Walser, em 1954: “Nos últimos anos em Berna, sonhos agrestes me torturavam: trovões, gritos, mãos a estrangular-me, vozes alucinantes” CREDITO: CARL SEELIG_KEYSTONE_ROBERT WALSER FOUNDATION
Passeios pelo interior
Carl Seelig | Edição 176, Maio 2021
Tradução de Douglas Pompeu
26 DE JULHO DE 1936
Algumas cartas sóbrias prefaciaram nossas relações; perguntas e respostas breves e objetivas. Eu sabia que no início de 1929 Robert Walser havia sido internado como demente no sanatório Waldau, em Berna, e que desde junho de 1933 vivia como paciente do sanatório e casa de repouso em Herisau, no cantão de Appenzell-Außerhoden. Senti a necessidade de fazer algo pela publicação de sua obra assim como por ele mesmo. De todos os escritores contemporâneos da Suíça, Walser parecia-me ser o mais peculiar. Ele declarou estar de acordo com as minhas visitas. Então viajei em um domingo cedo pela manhã de Zurique a St. Gallen, vaguei pela cidade e na igreja colegiada escutei a parábola sobre “o desperdício de talento”. Quando cheguei a Herisau, soavam os sinos das igrejas. Registrei minha visita formalmente com o médico-chefe, dr. Otto Hinrichsen, e obtive dele a permissão para passear com Robert.
O escritor de 58 anos surgiu então do prédio contíguo, acompanhado por um guardião. Fiquei espantado com a aparência dele. Um rosto infantil arredondado como que partido por um raio, com bochechas bafejadas de vermelho, olhos azuis e um bigode curto e dourado. Os cabelos já se acinzentavam nas têmporas. O colarinho esgarçado e a gravata um tanto torta; os dentes longe de seu melhor estado. Quando o dr. Hinrichsen quis fechar-lhe o botão mais alto do colete, ele se opôs: “Não, esse tem que ficar aberto!” Ele falava em um Bärndütsch melódico, o mesmo dialeto bernense que falou durante a sua juventude em Biel. Após uma despedida um tanto abrupta do médico, tomamos o caminho para a estação de Herisau e em seguida para St. Gallen. Era um dia quente de verão. No caminho, topamos com muitos misseiros, que nos cumprimentavam amigavelmente. A irmã mais velha de Robert, Lisa, havia me alertado que seu irmão era extraordinariamente desconfiado. O que deveria fazer? Eu seguia calado. Ele seguia calado. Por fim, o silêncio foi o deque estreito pelo qual nos aproximamos. Queimando a cabeça ao sol, caminhamos então pela paisagem, uma paisagem acidentada e tranquila, de bosques e campinas. De vez em quando, Robert parava para acender um cigarro Maryland e, farejando-o, segurá-lo sob o nariz.
Almoço em Löchlibad. Primeiros sinais de degelo com vinho vermelho-sangue de Berneck e cerveja. Robert conta que antes da virada do século trabalhou em Zurique para a Instituição de Crédito Suíço e para o banco cantonal. Porém, somente por alguns meses, para depois estar livre para escrever. Não seria possível servir a dois senhores ao mesmo tempo. Isto foi na época em que escrevia seu primeiro livro, Fritz Kochers Aufsätze (As redações de Fritz Kocher), publicado pela Insel Verlag em 1904, com onze ilustrações de seu irmão Karl.[1] Ele diz que jamais viu a cor dos honorários por esse trabalho, mas que quando os livros chegaram às livrarias, venderam imediatamente e a granel. Segundo ele, sua marginalização dos grupos literários o prejudicara muito financeiramente. Mas o sectarismo, como o praticavam por toda parte, simplesmente o enojava. Por meio dele é que o escritor se rebaixa a engraxate. Sim, sentia que seu tempo havia passado. Mas isso não o perturbava. Quando se encontra próximo aos 60, é preciso pensar em uma outra existência. Ele havia escrito seus livros exatamente como um camponês, que semeia e ceifa, enxerta, alimenta o gado e esterca os estábulos. Por uma sensação de obrigação e para ter um ganha-pão. “Para mim foi um trabalho como qualquer outro.”
