também em um importante dicionário de escribas publicado em Londres por John Bradley em 1889. Trata-se, bem provavelmente, de uma inferência equivocada, entre tantas outras, um eco distorcido de comentários nem sempre confiáveis feitos na borda dos códices sobre Vergécio e seu trabalho.
É curioso como esses pequenos registros de leitores e bibliotecários, encolhidos, discretos, sobrevivem como uma espécie de conversa de bastidores, ao pé da orelha, um cochicho entre um livro e outro ao longo dos séculos, na periferia das páginas. Margens, rodapés; folhas de guarda, colofões. Estaria aí, nesses cantos não domesticados do livro, onde vozes distintas se misturam sem hierarquia e sem pudor, uma espécie de nascedouro de fantasmas, um corredor estreito e esfumaçado onde, não havendo distinção entre a autoridade e sua sombra, a história pode difundir livremente suas imposturas e a ficção recrutar alguns personagens?
Seja como for, a letra de Vergécio faz jus à fama, sobretudo (me arrisco a dizer) diante da herança de uma escrita gótica, pesada e reta, incapaz de proporcionar a ilusão de continuidade e maciez própria das letras cursivas, como já tinha percebido, algumas décadas antes, o editor Aldo Manuzio. A exposição mostra vários códices feitos por Vergécio para a realeza – para um cardeal, para amigos do rei, para Catarina de Médici. Capas em marroquim, medalhões pintados à mão, filigranas em forma de flecha ou estrela. A letra do copista integra essa arte. Detenho-me, por exemplo, em um exemplar de Antiguidades Romanas, de Dionísio de Halicarnasso. O manuscrito é de 1540 e foi oferecido por Vergécio a Francisco I; a encadernação, porém, veio dez anos depois, já sob Henrique II. O suporte transparente permite ver a fineza da capa – o couro amarronzado, com detalhes em dourado, e o medalhão vermelho no centro, com a heráldica de Henrique II. O livro está aberto no frontispício. Tal como em todas as cópias de Vergécio, a letra é de uma sobriedade diplomática – sem tremor, sem afetação. Ligeiramente inclinada, é segura, uniforme, simétrica, mas ao mesmo tempo plástica e abobadada. A sinuosidade do traço, dos acentos, com ganchos suaves e respingos, parece dar uma espécie de inteligência gráfica à escrita, especialmente se você a confronta com a dos outros copistas da época.
Para quem não conhece o grego, como eu, e assim pode admirar a caligrafia sem ser molestado pelo significado, o efeito pictórico é ainda mais intenso. Letras e gravuras se aproximam, reagem juntas. A impossibilidade de compreender o que está dito ali, a ignorância da língua, que impede o visitante leigo de saltar para dentro da outra cultura, não me deixa de todo inibido ou frustrado. Pois há algo nessa insuficiência, nesse limite, que acaba me colocando em uma posição singular – a posição extrema de um leitor. Passo em revista a série dos bestiários. Se ali está, de fato, um poema, um poema em versos jâmbicos, cujo ritmo não posso sintonizar, haverá nele, certamente, um quinhão de obscuridade, da obscuridade que é vital a todo poema. Ainda que não consiga lê-lo, explorar seus sons, seus ritos, serei seu leitor extremo, seu não leitor. Flertar com o obscuro – não é essa, afinal, a função crucial do leitor de poemas?
VI
Não foi sem razão, pois, que a letra de Vergécio foi escolhida como modelo para os caracteres gregos que Claude Garamond desenhou e fundiu por encomenda de Francisco I – os grecs du roi –, que foram usados na impressão de livros régios a cargo de Robert Estienne. Vergécio não apenas empresta a caligrafia; ele também orienta o trabalho de Garamond. Estienne cuida de imprimir.
