Num filme sobre o uso da bomba de napalm no Vietnã, Farocki queimou o braço com um cigarro para questionar o espectador que fecha os olhos diante de cenas de violência, mas tolera a guerra FOTO: CORTESIA DE HARUN FAROCKI FILMPRODUKTION
O último radical
A trajetória de Harun Farocki, um cineasta célebre e desconhecido
Eduardo Escorel | Edição 96, Setembro 2014
Harun Farocki esteve no Rio de Janeiro em 2012, dois anos depois da primeira mostra brasileira de parte significativa de seus mais de 100 filmes ter sido realizada em São Paulo. Durante a retrospectiva, passou meio despercebida a première de Serious Games I – IV, na 29ª Bienal. Nessa videoinstalação, o dublê de cineasta e videoartista examina o uso da tecnologia de videogame e de animação computadorizada no treinamento de soldados americanos. Além de apresentar simulações de combate, eventos vividos no Afeganistão são reencenados para serem usados no tratamento de veteranos de guerra com transtorno de estresse pós-traumático.
Mas quem é Farocki? A essa pergunta, feita em 1981 pela revista Cahiers du Cinéma, a resposta foi “não sei”. Onze anos depois, na estreia de Videogramas de uma Revolução, em Berlim, havia apenas um espectador em cada um dos dois cinemas onde estava sendo exibido o 64º documentário de Farocki, codirigido pelo romeno Andrei Ujica, sobre as imagens dos dias finais da ditadura de Nicolae Ceausescu, na Romênia. Diante da escassez de público para seus filmes, a partir de 1995 as salas de cinema comercial deixaram de ter primazia para Farocki. Nesse mesmo ano, por encomenda do Museu de Arte Moderna de Lille, ele fez sua primeira videoinstalação, Interface, sobre seu próprio trabalho como cineasta.
Graças às videoinstalações, Farocki estendeu os limites da sua atividade. E, ao se reinventar como cineasta/videoartista, teve boa acolhida no circuito de museus, galerias e grandes exposições. Com isso, seus filmes foram redescobertos e se tornaram referência obrigatória, exibidos em mostras e festivais, estudados e apreciados na universidade.
Ainda assim, em 2012, quando veio ao Brasil pela primeira vez, o jornal O Globo ignorou sua presença, publicando apenas três notas com a programação do evento Harun Farocki e a Política das Imagens, iniciativa do MAR, Museu de Arte do Rio. Foi preciso esperar sua morte para que o jornal lhe reservasse espaço no obituário de 31 de julho, incluindo sua fotografia e um perfil biográfico, além da informação de que morrera um dia antes, aos 70 anos.
Farocki veio ao Rio com sua companheira, a videoartista Antje Ehmann. Durante a mostra dos seus filmes, orientaram uma oficina e deram uma conferência. Numa outra palestra, a cargo apenas de Farocki, o auditório de 180 lugares da Cinemateca do Museu de Arte Moderna ficou repleto para ouvir o artista que, em 1993, definira a si mesmo como o “mais conhecido cineasta desconhecido da Alemanha” e, nos vinte anos seguintes, se tornara uma espécie estranha de celebridade. Naquela tarde, porém, houve quem se decepcionasse com ele. Sussurrou, parecia impaciente, foi sucinto, burocrático, hesitante, repetitivo, às vezes incompreensível e, ao menos uma vez, francamente rude.
Essa impressão negativa difere frontalmente dos depoimentos de alguns dos dezessete participantes da oficina carioca. Realizada no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, ela integrava o projeto “Trabalho em plano único”, iniciado no ano anterior em Lisboa e programado para continuar em outras treze cidades – Bangalore, Genebra, Tel Aviv, Berlim, Boston, Hanói, entre outras. A atividade proposta nas oficinas das diferentes cidades era gravar situações de trabalho em um único plano de um a dois minutos de duração.
Dias antes do início da oficina no Rio, Farocki mandou um e-mail aos participantes explicando o objetivo de “Trabalho em plano único”: “É preciso encontrar um momento de densidade e um ponto de vista a partir do qual um processo pode ser bem observado.” E pedia: “Por favor, pensem em trabalhos que vocês mesmos tenham feito ou em empregos nos quais seus amigos estejam trabalhando.” Dizia ainda: “O Brasil é um país com muita disparidade. Produz aviões e ao mesmo tempo há pessoas vivendo quase fora da economia formal. Vocês devem tentar encontrar exemplos de ambos, assim como de produção imaterial – educação, marketing, publicidade, indústria da beleza.”