O tempo mais produtivo de sua vida de escritor foram os sete anos em Berlim e os sete anos seguintes em Biel. Ali ninguém o pressionava nem o controlava e assim tudo pôde crescer tão tranquilamente como maçãs na macieira. Os anos que seguiram à Primeira Guerra Mundial foram um tempo vergonhoso para a maior parte dos escritores. A literatura havia assumido um caráter rancoroso e peçonhento. A literatura deveria, no entanto, irradiar amor, aconchegar. O ódio não poderia tornar-se sua força motriz. O ódio é um elemento improdutivo. Foi naquele tempo, em meio a essa orgia sorumbática, que o seu declínio artístico havia se iniciado… para ele, haviam concedido os prêmios literários a pedantes e a falsos profetas. Bem, não havia nada que ele pudesse ter feito a esse respeito. Mas jurava que não se curvaria a ninguém até a sua morte. Os grupinhos e o compadrio acabariam extinguindo a si mesmos.
Entre essas conversas, comentários admirados sobre O Idiota de Dostoiévski, sobre Da Vida de um Imprestável[2] e sobre a lírica audaz e viril de Gottfried Keller.[3] Rilke, por sua vez, teria lugar na cabeceira de velhos celibatários. Os dois volumes Uli, de Jeremias Gotthelf,[4] comoviam-lhe; mas boa parte do resto de sua obra era demasiado esdrúxula e moralizante para o gosto de Walser.
4 DE JANEIRO DE 1937
Passeio por St. Gallen e Speicher em direção a Trogen, região que conheço desde meu tempo de escola no cantão. Almoço na pousada Schäfli. À honra dos meus ancestrais maternos, que por séculos cultivaram vinhas junto ao Buchberg nos vales do Reno, mando vir uma garrafa do encorpado Buchberger. Inesperadamente surge um rumor de rádio: uma comédia suábia. À tarde, sob melancólica atmosfera nívea, seguimos sobre o Gräbis, onde certa vez me vesti como uma figura ridícula de tenente do Corpo de Cadetes[5] empunhando um sabre poderoso, emprestado do médico da aldeia. De tempos em tempos, o vento Leste soprava cortante por nós. Robert sem casaco. Na viagem de volta no trem: o rosto de Robert ilumina-se agora animadamente como um facho aceso. Traços profundos e dolorosos da raiz do nariz até a boca, ostensivamente vermelha e carnosa. A plataforma da estação de St. Gallen cintilava com seus pequenos cascalhos. Robert lacrimejava. Aperto de mão vulcânico, às pressas. Recortes de nossas conversas:
Com interrupções, sua estadia em Zurique durou do outono de 1896 até a primavera de 1903; encontrou logo um quarto na colina Zürichberg, depois na travessa Spiegelgasse e então no bairro Schipfe e também em Außersihl. Sete anos (de 1906 a 1913) duraram também sua estadia em Berlim e mais sete anos sua segunda estadia em Biel. Com frequência ocorria-lhe pensar em como o número 7 se repetia periodicamente em sua vida.
Em Berlim-Charlottenburg, morou primeiramente com seu irmão Karl em um apartamento de dois quartos, e mais tarde sozinho. Por fim, o editor Bruno Cassirer recusou-se a socorrê-lo financeiramente. Em compensação, uma abastada senhora com um coração nobre o ajudou durante dois anos. Após a morte dela, ele acabou retornando, por necessidade, à terra natal. Mas, por muito tempo, seus pensamentos ainda eram assaltados pela beleza quieta das florestas de Brandemburgo. Em Berna, onde vivera desde 1921 por oito anos, viver à moda antiga tinha sido, segundo ele, muito favorável para a sua produção poética. A tentação à bebida e à comodidade teria, no entanto, repercutido negativamente. “Em Berna, eu vivia muitas vezes como um possesso. Perseguia motivos poéticos, como o caçador no encalço da presa. Constatei que o mais produtivo era andar pelos passeios públicos e fazer longas caminhadas pelos arredores da cidade, cujo lucro imaginativo eu punha no papel ao chegar em casa. Todo bom trabalho, até o menor deles, necessita da inspiração artística. Para mim, é mais do que claro que o negócio do poeta só pode florescer em liberdade. Minhas horas de trabalho mais convenientes foram sempre as matutinas e as noturnas. Entre o meio-dia e o pôr do sol, o tempo produzia em mim um efeito embrutecedor. Naquela época, o melhor dos meus clientes era o jornal Prager Presse, financiado pelo Estado tcheco, cujo redator do caderno de cultura, Otto Pick, publicava tudo o que eu lhe enviava, até mesmo poemas, que voavam de volta de outros jornais como bumerangues. Antes disso, eu também costumava colaborar com o Simplicissimus,[6] ainda que eles retornassem minhas colaborações repetidas vezes, pois lhes pareciam muito pouco humoradas. Mas pelo que aceitavam, pagavam bem. Pelo menos 50 marcos cada historinha, pequenas fortunas para os meus bolsos.”