O primeiro volume impresso com os tipos reais em grego foi a História Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia, em 1544. Na epígrafe, dedicada ao rei, Estienne se refere aos “mais hábeis artífices” encarregados de preparar os caracteres “de forma moderna e elegante”. O exemplar da exposição não precisou de traslado: mantido no setor de impressos raros da Biblioteca François Mitterrand, teve apenas de pegar o elevador, pulando do piso inferior para o andar onde se emparelham os galhos mais altos das árvores do jardim. Se o visitante estiver cansado, aliás, pode sair da galeria, pegar um expresso no Café des Globes e ir para a sacada: vai ver plantas trazidas de toda a França, presas ao chão por cabos de aço – parecem querer levitar.
A comparação é inevitável. Você observa o livro impresso, volta aos manuscritos. Tal como na caligrafia de Vergécio, os caracteres de Garamond se ligam muitas vezes uns aos outros, de forma sutil, conjugando-se em um único tipo. São as famosas ligaduras. O esforço para imitar o modelo é tão óbvio que, em uma olhada rápida, quase não dá para saber qual texto é impresso, qual é feito à mão. Mesmo a decoração, do gravurista real Geoffroy Tory, não parece muito distante das vinhetas características dos códices do copista.
Depois da História Eclesiástica, Garamond gravou mais duas séries de tipos gregos para o rei, que foram usadas, em 1546 e 1550, em edições do Novo Testamento. Um bastão enroscado por um ramo de oliva e por uma serpente aparece como marca das publicações. Garamond gravou também vários tipos romanos, que depois de sua morte se disseminaram pela Europa e foram a base para fontes modernas. Alguns desses tipos foram parar no Museu Plantin-Moretus, na Antuérpia. Já as 1 327 punções originais dos grecs du roi encontram-se na Imprimerie Nationale. Infelizmente, nenhuma delas foi trazida para a exposição em Paris.
Início dos anos 1550. Em seu ateliê, Garamond, tipógrafo já experiente e conhecido, concentra-se no desenho de mais um tipo. É o romano Parangon, de corpo médio, destinado à impressão de uma gramática francesa. As letras são regulares, leves, ritmadas. Se um leitor pudesse testá-las, medir perante elas a fadiga dos olhos, provavelmente piscaria pouco, e responderia ao texto com prazer. Garamond faz seu rascunho: molda a curva do “s”, que seria como um sigma; prolonga a cauda do “Q”, que lembra a de um fi grego; arredonda o pé do “y”, e eis um lambda invertido. Seu alfabeto é romano – a coreografia, pelo menos em parte, é grega. Em algum momento, Garamond se dá conta de que opera ali uma cadência emprestada, o ruído de outra escrita à qual ele se habitou e que agora o conduz. Essa contaminação, espontânea, sorrateira, vem das lições que Ângelo Vergécio, calígrafo real, lhe ensinou. Garamond faz a curva do “b”, a serifa do “k”; dá um espaço, respira. Tal como Vergécio injetou no francês seu sotaque cretense, tal como a uncial grega inspirou os primeiros cristãos a criar a uncial latina, Garamond inscreve na moderna tipografia ocidental um breve acento grego.
Na década de 80, um grupo de designers americanos visita o Museu Plantin-Moretus. Querem criar uma fonte nova, de alta tecnologia, com base diretamente nas espécies clássicas. Fotografam e estudam várias peças originais do século xvi. Pesquisam ainda um mostruário de fontes editado em Frankfurt em 1592 – uma referência para vários tipógrafos. Entre as espécies disponíveis, preferem a Parangon. E da investigação quase microscópica de seus traços surge a Adobe Garamond. A Parangon renasce como Garamond; a sombra de Vergécio vem junto – talvez você a perceba agora.
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Nesse ponto, é legítimo indagar se tal conclusão é mesmo admissível, se a ideia de uma inflexão da letra grega sobre a fonte romana, que usei como isca para capturar sua atenção já no princípio deste ensaio, e que atrelaria Vergécio à leitura deste texto, é mesmo verdadeira, ou apenas uma fantasia inócua. Se nada na exposição, nem em seu robusto catálogo, menciona esse detalhe, quem sou eu, sem a credencial de um estudioso, para sugeri-lo?
