ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Orkut no Haiti evangélico militar mauricinho
A animada campanha de Gabeira, que pode se candidatar a presidente
Mario Sergio Conti e Cristina Tardáguila | Edição 27, Dezembro 2008
Ao contrário das outras metrópoles, as eleições para prefeito no Rio de Janeiro foram animadas e paradoxais. Elas começaram e terminaram com manifestações de rua. Três candidatos se alternaram na preferência da opinião pública. Num universo de 3,6 milhões de cariocas que foram às urnas no segundo turno, a diferença entre o vencedor e o perdedor foi de pouco mais de 55 mil votos.
O índice de abstenção, no entanto, bateu o recorde histórico, ultrapassando a barreira dos 20% de eleitores. Nas zonas pobres, a maior parte dos votos foi para o representante do continuísmo, Eduardo Paes, que teve o apoio de partidos de esquerda (PT e PC do B). Já o candidato reformista, Fernando Gabeira, teve votação consagradora na Zona Sul, a mais rica, e foi apoiado pelos partidos direitistas (PSDB e DEM).
Para Fernando Gabeira, a campanha começou com um jantar no apartamento de Danuza Leão, um dia depois de anunciar a candidatura, e terminou num outro jantar com ela, pouco depois de ter perdido a eleição, dessa vez num restaurante de peixes em Ipanema. “Teve uma hora que eu achei mesmo que ia ganhar, logo depois do primeiro turno”, disse o deputado do PV a Danuza no começo do jantar.
Danuza havia publicado dias antes, na sua coluna na Folha de S.Paulo, comentários ácidos sobre a festa da vitória do governador e do prefeito recém-eleito. “Sergio Cabral, com seu risinho simpático e ishperto de carioca que gosta de samba, futebol e praia, nunca me enganou. E o novo prefeito mauricinho tampouco”, ela escreveu. “Fiquei observando os correligionários que os cercavam, e vi ali o que há de pior na política brasileira: uma gentalha que há anos consegue continuar no poder, e me pergunto como.”
No caso da disputa para prefeito, disse Gabeira à amiga, a continuidade no poder foi garantida pelo recurso à tradição: clientelismo, ataques abaixo da linha da cintura, dinheiro a rodo, uso da máquina do Estado. A campanha de Eduardo Paes ocupou a cidade com propaganda ilegal, que não foi coibida nem pelo governo do Estado nem pela Justiça Eleitoral. Seus comitês distribuíram, nas contas de Gabeira, mais de 1 milhão de panfletos caluniosos. Seus cabos eleitorais, devidamente pagos, apedrejaram carros da campanha do adversário. Em quinze anos de carreira, ele está no seu quinto partido.
Já Gabeira cumpriu as três promessas que fez no primeiro jantar com Danuza, na casa dela: não emporcalharia a cidade com propaganda, não faria ataques pessoais aos adversários, não buscaria alianças espúrias. As três coisas quase o levaram à vitória. E podem muito bem explicar a sua derrota, já que ele deixou que os aliados de Paes o difamassem, não mobilizou os eleitores a lutar nas ruas pela sua vitória, não foi atrás das forças políticas que poderiam ter resolvido a parada em seu favor.
Dito de outra forma: a quase-vitória de Gabeira expressou também um fastio com a política (fluminense e em geral) e, nessa medida, ela foi apolítica. Para o eleitor, o desencanto com a política tradicional pôde se manifestar tanto no voto em Gabeira quanto com a abstenção, que foi altíssima nos bairros onde ele ganhou por mais de 70% dos votos.
Outro sintoma do conteúdo contraditório do voto em Gabeira foi a passeata na Cinelândia, no dia 31 de outubro, organizada pelo Movimento Pró-Democracia. A manifestação, que reuniu cerca de 2 mil pessoas, a maioria jovens, foi convocada e organizada na internet, pelo Orkut. O seu objetivo era protestar contra os panfletos apócrifos e a truculência dos cabos eleitorais de Eduardo Paes. O presidente do Tribunal Regional Eleitoral a chamou de “manifestação de perdedor”, mas Gabeira não teve nada a ver com a sua convocação. Tanto que, ao desfraldar uma bandeira de apoio ao candidato verde, um manifestante foi tão vaiado que teve de guardá-la.
Gabeira ouviu o argumento com atenção, segurando no ar o copo de vinho tinto. E dele discordou: “Com muito realismo, as pessoas me diziam que, se eu chegasse à prefeitura, seria o começo da mudança política.” No mano a mano com os eleitores, ele contou, o que mais lhe pediam era saneamento. “Há áreas haitianas no Rio”, disse ele, que já esteve mais de uma vez em Porto Príncipe, capital do país mais pobre das Américas. “Nelas falta tudo, de esgoto a policiamento, e as grandes vítimas são as crianças.”
Foi numa dessas áreas “haitianas” que houve a primeira manifestação popular da campanha. No dia 14 de junho, um sábado, moradores do Morro da Providência atearam fogo a um ônibus e depredaram outros nove na zona portuária. Na segunda-feira seguinte, uns 250 deles foram até o Comando Militar do Leste, na Central do Brasil, para protestar contra o assassinato de três rapazes do morro. Os três foram mortos por traficantes que os receberam de presente de uma patrulha do Exército. A patrulha de militares, por sua vez, estava a serviço de um “projeto social” bancado pelo governo federal para ajudar o seu candidato oficial, o senador evangélico Marcelo Crivella.
Os manifestantes interromperam o trânsito, pediram justiça aos gritos, chamaram os militares de assassinos, jogaram uma tampa de bueiro num policial – e levaram de volta bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, balas de borracha e cacetadas. No dia seguinte, situação e oposição, evangélicos e católicos, ONGs e sindicatos conseguiram frear a revolta. Prometeram “justiça”. Ninguém foi incriminado pelo assassinato dos três jovens. Crivella não chegou nem ao segundo turno.
E agora, Gabeira? O que fazer com o Rio, esse melé que comporta manifestações de haitianos contra o Exército, passeata de nerds contra a política, abstenção e currais eleitorais, evangélicos com apoio de patrulhas militares, esquerdistas conservadores e reformistas de direita? “É preciso estar perto do povo”, disse ele a Danuza, “sobretudo daqueles que são considerados as classes perigosas, os que não têm nada.”
Quanto aos seus planos pessoais, Gabeira disse que não voltará à Câmara dos Deputados nem se candidatará ao Senado. “Cansei da conversaiada que não vai a lugar nenhum”, disse. E admitiu que, se houver uma correlação favorável, será candidato a presidente em 2010.
Mario Sergio Conti é jornalista e autor de Notícias do Planalto, da Companhia das Letras. Foi diretor de redação de piauí de 2006 a 2011
Cristina Tardáguila é diretora da Agência Lupa e autora do livro A arte do descaso (Intrínseca)