Eu: “Quem sabe um dia o ambiente do sanatório e seus pacientes não oferecerão material original para um romance?” Robert: “Não acredito nisso. De todo jeito, enquanto estiver internado aqui, seria incapaz de construí-lo. O dr. Hinrichsen, inclusive, pôs uma sala à minha disposição para que eu escreva. Mas me sento ali como se estivesse preso e não consigo criar nada. Talvez, se vivesse por dois, três anos em liberdade fora do sanatório, tudo transbordaria.” Eu: “De quanto o senhor precisaria para poder viver por conta própria como escritor?” Após refletir um pouco, Robert: “Estimo algo por volta de 1,8 mil francos anualmente.” “Não mais?” “Não, isso bastaria. Com que frequência tive que viver com muito menos durante a minha juventude! Também é possível viver muito bem sem bens materiais. Comprometer-me não posso nem com um jornal nem com um editor. Não gostaria de prometer nada que não possa cumprir. Tudo tem que brotar de mim mesmo sem cerimônias.”
Mais tarde: “Se eu pudesse retornar aos meus 30 anos de idade, não escreveria mais como um cabeça de vento romântico, de modo excêntrico e negligente. Não se pode negar a sociedade. Deve-se viver nela e lutar a favor ou contra ela. Esse é o erro dos meus romances. Eles são extravagantes e reflexivos demais, quase sempre muito remissos em sua composição. Para passar por cima da regularidade artística eu simplesmente fiz música à toa. Antes da nova edição, gostaria de ter cortado setenta ou oitenta páginas de Os Irmãos Tanner,[7] por exemplo; hoje, penso que antes da publicação não se pode julgar tão intimamente seus próprios irmãos.” Eu: “Li faz pouco tempo o seu Jakob von Gunten[8] com entusiasmo. Onde é que ele foi de fato escrito?” Robert: “Em Berlim. Na sua maior parte trata-se de uma fantasia poética. Atrevido, não é mesmo? Entre os meus livros mais longos também é o meu preferido.” Após uma pausa: “Quanto menos um escritor precisar de ação e de entorno regional, mais significativo é com frequência o seu talento. De antemão duvido de escritores que se sobressaem pelo enredo e necessitam do mundo inteiro para seus personagens. As coisas cotidianas são suficientemente ricas e belas por si só para que delas possamos provocar uma fagulha poética.”
Conversa sobre o dramaturgo August von Kotzebue,[9] cuja graça e maleabilidade social são admiradas por Robert. Ele se recorda que Kotzebue foi deportado no início do século XIX para a Sibéria e que escreveu sobre isso uma obra memorial em dois volumes. Dramática também foi a sua morte, assassinado pelo ultrachauvinista Karl Ludwig Sand, membro da liga patriótica dos estudantes alemães. Em seu posicionamento contra Schiller e Goethe, Kotzebue teria atuado como uma sapata reacionária. Enquanto a literatura suíça permanecer enfiada no provincianismo, Robert não acredita em uma possibilidade de seu progresso. Ela precisaria tornar-se cosmopolita e aberta ao mundo, deixando para trás essa visão estreita e a tendência rastejante própria do camponês. Ele elogia Uli Bräker[10] – conhecido com o Pobre Homem de Toggenburg – e seus ensaios sobre Shakespeare. Comparado aos escritores de hoje, que sorte de ideais distintos e maiores teve Gottfried Keller, cujo Es Wandert eine Schöne Sage (Uma bela saga a passeio) Robert cita do começo ao fim.