Ora, seria o caso então de lembrar que isto é um ensaio, e se é um ensaio, é permitido provocar e recuar, afirmar e desdizer, e conjecturar à vontade; se isto é um ensaio, é permitido gaguejar, pesar e repesar, tentar e corrigir, incendiar e pôr-se em fuga; é permitido imaginar e duvidar, e isso se pode fazer de forma explícita ou camuflada, como puro exercício fabulatório ou reflexivo; se isto é um ensaio, é permitido não ter autoridade, como não têm autoridade os apontamentos e os rabiscos em um caderno; se isto é um ensaio, cada frase é uma pergunta, cada passagem, cada cena é uma pergunta, cada peripécia ou argumento é uma pergunta, sempre uma pergunta disfarçada, e todo o ensaio é um manto de perguntas, e seu único compromisso é com perguntar e retificar a pergunta, de modo que não se conclua. Se isto é um ensaio, não é como a construção de um andaime, uma armação garantida pelo cálculo e verticalidade, com a função de sustentar quem aos poucos se eleva; se isto é um ensaio, é preciso lê-lo como quem entra em um jardim noturno, tateando o vulto das flores e dos bichos, e assim cria ilusões precárias e sucessivas, com o único propósito de perder-se nelas ou testar seu alcance, ou de saltar de uma para outra, ou a qualquer momento despencar de tal maneira que enfim flerte com a verdade, naquele ponto em que, sem prova ou documento, só a alucinação é capaz de atingir o centro nervoso da descoberta. Se você escalou seu andaime com lógica, módulo por módulo, encaixando um painel no outro, e no topo, ainda atado, não consegue ver o horizonte, é nessa falta que você deve deixar passar o vento incerto das coisas incertas, e correr o risco. Se isto é um ensaio, é permitido enganar e indicar o engano, indagar e voltar a indagar, e ao fim se verá no caderno uma coleção de setas. Se isto é um ensaio, é permitido a mim e a você, mesmo sem saber nenhuma palavra em grego, admirar livremente esses manuscritos esplêndidos, e logo descobrir que a letra gama é o nó de uma corda, e que a curva do ômega oculta o casco de uma gôndola. Ao fim, apenas navios que partem – e os cães de Creta no porto. É isto um ensaio?
VII
Quem repara nesses livros, feitos com tanto capricho, a tinta domesticada, as linhas sem rasura, não pode deixar de pensar na dureza do trabalho dos copistas. “Três dedos trabalham, o corpo inteiro dói.” “As costas arqueiam, as costelas se retraem, a escrita causa ao corpo todo tipo de desconforto.” Frases assim, deixadas à margem ou no colofão dos códices medievais, testemunham a herança exaustiva que os monastérios legaram a Vergécio. A exposição, porém, explora algo mais, um mecanismo que vai além do aspecto físico e que diz respeito ao processo intelectual de edição dos textos – desde o primeiro rascunho até o que se poderia chamar de exemplar de apresentação.
Algumas pistas sobre como era o método de Vergécio são dadas pelas cartas que ele enviou já no fim da vida a Henri de Mesmes, conselheiro de Estado do rei Henrique II e interlocutor de Montaigne. Escritas com letra garranchuda e displicente, própria de quem tem pressa, as cartas estão agrupadas na última parte da exposição, talvez a mais exigente para o visitante. Nada ali, diga-se de passagem, é exatamente um entretenimento. Alphonse Dain, um helenista francês da primeira metade do século XX, investigou essas cartas e os procedimentos do copista; seu nome é homenageado com várias citações nos painéis.