No primeiro dia, Farocki se apresentou como se não soubéssemos quem ele era. [1] Muito reservado, não aceitava o papel de artista consagrado. Obcecado com o trabalho da oficina, ele parecia ter definido mentalmente o que esperava obter. Como se os planos a serem feitos pairassem no ar quente da sala, prontos para serem captados.
Foram exibidos filmes realizados nas oficinas anteriores. Houve um debate sobre a maneira de o trabalho ser representado em cada um deles; as características de uma cena gravada em um único plano, sem cortes; a composição do enquadramento; o que constitui um evento; o tempo de espera e o instante do corte; o que assegura a integridade de cada filme.
Como filmar situações repetitivas de trabalho, valorizar gestos quase mecânicos de maneira criativa, interessante, formando uma narrativa com começo, meio e fim? A importância de ter um ponto de vista, forjar um olhar diferente, por oposição à ausência de perspectiva do documentário contemporâneo, foram outros tópicos destacados.
Essencialmente prática, a oficina consistiu em gravar, ver o resultado, ouvir as observações de Farocki e Ehmann, e continuar gravando quando necessário. Recomendações eram feitas sobre a captação do som, a movimentação da câmera e o uso do tripé. O recado implícito ficava claro: “É cinema!”
Embora pessoalmente estivesse mais interessado em indústrias modernas, ele acolheu bem gravações de atividades artesanais. Quando encontrava alguma coisa que despertava seu interesse, Farocki se entusiasmava. Em um momento perdido no meio de uma cena, notava alguma coisa, às vezes um gesto inesperado. O único plano ao qual não assistiu foi o gravado em uma sala de cirurgia. Virou o rosto assustado quando se deparou com o corpo aberto do paciente.
Algumas vezes ele acompanhou as gravações, mas procurava se manter na posição de orientador. Sublinhava que era essa a sua proposta – criar uma obra sem interferir pessoalmente, de modo direto, no momento de captação das imagens.
O instante exato de iniciar e encerrar cada plano foi muito discutido. Farocki acompanhou a edição e sabia identificar o momento preciso em que o plano devia começar e terminar. Trabalhou na edição dos vídeos o dia todo, sem interrupção, nem para comer.
No encerramento da oficina, os vídeos foram apresentados para um auditório lotado no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica. Apesar de haver algumas demonstrações evidentes de talento, a plateia deu sinais de querer assistir a algo mais animado. Meses depois, para surpresa geral, quinze dos trabalhos realizados no Rio foram selecionados pelo curador do pavilhão latino-americano para integrar a 55ª Bienal de Veneza, entre junho e novembro de 2013.
Para cumprir a etapa final do projeto “Trabalho em plano único”, no primeiro semestre de 2014 Farocki e Ehmann ainda estiveram na Cidade do México, em Hangzhou e Joanesburgo. As oficinas, realizadas em três continentes, acabaram constituindo, junto com Paralelo I – IV, a despedida de Farocki. Ao expor essa última videoinstalação, ele escreveu: “O ciclo Paralelo, dividido em quatro partes, lida com o gênero de imagem produzida por animação computadorizada. Nos filmes há o vento que sopra e o que é produzido por uma máquina de vento. Imagens computadorizadas não têm dois tipos de vento.”
Uma das invenções de Farocki foi simplificar a grafia do próprio sobrenome. Em 1921, seu pai, Abdul Qudus Faroqhi, emigrou da Índia para a Alemanha, onde veio a se casar com a alemã Lili Draugelattis, correspondente de jornais estrangeiros e estudante de medicina. O bombardeio de Berlim, em 1944, levou o casal a ser removido para Nový Jičín, pequena cidade da atual República Tcheca, à época anexada pela Alemanha, onde viveram apenas o tempo necessário para Harun nascer. Repatriados para a Índia, em 1947 se mudaram para Java Oriental, na Indonésia, e só voltaram à Alemanha em 1958, passando a morar em Hamburgo, onde o pai de Harun trabalhou como médico.