Seu Der Grüne Heinrich (O verde Heinrich) permanece para todas as gerações como um livro maravilhosamente edificante, digno de leitura e encantador, segundo Robert. “Faz pouco tempo, um funcionário do sanatório quis impor-me Witiko de Stifter.[11] Mas logo esclareci que eu nada queria saber de romances volumosos. Bastam-me os estudos sobre a natureza de Stifter, essas observações incomparavelmente íntimas, dentro das quais ele incluiu sujeitos de forma tão harmoniosa. E o que o senhor tem a dizer sobre a trilogia gorducha José e Seus Irmãos, de Thomas Mann? Como alguém se atreve a desfraldar largamente daquele jeito um material entranhado na Bíblia?”
Sobre revoluções: “É um disparate querer encenar revoltas fora das cidades. Quem não ocupa a cidade, não ocupa o coração do povo. Todas as revoluções de sucesso partiram das cidades. Por isso considero mais do que esperado o fato de que na Guerra Civil Espanhola o governo alcançará a vitória final.”
“A era guilhermina veio ao encontro dos artistas para que eles pudessem se expressar como excêntricos e extravagantes. Sim, ela mimou as extravagâncias diretamente. No entanto, mesmo os artistas devem se enquadrar nas regularidades. Não devem tornar-se bobos da corte.”
27 DE JUNHO DE 1937
Do vale fumegante de St. Gallen, seguimos com o carro dos correios para Rehetobel. Dali em diante, vamos a pé para Heiden e para o povoado Thal, deitado sobre um berço verde, a comuna natal de meus ancestrais maternos. Após o almoço, andamos pela vinícola de Buchberg até a taverna Zum Steinernen Tisch, de onde é possível desfrutar uma vista ampla da região do Lago de Constança. Mais tarde, sob forte trovoada, andamos pelo povoado idílico de Buchen, passando por Rorschacherberg em direção a Rorschach. Volta para casa de trem.
“O senhor sabe qual é a minha sina? Preste bem atenção! Todas as pessoas queridas que acreditam poder me criticar e me sargentear são sectários fanáticos de Hermann Hesse. Não confiam em mim. Para elas existe somente ‘das duas uma’: ‘Ou você escreve como Hesse, ou você é e continuará sendo um fracassado.’ Me julgam ao extremo. Elas não têm qualquer confiança no meu trabalho. E esta é a razão pela qual eu vim parar em um sanatório. Sempre me faltou a auréola dos santos. Somente com ela é que se pode ascender à literatura. Qualquer nimbo de heroísmo, de padecimento e afins e logo se alcança a escada para o sucesso… Me veem como uma pessoa impiedosa, assim como eu sou. Por isso mesmo é que ninguém me leva a sério.”
Comentários soltos:
“Quando o jornal sorri, a humanidade chora.”
“A natureza não precisa se esforçar para ser significativa. Ela é.”
“Quantos laureados pelo Nobel serão logo esquecidos, enquanto Jeremias Gotthelf continua a existir com toda comodidade! Enquanto houver o cantão de Berna, haverá também um Jeremias Gotthelf.”
“O escritor C. F. W.: ele se parece com um ator de dramalhão.”
“A felicidade não é nenhum material de proveito para o poeta. Ela é autossuficiente demais. Não precisa de comentário. Ela pode se enrolar em si mesma como um ouriço. Opostos são a dor, a tragédia e a comédia: elas são cheias de força explosiva. É preciso somente incendiá-las no momento certo. Então sobem ao céu como foguetes e iluminam todo o espaço.”
20 DE DEZEMBRO DE 1937
Neve ligeira. Robert de pé sem casaco na estação central, mas com um guarda-chuva enrolado feito salsicha. Ele não parece sentir frio. Vagamos por St. Gallen e nos dirigimos ao Gilge, onde somos os únicos fregueses. Mais tarde, Robert fala ainda longamente sobre a esplêndida garçonete estrábica, que correu com a mão pelas suas costas. “Deveríamos ter ficado lá!” Quando eu comentei, durante o almoço no Marktplatz, que a garçonete que agora nos servia seria muito mais bonita, teria belas pernas, ele disse que isso não lhe importa. Ele observava a totalidade de uma pessoa, sobretudo sua essência.
