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    Começou a mastigar as notas de dinheiro lentamente e, com uma expressão parcimoniosa, explicou ao meu avô que o gosto umedecido das cédulas era meio metálico, parecia até com sangue ILUSTRAÇÃO: PEDRO FRANZ_2020

ficção

Os preços baixaram

Dá uma nota de mil-réis e quero ver ele queimar

Alejandro Chacoff | Edição 161, Fevereiro 2020

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O dinheiro americano era simples. Sua cor e textura evocavam o mesmo tédio de Drexel Hill, nosso bairro na Filadélfia – o verde difuso dos pinheiros, as casas de tijolos idênticas e enfileiradas. O carpete bege macio e os estalinhos metálicos dos aquecedores. No inverno, neve caía e tudo ao redor embranquecia e perdia os contornos. A cor ia embora e alguns meses depois voltava. E essa renovação infinita e superficial, de as coisas mudarem um pouco e sempre voltarem a ser as mesmas, é algo que ainda relaciono com dólares americanos. As notas estão sempre novinhas, como se tivessem acabado de ser impressas; são lisas e gostosas de tocar. É estranho, mas elas têm um ar de inocência. Deve ser proposital, como quase tudo que os americanos fazem.

No voo para São Paulo, e depois para o Mato Grosso, minha mãe falou muito sobre o meu pai. Disse que ele já tinha admitido gostar do Pinochet (uma frase que na época não me dizia muita coisa); que ele não ajudava nem a própria mãe no Chile (ela morava na periferia de Santiago); que ele não sabia cozinhar. Falava como se não o conhecêssemos, como se não tivéssemos passado aqueles anos todos morando com ele também. Explicou que ele a forçara a vender um terreno que ela havia ganhado do pai dela, meu avô, um terreno muito bom no Mato Grosso, perto do bairro Boa Esperança, e que tinha gastado o dinheiro todo num carro. Depois contou que ele já tinha sido casado e que nunca se divorciara ou anulara o casamento anterior. “O pai de vocês é bígamo”, minha mãe disse, com desprezo, como se a frase encerrasse a questão. Mas a fonética da palavra me confundiu: parecia evocar um grande feito, como se ele falasse muitas línguas ou conhecesse algum nicho da neurociência.

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Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz

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