Casados há três anos e morando há dez meses em Iauaretê, Felipe Addor e Julia Rodrigues encontraram uma Amazônia onde o forró chegou às aldeias indígenas antes do papel higiênico FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA_2007
Pelo rio, nem lá, nem aqui
Os cariocas Felipe Addor e Julia Fatorelli Rodrigues passaram 2007 em Iauaretê, uma cidade de 3.500 habitantes, nos confins da Amazônia brasileira com a fronteira da Colômbia.
Felipe Addor | Edição 16, Janeiro 2008
Julia se mudou para lá em março, como médica do exército. E o marido, engenheiro de produção, treinado em trabalho comunitário na baixada fluminense, seguiu-a como assessor do movimento indígena na região. Em novembro, Felipe fez 28 anos e chegou à última aldeia da região. Eles escolheram Iauaretê porque queriam conhecer o Brasil por dentro.
SEGUNDA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO Estava combinado que sairíamos cedo por volta das 8 horas. Era a primeira de três viagens para visitar as aldeias de Iauaretê. O distrito fica no município de São Gabriel da Cachoeira, encaixado na Terra Indígena do Alto Rio Negro. E a Coordenadoria das Organizações Indígenas de Iauaretê, representando dezoito aldeias, encarregou-nos de ouvir suas queixas e expectativas para traduzi-las em políticas públicas de desenvolvimento regional. Seríamos oito a bordo, sete indígenas da Coordenadoria, e eu, branco, como assessor. Por inexperiência, achei que a segunda-feira seria para resolver os últimos detalhes pendentes antes da partida. Não levei em conta que o domingo foi dia de festa. Para os indígenas, não é a hora ou o dia da semana que define o fim da festa, mas, sim, o suprimento de caxiri. Leva alguns dias para descascar, ralar, secar, coar e fermentar a bebida de mandioca. E como ela estraga depressa, tem que ser tomada no prazo certo. Assim, até onde durar o caxiri, dura a festa.
É comum por aqui, principalmente se o domingo for especial – tipo Dia das Mães ou dos Pais – , a segunda-feira não ser exatamente um dia que se possa chamar de útil. E, de manhã, a cidade estava de ressaca. Pelas ruas, encontrei apenas cachorros e galinhas ciscando sua refeição matinal. Por entre as frestas de portas e janelas, o único movimento que se via era dentro das casas, onde a festa persistia. Caminhando meio sem rumo, encontrei José Roberto, um de meus companheiros de viagem. Lembrei-me de O Bêbado e o Equilibrista, composição de Aldir Blanc. Ele vinha cambaleando e equilibrava uma pesada panela cheia de caxiri, a caminho de casa. Tomei uma cuia da bebida, apesar de o gosto amargo não combinar com o café-da-manhã. Percebi que qualquer tentativa de resolver alguma pendência, naquele dia, seria quase um desrespeito às tradições vigentes. Confirmei nossa partida na terça, bem cedo. Como querendo acalmar uma criança, ele me disse: “Pode deixar. Amanhã saímos no máximo às 8 horas”. Voltei para casa, e gastei o resto do dia lendo e preparando minhas trouxas.
TERÇA-FEIRA Como dia de ressaca é igual no mundo branco ou no indígena, acordei sem pressa. Surpreendi-me quando, às 7h30, a caminho do centro, cruzei com José Roberto, Arlindo e Nivaldo, que iam em busca de gasolina para a viagem. Mesmo conseguindo o combustível cedo, os outros entraves – pessoas atrasadas, transporte de cargas – fizeram com que a saída só ocorresse ao meio-dia e meia. Além dos oito integrantes da equipe, levávamos 300 litros de gasolina, botijão de gás, alimentação para os nove dias e a bagagem de cada um. O plano era subir o rio Papuri direto até São Miguel, penúltima comunidade antes da fronteira com a Colômbia, e depois descer parando para fazer as reuniões com representantes de 27 aldeias, em nove locais diferentes ao longo do rio.