Provamos diversos ternos para Robert em uma loja de confecções. O dono pensa que ele é meu pai. As roupas tamanho padrão, no entanto, não lhe caem bem, pois tem as costas redondas demais. Ele deseja algo “rústico, de todo modo nada que chame a atenção”. Como o tirar-lhe as medidas e o tatear por toda parte deixa-o nervoso e seu rosto começa a corar-se, fujo com ele da loja sem ter comprado nada.
Cervejaria bávara. Cerveja robusta. Ele gosta daqui. Acende um Parisienne atrás do outro, sem parar. Ele me pergunta com uma ironia seca se eu teria feito um bom negócio com a seleção de textos Größe Kleine Welt (Pequeno grande mundo), publicada pela editora Rentsch. Glorifica Wieland e Lessing, enquanto Matthias Claudius lhe parece naïf.[12] Diz: “Dos clássicos nunca tive ciúmes. Pelo contrário, tenho é ciúmes de escritores de segunda linha, sobretudo de Wilhelm Raabe e Theodor Storm.[13] Pois assim como eles eu também poderia contar histórias cômodas e burguesas. A maldita comodidade em Raabe me irrita diretamente.” Eu: “E de Gottfried Keller, o senhor também tem ciúmes?” Robert, rindo: “Não, ele é apenas um zuriquense!”
Eu conto-lhe que receberá as honras da comissão para Promoção da Literatura de Berna. Ele se alegra.
15 DE ABRIL DE 1938
Aniversário de 60 anos de Robert Walser. Como bem o conheço, sei que cumprimentos de parabéns só o deixarão contrariado. O reencontro se dá no restaurante da estação de Herisau com torta Käsewähe[14] e um chope, sobre o qual Robert comenta: “Desde o Ano-Novo que eu não tomo mais nada estimulante!” Com velocidade mordaz partimos para Lichtensteig, a capitalzinha de Toggenburg a cerca de 30 km de distância. Tomamos atalhos estreitos e solitários, pelos quais topamos agora com poucos misseiros. Robert para com frequência para admirar a formosura do cume das colinas, a pachorra de uma taverna, o azul dos dias de Páscoa, a reclusão pacífica de um recorte da paisagem ou uma clareira verde-pardo. Ele espirra inúmeras vezes, pois há uma semana pegou uma gripe de um dos pacientes. Degersheim, um brinco de povoado. Seguimos sobre uma colina em direção à Lichtensteig, aonde chegamos depois de quatro horas. Almoço substancial próximo à praça do povoado; logo seguimos para uma confeitaria, da qual todos levam um saco de biscoitos Biblerli para casa. Retorno de trem para Herisau. Cerveja no restaurante da estação, logo depois um Neuchâtel borbulhante no Eidgenössischen Kreuz (Cruz dos confederados suíços), onde Robert se sente particularmente bem. Ele elogia o dia encantador e prazeroso e já faz planos para o próximo encontro. Um passeio para Wil parece-lhe valer a pena. Na estação parabenizo-o finalmente pelo aniversário. Ele aperta e sacode minha mão várias vezes, anda ao lado do meu trem em movimento e por um longo tempo acena para mim até que o vagão desapareça na curva.