Aluno rebelde, Harun era frequentador assíduo de um bar de má fama; depois de fugir várias vezes de casa, mudou para Berlim Ocidental, onde sobreviveu fazendo pequenos serviços. Em 1966, foi aceito na primeira escola de cinema da Alemanha Ocidental, casou e realizou seu primeiro curta-metragem. No ano seguinte, ele e mais cinco colegas foram expulsos da Academia Alemã de Cinema e Televisão (DFFB). Readmitido graças aos protestos dos estudantes, Farocki viajou no verão pela Venezuela e Colômbia à procura da guerrilha, mas não a encontrou. Depois de ter ocupado a Academia com outros quinze estudantes e a rebatizado de Academia Dziga Vertov, mais uma vez foi expulso, em maio de 1968. Voltou como professor, na década de 70, orientando seminários nos quais analisava filmes cena a cena na mesa de montagem.
De 1966 a 1969, Farocki fez nove curtas-metragens. O nono, sua primeira manifestação contra a guerra do Vietnã, se chama Fogo Inextinguível. O título é uma referência à impossibilidade de se apagar o napalm-B, gasolina gelatinosa usada como bomba incendiária. A primeira cena chegou a ser considerada “a mais assombrosa de toda a sua obra”: depois de ler o testemunho que um vietnamita, vítima do bombardeio americano de napalm-B, fez ao Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, o próprio Farocki olha diretamente para a câmera e pergunta: “Como podemos mostrar o napalm em ação e as feridas causadas por ele? Se mostrarmos a imagem de um ferimento de napalm, você fechará os olhos. Primeiro fechará os olhos diante das imagens. Depois fechará seus olhos para a memória. Depois você fechará os olhos para os fatos. Por fim, fechará os olhos para o contexto dos fatos. Se mostrarmos a você uma pessoa com queimaduras de napalm, feriremos seus sentimentos. Se ferirmos seus sentimentos, você terá a sensação de que usamos napalm em você e à sua custa. Nós não podemos a partir daí mostrar senão uma representação muito tênue dos efeitos do napalm.” Enquanto a câmera recua, Farocki apaga um cigarro em seu próprio braço. E a voz em off do narrador informa: “Um cigarro queima a 400ºC. Napalm queima a 3000ºC. Se os espectadores não querem saber nada sobre os efeitos do napalm, é preciso questionar suas responsabilidades pelas razões que levam o napalm a ser usado.”
A seus primeiros filmes de agitação e propaganda com viés didático sucederam-se exercícios rigorosos de observação, como Uma Imagem (1983) e Doutrinamento (1987), nos quais procura abolir qualquer interação entre quem observa e quem é observado, deixando também de recorrer à voz em off. Vieram depois ensaios críticos que interrogam imagens de arquivo, como Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (1988), com uso intensivo de narração em off, substituída em filmes posteriores – como em Intervalo (2007) – por comentários feitos por meio de legendas sobre fundo preto, que se tornaram traço recorrente em sua obra.
A questão central de Farocki é fazer a exegese das imagens e das instituições. Ele se dizia interessado em etimologia e talvez quisesse “exercer uma tática similar [à da etimologia] nos filmes: investigar imagens, desmontá-las para revelar seus componentes”. Para Farocki, era “preciso desconfiar tanto das imagens quanto das palavras. Imagens e palavras são tecidas nos discursos, formando redes de significação. Meu caminho é ir à procura de um sentido camuflado, limpar as imagens dos escombros”.
Participante da oficina “Trabalho em plano único” no Rio, em 2012, Hermano Callou mora atualmente em Hamburgo, onde se prepara para um doutorado. No início do ano, entrevistou Farocki no apartamento dele, em Berlim. “Ele nos serviu café”, conta Hermano, “e conversamos em inglês. Parecia se lembrar bem da experiência do Rio. Foi muito gentil durante o encontro, mas não me pareceu ser fã de entrevistas. As respostas eram francas e diretas, mas sem se dar importância. Desconfiava das perguntas intrincadas e assumia um tom autoirônico quando precisava elaborar as respostas. Apesar de ser conhecido como sério, não possuía nenhuma ‘índole de gravidade’. Riu muito. Em geral do que ele mesmo dizia.”
Sentiremos falta de novos filmes e instalações de Harun Farocki. Em respeito ao comedimento que ele tanto apreciava, isso é o máximo que devemos dizer.
[1] Relato sobre a oficina com base em depoimentos dados para este artigo por Anna Azevedo, Felipe Ribeiro, Frederico Benevides, Hermano Callou, Lucas Ferraço, Luiz Garcia, Paola Barreto, Renata Catharino e Roberto Robalinho, aos quais agradeço.
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