ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Os comunistas estão chegando
Um youtuber entre Marx, Stálin e Caetano
Luigi Mazza | Edição 169, Outubro 2020
A ditadura militar, a censura e o exílio não fizeram de Caetano Veloso um socialista. Mas bastou conhecer Jones Manoel – um jovem professor de história e youtuber do Recife – para que descobrisse, aos 77 anos, o bolchevique que havia dentro de si. Caetano chegou até Manoel por intermédio de um amigo, o cineasta Mauro Lima. Encantou-se e nunca mais foi o mesmo.
Instruído pelo novo camarada, atravessou a quarentena devorando livros de Domenico Losurdo, pensador marxista italiano, e causou uma celeuma nas redes sociais ao confessar, em entrevista a Pedro Bial, na Rede Globo, que a leitura o transformara em outra pessoa – alguém “menos liberaloide” e mais simpático às experiências socialistas do século XX. Tudo, segundo ele, por influência de um “rapaz preto, pernambucano, jovem e muito inteligente”.
A entrevista foi ao ar numa sexta-feira, 4 de setembro, e a bolha intelectual no Twitter entrou em polvorosa no fim de semana. De um lado, comunistas e esquerdistas celebravam o trabalho de Manoel; de outro, democratas liberais acusavam-no de ser stalinista – isto é, partidário de Josef Stálin, líder responsável pelo período de maior repressão e terror da União Soviética, entre os anos 1930 e 1950. Velhas divergências foram desenterradas por obra de um jovem que nasceu numa favela pernambucana em janeiro de 1990, dois meses após a queda do Muro de Berlim, quando o “socialismo real” minguava e os bolcheviques davam seus últimos suspiros.
Jones Manoel, 30 anos, chama atenção pelo físico musculoso. Barbudo e com cabelo black power, tem a fala mansa, sarcástica, e forte sotaque pernambucano. Seu canal de YouTube conta hoje com mais de 117 mil inscritos. Em vídeos que duram de quinze a vinte minutos, ele professa a palavra de Karl Marx e de outros autores da tradição comunista, como Rosa Luxemburgo, Frantz Fanon e Losurdo. Tudo é gravado no apartamento de seu amigo Cauê Araújo, criador da Classe Esquerda, uma plataforma de cursos de formação política. Como Manoel não tem equipamentos de filmagem e som, pega emprestado os do amigo.
O tom professoral dos vídeos contrasta com a mordacidade que Manoel adota nas redes. Somando Twitter, Facebook e Instagram, ele tem mais de 230 mil seguidores. Passa boa parte do dia retuitando comunistas e refutando jornalistas que equiparam radicais de esquerda e de direita. Fã de Losurdo, que escreveu, entre outras obras, Contra-História do Liberalismo, Manoel argumenta que os países capitalistas não têm moral para falar dos socialistas quando o assunto é violência. É perito em rebater críticas à União Soviética. Daí a pecha de stalinista, que o colocou em rota de colisão com intelectuais, entre eles o sociólogo de esquerda Celso Rocha de Barros, e trotskistas, como o youtuber mineiro Gustavo Machado, do canal Orientação Marxista. Para Machado, a retórica de Manoel “desmascara o liberalismo com o objetivo de legitimar os erros do outro lado”.
Questionado sobre isso, Manoel faz um preâmbulo. “Quando uma pessoa se diz liberal, ninguém pergunta se ela apoia os massacres coloniais e os golpes de Estado patrocinados pelos americanos. Já eu, se digo que sou comunista, tenho necessariamente que apoiar os gulags?”, pergunta, referindo-se aos campos de trabalho forçado do período stalinista. E responde, por fim: “Não sou stalinista, sou marxista-leninista. Mas não estou entre os que condenam a experiência soviética em bloco. Hoje em dia, quem não considera Stálin uma encarnação do demônio é logo tachado de stalinista…”
Jones Manoel nasceu na Borborema, uma comunidade de 8 mil habitantes espremida entre dois bairros de classe média alta, no Recife. Hoje, mora em outra favela junto com a mãe, empregada doméstica aposentada – ele não dá detalhes do endereço por temer retaliações. Tinha 11 anos quando o pai, pedreiro e líder comunitário, foi morto com dois tiros durante uma partida de futebol. A polícia nunca descobriu o assassino.