Das nossas conversas:
Em Berlim, Robert frequentou uma escola para criados por um mês inteiro. De fato, ele representa a fineza de um pajem, típica dos criados. O aio de um conde o empregou em um castelo situado sobre uma colina na Alta Silésia. Lá embaixo: o povoado. Robert tinha que limpar os salões, polir as colheres de prata, bater os tapetes e, vestindo um fraque, servir como Monsieur Robert. Ele permaneceu ali por meio ano. A escola de criados foi retratada por ele mais tarde em Jakob von Gunten, no qual seu ambiente é transferido para um internato de rapazes. “A longo prazo, porém, eu não servia para criado devido ao meu jeito desastrado de suíço.” Uma vez veio ao castelo a escritora do livro, em moda naquela época, Briefe, Die Ihn Nicht Erreichten (Cartas que não o alcançaram), a baronesa Elisabeth von Heyking.[15]
Depois desse episódio como criado, seu irmão pintor Karl apresentou Robert para os editores Samuel Fischer e Bruno Cassier em Berlim; Karl havia se tornado conhecido naquela época pelos diversos cenários de teatro que fez para Max Reinhardt, por exemplo nos Contos de Hoffmann e em Carmen. Ele pintava frequentemente com Max Liebermann,[16] na Holanda e na costa do Mar Báltico. Bruno Cassirer animou Robert a escrever um romance. Daí surgiu então Os Irmãos Tanner, livro que não havia agradado Cassirer em particular. Um crítico havia dito que esse romance de Walser não passava de um amontoado de anotações.
A conversa chega ao editor Maximilian Harden, para cuja revista, Die Zukunft (O futuro), Robert escrevera ocasionalmente. Ele elogia a essência aristocrática de Harden e seu talento em capturar o caráter do tempo em artigos brilhantes. Posiciona-o até mesmo acima de Ludwig Börne, cuja melodia linguística aprecia; entre os jornalistas mais significativos do idioma alemão ele assinala Heine, cuja essência travessa combinaria com essa profissão.[17] Ele descreve a decadência de Harden, que começou logicamente com a debacle da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.
Em Zurique, Robert trabalhou durante poucas semanas no escritório da fábrica de máquinas Escher-Wyß e também algum tempo como criado na casa de uma judia ilustre. Mas o período mais memorável continua sendo para ele o passado em Biel. “Com os bielenses mesmo convivi pouco. Eu papeava com os estrangeiros, que vinham ao Blaue Kreuz, onde aluguei uma água-furtada. O quarto número 27 custava 20 francos, a diária inteira 90 francos. Eu vivia cercado por camareiras, toda qualidade de amáveis criaturas femininas com um leve ar francês, que me parecia um charme.” “Por que mesmo o senhor foi embora de Biel?” Robert: “Naquele tempo, eu era muito pobre. E mesmo os motivos e apetrechos que tirei de Biel e seus arredores começaram pouco a pouco a se exaurir. Neste momento, escreveu-me minha irmã caçula Fanny, sobre um possível emprego em Berna. No arquivo cantonal. Eu não pude recusá-lo. Infelizmente, depois de meio ano desentendi-me com o meu superior, devido a um comentário impertinente. Ele me despediu e eu retomei a manufatura da escrita. Impressionado pela cidade impetuosa e vital, comecei então a escrever de forma menos pubescente, mais viril, e mais voltado ao internacional, do que em Biel, onde eu me valia de uma serenidade melindrosa. O resultado foi que logo me chegaram muitas propostas e pedidos de jornais estrangeiros – atraídos pelo nome da capital suíça. Valia agora buscar novas ideias e motivos. O matutar demasiado estragava-me a saúde. Nos últimos anos em Berna, sonhos agrestes me torturavam: trovões, gritos, mãos a estrangular-me, vozes alucinantes. Com frequência eu acordava gritando alto. Certa vez, caminhei às duas da madrugada de Berna para Thun, aonde cheguei às seis da manhã. Ao meio-dia, estava no topo do Niesen, onde devorei com prazer um pedaço de pão e uma lata de sardinha. Ao fim da tarde, estava de volta em Thun e à meia-noite em Berna. Claro que tudo a pé. Uma outra vez, fui e voltei a pé de Berna até Genebra, pernoitando em Genebra na volta. Uma de minhas primeiras descrições de viagem rendeu-me o Der Greifensee, publicado por Josef Viktor Widmann no diário Der Bund. Na época, achava difícil como o diabo escrever boas descrições de viagem.”
“Um texto deve ser como um belo terno que bajula o seu comprador.”
“Peter Altenberg: uma querida salsichinha de Viena. A condecoração de ‘poeta’, entretanto, eu não poderia conceder-lhe.”
