ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
O voto importa
Uma brasileira se engaja com as minorias na Geórgia
Tiago Coelho | Edição 171, Dezembro 2020
Em 2015, a catarinense Renata Temps se mudou para os Estados Unidos com a família. O marido engenheiro havia recebido uma proposta do banco em que trabalhava para ocupar um cargo numa filial norte-americana em Atlanta, capital do estado da Geórgia. O casal chegou no penúltimo ano do governo de Barack Obama e se instalou em Midtown, uma área agitada, boêmia e multicultural da cidade, com muitos museus, bares e lojas. Na vizinhança, avistavam-se bandeiras com as cores do arco-íris, símbolo do movimento LGBTQI+, afixadas em casas e no comércio. Uma família brasileira vivendo num local como aquele era mais uma prova de como Midtown é amigável e aberto à diversidade.
No ano seguinte, ocorreram as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Midtown arrastou seu luto por semanas depois da vitória de Donald Trump, o presidente hostil às minorias. E, por causa do trabalho do marido, a família de Temps precisou se mudar para Marietta, cidade a cerca de 35 km de Atlanta, onde os eleitores tendem tradicionalmente para os candidatos republicanos.
No Brasil, Temps lecionava psicologia em uma universidade privada em Jundiaí, no estado de São Paulo. Nos Estados Unidos, dá aulas particulares de português para norte-americanos. Com a intenção de se integrar à vida comunitária de Marietta, ela se voluntariou para trabalhar na biblioteca da escola do filho. Alguns dias depois, a mãe de um aluno ligou para a direção, dizendo que não queria uma pessoa com sotaque na escola. Temps continuou a atuar na biblioteca, mas evitou se envolver em outras atividades.
Não foi a primeira vez que ela enfrentou a hostilidade de alguns norte-americanos em Marietta, em cujas ruas ela via com frequência desfilarem carros com a bandeira dos estados confederados. “Uma vez, quando eu estava saindo do supermercado, um homem me chamou de lixo e disse: ‘Votei no Trump e ele vai tirar pessoas como você do país’”, contou a professora de 42 anos, que é branca e tem os cabelos ruivos cacheados. “Minha cor não é da mesma paleta de branco que a deles e o meu cabelo é crespo. Quando percebem meu sotaque, aumenta a hostilidade. Essas pessoas sempre detestaram estrangeiros, mas se sentiram mais encorajadas a fazer insultos com a vitória de Trump.”
A professora não fez amizade com nenhum norte-americano em Marietta. Sua rede de amigos é composta basicamente por brasileiros. A exceção é sua professora de inglês, Helen Hobson, que percebeu que Temps defendia teses progressistas nos exercícios de redação e convidou a aluna para participar de movimentos sociais. Um deles as levou a um protesto na frente de um presídio feminino no Condado de Irwin, onde, segundo acusações, estavam sendo feitas cirurgias para extrair o útero de imigrantes latinas presas.
Em setembro passado, Temps se engajou num projeto da ativista afro-americana Stacey Abrams, a primeira mulher negra a se candidatar a governadora da Geórgia, em 2018. Abrams perdeu por uma diferença de 54 723 votos (ou 1,2%) para o republicano Brian Kemp, cuja vitória foi seguida por denúncias de fraude eleitoral.
A cada eleição nos Estados Unidos, o cidadão precisa efetuar um registro e são muitos os estratagemas que podem ser usados por governantes conservadores para afastar eleitores negros ou imigrantes aptos a votar, muitos deles pobres. Os políticos podem alegar disparidades no preenchimento do registro eleitoral, falta de atualização de endereço e de pagamentos de taxas. Mas até a distância das zonas eleitorais é um motivo para as pessoas com poucos recursos desistirem de votar, tanto mais que o voto não é obrigatório nos Estados Unidos.
Há quase uma década, a ativista Stacey Abrams luta contra esses entraves históricos, que são antigos nos Estados Unidos. Desde que foi garantido o direito de voto aos negros, ao fim da Guerra Civil norte-americana, em 1865, políticos dos estados do Sul do país inventam artimanhas para impedi-los de votar.
O trabalho de Temps no projeto de Abrams consiste em ir a comunidades de negros e imigrantes para explicar sobre a importância de fazer o registro eleitoral, preencher corretamente o formulário e evitar tudo que possa servir de pretexto para o embargo do documento. “Por vezes eu ouvi de eleitores pobres que, para fazer o registro, eles teriam que perder horas de trabalho e alguns dólares do salário. Eles diziam que, entre votar e botar comida em casa, ficavam com a segunda opção.”
A Geórgia é um reduto republicano. Nas doze eleições presidenciais anteriores ao pleito deste ano, os democratas venceram apenas duas vezes no estado, onde 60% da população é branca; 32,6%, afro-americana; 9,9%, latino-americana, e 4,4%, asiática. No final de outubro, as pesquisas de opinião indicavam que o democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump estavam tecnicamente empatados.
Em 4 de novembro, dia seguinte à eleição, Trump estava um pouco à frente de Biden no estado. Renata Temps acompanhava a apuração pela tevê. “Não vou aguentar ficar aqui mais quatro anos com medo de ser ofendida, como fui na fila do hospital na semana passada”, disse ela ao marido, Marcelo Temps. “Calma. Esse resultado é dos votos presenciais. Trump fez uma campanha forte para que republicanos votassem presencialmente. Ainda faltam os que foram enviados por correio”, ele ponderou.
Na sexta-feira, dia 6, Biden ultrapassou Trump na Geórgia. Por fim, venceu o republicano, com uma diferença de 12 mil votos. Foi o primeiro candidato presidencial democrata a ganhar as eleições no estado desde Bill Clinton, há 28 anos. “Não foi uma vitória do Biden na Geórgia, mas da luta incansável da Stacey Abrams”, disse Temps.
No sábado, quando as emissoras já projetavam a vitória do democrata, Temps seguiu com Hobson para a cidade de Wood-stock, próxima a Marietta, e foram comemorar diante da igreja à qual a professora está ligada. Ali, Temps ergueu um cartaz com a seguinte frase: Vote matters (O voto importa). Algumas pessoas que passavam no local em caminhonetes gritaram ofensas. FUCK YOU!, berrou um homem. Temps sorriu e gritou de volta: We love you too!