Para entender como Vergécio estabelecia os seus textos, Dain estuda os manuscritos de um tratado militar, o Tactica Theoria, de Eliano, que Vergécio teria copiado pelo menos cinco vezes. A primeira versão, nos diz Dain, é de antes de 1540, e corresponde ao que hoje é identificado como manuscrito Grec 2526 da Biblioteca Nacional da França. Trata-se de um rascunho – uma espécie de cópia embrionária feita a partir de um exemplar medieval desconhecido. Esse esboço – que Vergécio abandonaria mais tarde – foi cotejado com outras cópias e submetido a correções. Vergécio comanda três revisões do texto, colacionando-o com uma tradução latina e com outra fonte grega. Teria havido ainda uma quarta revisão, executada diretamente por Vergécio, em que ele decidia pendências e contradições de sua equipe de filólogos. Eis aí – para vibração dos editores e revisores que visitam a exposição – uma verdadeira oficina de preparação de originais. Apenas depois dessa série de intervenções é que Vergécio chega a seu exemplar de referência – segundo Dain, o Scorialensis Ф-II-2, cedido para a exposição pela biblioteca do Escorial. Essa seria a matriz de trabalho a partir da qual os manuscritos encomendados eram, enfim com todo o esmero, preparados. Foi com base nessa matriz que Vergécio teria confeccionado, em 1549, a cópia suntuosa destinada a Henrique II, com encadernação feita em Fontainebleau – o Grec 2443. Podemos admirar a primeira página do livro, uma iluminura de guerra acima do título. A letra de Vergécio está impecável. Entretanto, não me iludo com a ideia de conclusão – a próxima versão já seria diferente.
Quando passo em revista essas séries copiadas e emendadas, e depois recopiadas, e as edições requintadas que circularam a partir delas, é difícil não as associar a escritores como, por exemplo, Flaubert, que corroeu a própria vida com a ficção interminável de dois copistas, ou Kafka, que fez dos seus diários um romance inconcluso – e deixou inconclusos todos os seus romances. Mas penso, especialmente, em Borges, que concebeu a reescrita como fórmula para uma obra, uma rede de textos publicados, alterados e republicados durante décadas. Borges é o escriba que, tal como Vergécio, edita cinco versões de um mesmo texto, o “Homem da esquina rosada”; Borges é o escriba que publica “O imortal”, a autobiografia de um escriba – Homero – e da própria narrativa, emendada e retificada ao longo de 2 mil anos, até atingir o leitor. Sempre penso em Borges como o escritor que transpôs o regime medieval de escrita para dentro do mundo tipográfico e encenou o jogo entre as duas eras (como quem esquece um manuscrito dentro de um livro impresso), já prenunciando, porém, a que viria depois. Poderia pensar também em Proust ou em Musil, em Mallarmé e em Pessoa, ou em Macedonio Fernández, em todos os escritores adoecidos pelos rascunhos e inconformados com o fim, mas acabo atormentado mesmo pela minha pobre contingência, pelos baldes de notas que deixei em casa, no Brasil, e pelas que continuo a fazer ao caminhar por Paris, notas que por definição são inacabadas, flechas lançadas e suspensas no ar, notas que acumulo para um livro que não sei qual é.
Na árvore de cópias feitas por Vergécio, algo de irônico une a família de Eliano à do bestiário de Manuel Philes. É o que descubro com a ajuda da curadora da exposição, que me aponta o manuscrito Grec 2526. Ali estão, costurados sob um mesmo caderno, o início e o fim da carreira do copista: o esboço primitivo do tratado de Eliano (dos anos 1530) e a última versão do bestiário (de 1568). O exemplar do De Animalium Proprietate, como era de se esperar, não chegou a ser concluído – a parte reservada às iluminuras permanece limpa. Tal como os romances de Kafka, tal como a enciclopédia de Bouvard e Pécuchet, esse último golpe em branco não é obra da morte ou do acaso. O inacabamento – sua fórmula – está nesses livros desde a primeira frase, e talvez seja anterior a eles. O inacabamento é um gênero literário.
