ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Paraíso gay-friendly
Para quem não abre mão da religião
Amanda Lourenço | Edição 100, Janeiro 2015
Quando Ludovic-Mohamed Zahed entrou no auditório, todos os presentes o aplaudiram calorosamente. Alto, magro, moreno, com a barba curta e cerrada, vestia jeans e jaqueta de couro, protegendo-se do frio do início de dezembro com uma echarpe enorme, de um bege discreto. Zahed poderia parecer mais um dos milhares de europeus de origem árabe, mas estava ali como a celebridade que é. Fundador da associação Homossexuais Muçulmanos da França, a HM2F, ele foi o primeiro imã – sacerdote que conduz as preces nas mesquitas – a organizar cerimônias para seguidores do Corão de todas as orientações sexuais.
A plateia que o aplaudiu em Bruxelas reunia senhores de meia-idade com cruzes no pescoço, mulheres de véu e jovens rebeldes de cabelo cor de laranja. Era um grupo ecumênico de judeus, muçulmanos e cristãos, unidos pelo fato de serem todos gays ou simpatizantes – e divididos sobre quase todo o resto.
Não era para menos: na conferência inter-religiosa “Ma fois pourquoi pas?” – um trocadilho entre “Na minha opinião, por que não?” e “Minha fé, por que não?” –, discutiram o espinhoso tema da situação dos homossexuais nas religiões monoteístas. Os catorze palestrantes foram desafiados pela premissa de que os três credos rejeitam a homossexualidade.
O confiante Zahed parece ter encontrado a resposta para a provocação. Em 2012, ele escandalizou a comunidade islâmica da França ao declarar que, se fosse vivo, Maomé celebraria casamentos gays. O caminho para se reconciliar com a religião de sua família, porém, foi longo. Nascido em Argel, em 1977, ele fugiu com os pais da guerra civil que nos anos 90 opôs o governo aos fundamentalistas do Grupo Islâmico Armado. Descobriu-se gay aos 17 anos; aos 22, saiu do armário. “Deixei uma mala pronta no carro e pensei que pior do que estava não poderia ficar. Meu pai disse que já sabia e teve uma reação razoável, mas antes tinha passado anos tentando me mudar. Chegou a quebrar a porta do meu quarto para me bater”, contou.
A orientação sexual não matou seu interesse pelo Islã. Estudou teologia por cinco anos, publicou livros e está concluindo um doutorado em antropologia sobre fé muçulmana e homossexualidade. No meio dos estudos, passou por uma crise quando se deu conta de que não era bem-vindo nos círculos religiosos. Decidido a procurar seu eixo, abandonou o islamismo. Foram sete anos de separação. “Mas ficou faltando algo na minha vida, era como se eu tivesse amputado um braço”, disse.
O retorno à espiritualidade aconteceu por meio do budismo, que o fez ver que nenhuma religião é perfeita. “A teoria budista diz que, se a mulher tem um carma bom, ela é recompensada nascendo homem na próxima encarnação. Percebi que existe preconceito em qualquer lugar, então decidi que já tinha as ferramentas necessárias para voltar e desconstruir o Islã.”
Zahed irrita os ortodoxos, de dentro e de fora de sua fé, quando inclui elementos budistas em suas pregações e defende a existência de um islamismo antissexista e anti-homofóbico. “Temos que procurar entender o que inspirou os discursos religiosos. Aplicar a lei sem compreendê-la não é ser um bom muçulmano”, argumenta.
Na conferência, quase todas as apresentações começavam com a defesa de um determinado livro sagrado, como se estivesse em curso uma disputa discreta para eleger o mais progressista e menos homofóbico. Houve quem reinterpretasse trechos do Gênesis sobre Sodoma e Gomorra – seus habitantes seriam detestáveis aos olhos de Deus devido aos modos bárbaros, e não à preferência homossexual. A judia Martine Gross, militante pelos direitos homoparentais, observou que há menção negativa ao relacionamento entre dois homens no Velho Testamento – “Não te deitarás com um homem como se fosse mulher” –, embora não exista nada sobre o interdito entre duas mulheres. Um colega a repreendeu pela interpretação literal do texto sagrado.
Farhat Othman, jurista tunisiano, demonstrou ainda mais otimismo do que Zahed. Disse que de todas as religiões o Islã era a mais aberta, e instou cristãos e judeus a se inspirarem no exemplo dos muçulmanos. Foi desautorizado pela marroquina Ibtissame Betty Lachgar, psicóloga representante de um coletivo que, entre outras coisas, organizou um piquenique em pleno Ramadã, quando supostamente todos devem jejuar durante o dia. “Já cansei de ser maltratada por causa da minha militância, cadê essa tolerância toda?”, disse ela, irritada. “O Corão não defende esses valores, o problema é dos homens”, retrucou Othman, apontando para o proverbial abismo entre a teoria e a prática.
Também ficou patente que as várias correntes religiosas estão em etapas distintas da luta contra a homofobia. Quando alguém saudou o fato de que em Israel casais de lésbicas podem ter filhos por inseminação artificial, uma jovem de Djibuti não conseguiu conter o riso: “Sou mulher, negra, imigrante, lésbica e muçulmana. Esse seria o menor dos meus problemas.”
A jovem, que preferiu não ter seu nome publicado, tem 24 anos e disse saber que é gay desde sempre. “Tinha uma quedinha pela minha prima”, riu. Nunca revelou sua homossexualidade à família, que vive na África. Segundo disse, para poupar os pais e os irmãos das reações dos vizinhos. “De longe fica difícil controlar as consequências.” Ela só conheceu um gay assumido há um ano, pouco depois de chegar à Bélgica para morar com uma tia. O primeiro beijo com uma moça aconteceu em junho.
“Para mim é uma honra poder encontrar Ludovic e conversar com ele. Ele me entende. Passou por coisas parecidas”, disse. O imã recebeu a moça e ficaram conversando na calçada, no frio. Zahed falava calmamente, com a serenidade dos líderes espirituais. Depois de uma estada de um ano na África do Sul, ele agora pretende pleitear uma vaga de professor universitário, mas não tem muitas esperanças de ser aceito em uma instituição francesa: “Eles não gostam muito de militantes, e para eles eu sou militante. Mas, como sempre digo, entrei nesta luta simplesmente para sobreviver.”
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