“Os austríacos não teriam sido apanhados pelos nazistas se tivessem posto uma mulher esperta e charmosa no comando do país. Todos teriam se subordinado a ela, até mesmo Hitler e Mussolini. Pense na rainha Vitória e nas regentes holandesas! Diplomatas estão sempre contentes em servir mulheres. Não há bajuladores mais charmosos que os austríacos do sexo feminino!”
“Enquanto eu me encontrar na condição de um doente, prefiro não ler nada dos meus contemporâneos. Neste caso, a distância continua a ser o mais pertinente.”
“De que serve ao artista seu talento, se lhe falta o amor?”
“Jeremias Gotthelf: sobre ele sinto exatamente o mesmo que sinto sobre a mulher, que Heinrich Pestalozzi, em seu romance Lienhard und Gertrud (Leonardo e Gertrude), permite dizer: De Pfarrer het mi us dr Chile tribe! (“O padre nos enxotou da escola!”).
Conta meio irritado, meio entretido sobre uma sra. A. que ele conheceu na juventude e que agora é esposa de um funcionário bem estabelecido dos correios. Atualmente, ela tirava sarro dele, bombardeando-o, por um lado, com chocolates de fondant e, por outro lado, alfinetando-o em cartas impertinentes: “Eu ainda não posso levar o senhor a sério!” Nesse ponto, ela havia encontrado um aliado em Thomas Mann, já que certa vez o escritor alemão havia rebaixado Robert sem cerimônias em uma carta, chamando-o de “menino esperto”.
Trecho do livro Passeios com Robert Walser, que a editora Papéis Selvagens publicará em junho.
[1] Karl Walser (1877-1943), o irmão de Robert, era pintor, artista plástico e cenógrafo de teatro. Influenciado pelo movimento do expressionismo alemão, obteve certo sucesso em vida com suas obras.
[2] Romance do escritor alemão Joseph Freiherr von Eichendorff (1788-1857).
[3] Gottfried Keller (1819-90), poeta e narrador suíço, um dos mais reconhecidos de seu país.
[4] Uli, der Knecht (Uli, o criado), de 1841 e Uli, der Pächter (Uli, o inquilino), de 1849. Jeremias Gotthelf era o pseudônimo de Albert Bitzius (1797-1854), pastor e romancista suíço.
[5] Posição de tenente entre os cadetes suíços, uma liga de jovens próxima ao escotismo que preparava estudantes do colegial para o serviço militar do país.
[6] Periódico satírico alemão, publicado entre 1896-1967, com um hiato entre 1944 e 1954.
[7] Primeiro romance de Robert Walser, publicado originalmente em 1907. Traduzido no Brasil por Sergio Tellaroli e lançado em 2017 pela Companhia das Letras.
[8] Terceiro romance de Robert Walser, publicado originalmente em 1909. Traduzido no Brasil por Sergio Tellaroli e lançado em 2011 pela Companhia das Letras.
[9] August von Kotzebue (1761-1819), dramaturgo e cônsul alemão.
[10] Ulrich Bräker (1735-98), escritor autodidata suíço, famoso por sua autobiografia publicada em 1789, conhecida como um exemplo de livro representativo da vida em classes sociais mais baixas.
[11] Romance histórico e popular publicado serialmente, entre 1865 e 1867, pelo escritor austríaco Adalbert Stifter (1805-68).
[12] Christoph Martin Wieland (1733-1813), Gotthold Ephraim Lessing (1729-81) e Matthias Claudius (1740-1815): escritores alemães contemporâneos de Goethe.
[13] Wilhelm Raabe (1831-1910) e Theodor Storm (1817-88), escritores alemães associados ao movimento realista.
[14] Torta típica da Suíça, feita de diversos tipos de queijo, trigo, creme de leite e ovos.
[15] Elisabeth von Heyking (1861-1925), romancista alemã conhecida também por seus diários e relatos de viagem – o romance citado por Walser, publicado em 1903, foi o maior best-seller da autora.
[16] Max Liebermann (1847-1935), pintor alemão ligado ao movimento impressionista.
[17] Embora conhecido sobretudo pela poesia, Heinrich Heine (1797-1865) – assim como o humorista Ludwig Börne (1786-1837) – teve importante atuação jornalística e política, participando do movimento Jovem Alemanha (1830-50), que pregava maior abertura democrática na política e na religião.
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