VIII
A imagem do copista como criatura obediente e passiva, que reproduz de forma mecânica e sem contestação o original antigo, é certamente desmentida pela postura de Ângelo Vergécio. Por um lado, se lhe cai nas mãos um texto cheio de erros, sua primeira reação pode ser a de recusa. Ele se negará a copiar. É o que ocorre, por exemplo, diante de um volume de poemas órficos que lhe é enviado por Henri de Mesmes. Em breve carta ao amigo, Vergécio se diz “tomado de vertigem” pelo “oceano de erros” que o texto contém, e assim “reteve a mão” que executaria a tarefa. Estaria aí uma espécie de precursor de Bartleby, o personagem escrivão de Herman Melville que prefere não mais copiar e com isso escava em torno de si um abismo que atrairá leitores por mais de um século? Por outro lado, ao fazer o seu trabalho, Vergécio está propenso a extrapolar. Emenda e altera, faz interpolações e acréscimos, insere trechos estranhos ao modelo. Foge, sem dúvida, ao esquema monástico de funções descrito por são Boaventura cerca de trezentos anos antes, segundo o qual o copista, na composição de um livro, deveria limitar-se a “escrever palavras dos outros, sem adicionar nada nem mudar nada”. Vergécio avança, e acaba assumindo também os outros três papéis – o de comentador, o de compilador e, de certo modo, o de autor. Nas cópias que produziu do bestiário, afirma Dain, Vergécio insere por sua conta algumas dezenas de versos inexistentes no poema original de Manuel Philes.
Se fôssemos considerar o ponto de vista de Poggio Bracciolini, erudito que viveu cem anos antes e cedeu sua caligrafia para os tipos de Aldo Manuzio, Vergécio poderia receber a absurda pecha de “excremento do mundo”. Mas não estava sozinho. Suas fraudes eram diminutas perto das de Constantino Paleokappa, seu colega em Fontainebleau, reconhecido como notório falsificador. Vejo um exemplar de seiscentas páginas do intitulado Violarium, suposto tratado mitológico copiado por Paleokappa e atribuído a Eudócia Augusta – imperatriz romana em Constantinopla nos primórdios da era bizantina. O livro, fico sabendo, não passa de um embuste, uma colagem de dicionários antigos; o propósito da autoria falsa seria, provavelmente, aumentar o valor de venda da cópia. Jacob Diasorinus, o terceiro copista grego em Fontainebleau, também se meteu em farsas. Quem me conta os detalhes é a curadora, enquanto tomamos um café. Poeta ocasional, conhecedor de gramática, chegou a trabalhar em uma botica em Veneza – para saldar dívidas, ela diz. Me agrada saber desse percurso, de alguém que, como eu, desistiu da escola de farmácia para manipular palavras.
Da recusa radical à invenção. É certo que Vergécio não compôs uma obra literária. Seus procedimentos, no entanto, os gestos com que intervém no texto, compõem um espaço criativo que de certo modo antecipa o jogo da literatura moderna – uma literatura com a mania incessante de rasurar e citar, de se autoindagar, de converter o autor em personagem e o livro em objeto da própria ficção, como se de certo modo nunca tivéssemos nos livrado completamente do manuscrito, como se ainda houvesse em cada livro a nostalgia do original, ou agora talvez apenas a nostalgia das coisas concretas – a nostalgia da nostalgia.
Penso na condição do escritor, aquele que simplesmente em algum momento é designado como tal, num voo tão traiçoeiro quanto incerto. A posição do copista, imagino, é o princípio a que todo escritor deveria recuar – não por ter aí uma saída óbvia diante da página em branco, mas sim para recuperar aquele estado vital de iminência sem o qual o desvio e o erro, chave para tornar-se outro, não acontecem. É no lugar do copista – obrigado a renunciar à autoridade – que se pode lavar a mão com água fresca, fruir a expectativa de algo por vir, os apontamentos sem solução, um tremor labial ou um balbucio, tal como o da criança aprendendo a falar ou o do tradutor que não imergiu por completo no novo idioma. Para tornar-se escritor, é preciso sempre se tornar escriba.