A situação difícil fez com que Manoel começasse a trabalhar na adolescência. Vendeu jornais em sinais de trânsito, entregou lanches e sonhou ser porteiro – “Aí eu podia ficar sentado, sem pegar peso.” Só prestou vestibular por influência do amigo Júlio Santos, de quem ouviu pela primeira vez a expressão “mais-valia”. Esfalfado, recebendo salário mínimo por um trabalho exaustivo, Manoel abraçou o marxismo.
Formou-se em história pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em 2013, depois de participar das Jornadas de Junho, entrou para a Juventude do Partido Comunista Brasileiro (PCB), sigla na qual permanece até hoje. Começou a fazer vídeos em 2017, mas o canal só deslanchou após as eleições de 2018 – quando a esquerda, atropelada pelo bolsonarismo, passou a prestar atenção ao que acontecia no YouTube.
Nos últimos anos, influenciadores como Manoel têm se multiplicado. O canal marxista de maior alcance é o da drag queen Rita Von Hunty (651 mil inscritos). A turma é composta ainda pela socióloga Sabrina Fernandes, do canal Tese Onze (332 mil inscritos); Humberto Matos (101 mil); Laura Sabino (41,6 mil) e Samuel Borges, do Cifra Oculta (24 mil), além de outros canais menores. Todos surgiram de 2016 em diante.
“O PT foi derrubado e seu maior líder foi preso sem que houvesse uma convulsão social. Isso levou a juventude a radicalizar as ideias”, avalia Manoel, listando os fatores que podem explicar o novo boom do marxismo. “Além disso, a poeira do Muro de Berlim já baixou”, diz ele, de forma marota. “A geração que viu a queda da União Soviética é envergonhada, mas a minha geração não sentiu esse baque. A capacidade de difusão do marxismo hoje é muito maior do que já foi.”
Em julho do ano passado, Jones Manoel lançou o livro Revolução Africana – uma coletânea organizada por ele e pelo amigo Gabriel Landi reunindo textos de líderes anticoloniais da África. A obra já vendeu cerca de 9 mil exemplares – um dos quais chegou às mãos de Caetano Veloso. Os dois se conheceram em janeiro deste ano e desde então trocam e-mails. Manoel costuma enviar a ele artigos de geopolítica publicados em portais de esquerda.
Por causa da repercussão do livro e do sucesso no YouTube, Manoel largou as salas de aula – no ano passado, lecionou em uma escola da Polícia Militar no interior da Bahia, emprego concursado – para viver de cursos online e da venda dos livros. Sua ementa mais recente chama-se Domenico Losurdo e Frantz Fanon: Introdução ao Marxismo Anticolonial. São vinte horas de aula online por 70 reais. Ele planeja mais cinco livros até o fim de 2021.
É possível, no entanto, que a política passe à frente da carreira de escritor. O PCB já farejou uma possível candidatura para Manoel. O Partidão hoje não tem deputados nem senadores no Congresso. Nas eleições de 2016, só emplacou um vereador – e zero prefeitos – no Brasil inteiro. Houve conversas para que Manoel fosse lançado vereador por Recife no pleito deste ano, mas o partido desistiu da ideia.
“Nós entendemos que eu gastaria muito tempo na campanha e não conseguiria continuar com meu trabalho de propaganda”, afirma o jovem pernambucano. “A decisão é do partido. Como leninista, sou um militante disciplinado. Se quiserem que eu me candidate a eleição em sindicato ou a presidente da República, eu vou.”
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