IX
Como toda figura de letras que se preze, Vergécio parece ter vivido às voltas com dívidas e problemas financeiros, apesar dos estipêndios reais – que de qualquer modo não eram regulares. Alguns documentos mostram que ele foi condenado em um processo judicial e até passou uma temporada na cadeia. O motivo não é claro; tendo a crer que se relacione com empréstimos não quitados. Não resisto a imaginar Vergécio como parte de uma comunidade literária de endividados, fértil e longeva, que inclui desde escreventes e revisores pés-rapados até gente da estirpe de Baudelaire, Balzac e Dostoiévski. A lista, como se sabe, é imensa. As correspondências dão as pistas de seu desespero. Em uma cópia feita por Vergécio do Quadrivium, um livro de ciências matemáticas de Jorge Paquimeres, historiador bizantino, vemos, em uma tira de pergaminho colada na folha de rosto, uma ordem de Francisco I para o pagamento a Vergécio de uma pensão de 225 livre tournois, algo equivalente a 18 315 euros – se é que dá para acreditar no cálculo do conversor. A data é janeiro de 1539, mas o valor é retroativo a um ano. Certamente um alívio, para quem tinha acabado de chegar a Paris. Já em 1566, Henri de Mesmes envia a Michel de L’Hôpital, a pedido do próprio Vergécio, uma carta em que suplica um auxílio pecuniário da corte para o copista, “esse pobre grego velho que nos ensinou todos a escrever”, ele diz. Para quem, depois de ter visitado toda a exposição, já está íntimo de Vergécio, a carta surpreende, e pode até emocionar. “Não é honroso para a França que um personagem tão raro morra de fome aqui”, escreve De Mesmes, em um francês legível. Uma nota: os missivistas, De Mesmes e De L’Hôpital, eram amigos; ambos tinham recebido dedicatórias de Montaigne – em volumes da obra de La Boétie por ele editada. Vergécio morreria três anos depois. Livros gregos foram sua única herança material.
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Não é por outra razão – a necessidade de sobreviver – que Vergécio se envolve em tantas atividades ao longo da vida. Além de cuidar da biblioteca real e produzir livros para a corte, empenha-se em vender cópias do próprio cardápio. Traduz, edita, dá aulas em várias famílias. Vivia nessa zona cinzenta que é própria dos funcionários ilustrados, cuja moeda é o conhecimento, mas sem ambição de poder. Se tento vislumbrar seu rosto, sou logo arrastado pela gravidade dos que vieram depois dele. Sabemos que, apesar de sua relativa erudição, nunca aprendeu direito o francês. Penso então em “um homem acabado e terroso, de olhos cinza e barba cinza, de traços singularmente vagos”, que “manejava com fluidez e ignorância várias línguas”. Mas esse é Cartaphilus, o antiquário que, no conto de Borges, narra a história do imortal. Penso também em um sujeito “levemente arrumado, lamentavelmente respeitável, extremamente desamparado”, e esse é Bartleby. Chego a projetar nele um traço de ingenuidade, uma certa gagueira, e o vejo com um traje “meio pardo e brancacento” – como era o de Akaki Akakievitch, personagem de Gógol. Se em algum momento, porém, fantasio uma figura magra e de óculos, de camisa barata e calça jeans, fazendo anotações obsessivas em um caderninho, é claro que estou pensando em um dos meus amigos revisores a quem sempre recorro no Brasil.
Anjo, mensageiro. Ângelo Vergécio pode ser o que vem embutido no seu nome. Sua figura evoca, pela etimologia e pela vida, o mito de Hermes, o deus versátil, ambíguo, comerciante de palavras, pai da escrita e dos números, protetor dos tradutores, dos ladrões. Hermes, que começou no Egito com Thot e se confunde com Mercúrio. É Hermes quem, com suas asas velozes, vai trafegar na linha de fronteira e mediação que é própria dos escribas – entre um deus (um rei, um governante) e o homem comum, a língua materna e a estrangeira, o original e a cópia, o manuscrito e o livro. Encena o papel de autor, encena o de leitor. É o deus dos umbrais, da noite, das passagens. Intérprete dos vivos, condutor dos mortos. Como Hermes, Vergécio, a meio caminho entre a história e a ficção, é, em todos os sentidos, um duplo. Talvez por isso não se devesse considerar tão casual a edição que fez do Poimandres, atribuído a Hermes Trismegisto, o livro que reconcilia os escribas e os alquimistas, os manipuladores de letras e os de metais. Impresso em 1554 por Guillaume Morel, a edição é bilíngue; Vergécio teria feito a tradução para o grego a partir do texto em latim de Marsilio Ficino – base de consulta para as da modernidade.
Além de Ângelo, Vergécio. Se a raiz desse sobrenome for uma importação do latim, significará verga – cajado, bastão, ou mesmo cálamo. E então teríamos em “Ângelo Vergécio”, como em Hermes, “um mensageiro com seu cajado”. Tal coincidência, tão redonda quanto perigosa, poderia funcionar como uma chave para os místicos.
X
Ângelo Vergécio morreu em 1569. Ainda no século XVII, e mesmo depois, haveria copistas em atividade na França e na Europa, seja no ofício religioso, preparando volumes eclesiásticos especiais, seja no circuito particular, quando não no clandestino, atendendo a escritores desejosos de manter seu nome – ou o título – fora da grande circulação dos impressos. De certo modo, os copistas existem até hoje, se consideramos como tais, com maior ou menor grau de parentesco, os seus herdeiros – escreventes e notários, preparadores de texto, editores, revisores, profissionais do meio burocrático ou editorial. Mais que isso, talvez esteja a ponto de se consolidar uma nova e assombrosa sorte de copistas: todos os que, copiando e colando, mas já esvaziados de qualquer sacrifício ou duração, transmitem textos alheios em suas redes de comunicação virtual. São esses os que saturam a máquina de narrar.
Le Dernier des Copistes é um título simbólico, uma escolha provocativa da curadora. Vergécio não foi precisamente o último dos copistas tradicionais. Entretanto, ao deixar gravada sua letra no papel e no chumbo, nos livros manuscritos e nos impressos, tornou-se um personagem de duas eras, alguém que, para ser o último, precisava ser de certo modo o primeiro. Vergécio foi um duplo de duas grandes épocas, crepuscular e nascente, inscrito no passado medieval e no futuro moderno e fazendo a passagem entre eles. Vergécio foi ao mesmo tempo um calígrafo e o fantasma desse calígrafo, um copista e o fantasma desse copista. Sua letra tornou-se o fantasma de sua letra (pode um anjo converter-se em fantasma?). Como acontece a todas as criaturas moribundas, prestes a morrer, aquelas que já não pertencem mais a este mundo, e cujos olhos surgem de repente azulados e opacos, anunciando a chegada de seu espectro, Vergécio poderia ser também aquele que encarna a solidão monumental dos copistas, sua longa e interminável solidão, a monástica e depois a urbana – e agora, quem sabe, a virtual. Uma melancolia de “origem cósmica”, própria desse “velho profissional da tristeza”, diria o amanuense Belmiro, personagem de Cyro dos Anjos.
O livro manuscrito, tal como o cabelo ou as unhas, é um diário do corpo; carrega em cada linha, desde o início, o seu tempo. O livro impresso segue outro termo – suas páginas só começam a envelhecer com a chegada do leitor. Se o livro, porém, deixa de ter corpo, se os dedos de quem lê não podem tocar suas páginas, porque não há páginas, se o texto é uma luminescência provisória projetada numa tela, que logo se torna outra tela, com outros pigmentos e outra luz, então o livro é o fantasma do livro. E seu único tempo será o da leitura.
Se você lê este texto, um texto que, antes de ser despachado, com o toque de um dedo, do quarto de um hotel vagabundo em Paris para o escritório de uma revista no Brasil, perdeu vários de seus rascunhos precipitados no vácuo de um computador, se você lê este texto, está enfim diante de uma confraria de fantasmas. Aqui, o fantasma da minha voz se confunde com o da letra de Vergécio, mas somente esta pode ser vista em uma exposição.
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