Bem, partimos. Nosso primeiro e pior obstáculo foi a cachoeira de Aracapá, intransponível pela água. Foi preciso transportar tudo, inclusive a voadeira, por uma trilha de uns 100 metros na pedra. Atracamos no pé da cachoeira, descarregamos, levamos a carga no lombo, arrastamos o barco pela trilha, pusemos de volta na água e o recarregamos para sair. Levamos nisso uma hora e meia. Em seguida, enfrentamos a cachoeira de Patos. Dessa vez, eu e a metade dos tripulantes caminhamos por uma trilha durante cinqüenta minutos, enquanto os outros encararam a correnteza com o barco mais leve. Paramos diversas vezes nas aldeias do caminho por causa de avisos, notícias e documentos que íamos levando. Em cada escala, estava incluído o ritual de sentar na casa de algum parente de meus companheiros e papear. As casas eram sempre muito simples, com chão de terra, parede de casca de árvore e telhado de folha de palmeira caraná. Apesar da aparente pobreza, éramos recebidos com fartura de quinhapira – um caldo apimentado de peixe – , beiju, suco de açaí e chibé, uma mistura de água com farinha. Minha angústia de acelerar a viagem, para chegarmos ao destino no prazo previsto, esvaía-se na tranqüilidade dos meus companheiros. Era como se eles mandassem no tempo.
As horas foram passando e a fome começou a apertar. Percebi que os indígenas de Iauaretê não costumam se preocupar com o planejamento das refeições. Agüentam horas a fio sem botar nada no estômago. Quando saímos em viagens distantes, eles não preparam lanches ou refeições. Parecem saber que sempre haverá um abacaxi, um peixe, um beiju para matar a fome. Não fosse o farto lanche que Julia havia preparado para mim e os outros, a viagem teria sido bem mais dolorosa.
Dormimos no meio do caminho, na comunidade de Uirapixuna, nome de uma pequena fruta de cor escura, parecida com o açaí. Quando chegamos, a noite já caíra, e usamos nossas lanternas para tomar banho, amarrar a rede e fazer o jantar. Nivaldo cozinhou um “delicioso” sopão – de macarrão, feijão e salsicha – , com o traquejo de quem trabalhou na missão salesiana por uma década, para depois integrar-se ao movimento indígena. Atamos nossa rede no centro social de Uirapixuna, uma pequena palhoça com estrutura de madeira amarrada com cipós. A parede tinha cerca de 1,5 metro de altura, deixando um vão até o telhado, e era feita de tábuas de madeira com pequenas frestas para garantir o arejamento. A cobertura era de folhas de caraná entrelaçadas, formando uma eficiente proteção contra o sol escaldante e as torrenciais chuvas equatoriais.
O alto rio Negro não tem tanto mosquito, como era de se esperar estando no coração da Amazônia. É também relativamente pobre em fauna, tem pouca variedade de peixes e mamíferos. Encontram-se algumas antas, cotias, porcos-do-mato, mas são mais comuns os pássaros e as cobras. É normal as pessoas dormirem sem mosquiteiros. Apesar de ter levado meu mosquiteiro de rede, não o armei para não parecer diferente. Na realidade, meu medo maior era de morcegos. Na viagem que fiz para chegar a Iauaretê, peguei carona com uma antropóloga que comentou seu receio dos mamíferos voadores, transmissores de raiva, presentes em grande número em alguns lugares. Como me disseram que não havia morcegos em Uirapixuna, tentei me tranqüilizar e, depois de algum tempo caçando com minha lanterna os vultos voadores que passavam dentro da palhoça, adormeci. Embora estivéssemos todos cansados da viagem, meus companheiros passaram horas brincando e rindo. Cada um deitado em sua rede contava uma piada, puxava um caso. Ignorando minha presença, conversavam em tucano, língua predominante na região, falando português só quando se dirigiam a mim. São Gabriel da Cachoeira é o único município do Brasil que, em anos de movimento indígena, oficializou outras línguas além do português – tucano, baníua e nheengatu. Lembrei-me das viagens com os amigos na adolescência, quando o fato de estarmos juntos era motivo suficiente para curtirmos todos os momentos.
QUARTA-FEIRA Acordei antes do sol com a risada contagiante do Jaciel. Íamos preparar um café, mas descobrimos que o único açúcar que trouxemos fora trocado por peixe na subida do rio, o que nos deixou sem café durante toda a viagem. Saímos às 7 horas para continuar subindo o Papuri, depois do banho no rio e de umas bolachas. Passamos pela cachoeira de Jandiá, onde novamente metade do grupo foi por terra. Chegamos ao nosso primeiro destino às 9h30. Arlindo é bem eficiente como piloto. As cachoeiras e as pedras escondidas pelas águas pretas exigem grande conhecimento do rio.
As comunidades do Papuri, de um modo geral, ficam em elevações do terreno, o que nos dava, todo dia, trabalho extra na hora de descarregar e carregar a voadeira. Fomos para o centro social, uma palhoça um pouco mais incrementada que a de Uirapixuna, com paredes feitas com casca de árvore. Quase toda a comunidade nos aguardava. Além da aldeia de São Miguel, também estavam reunidos ali os moradores de Melo Franco e Santa Cruz do Inambu. A organização no centro social é sempre a -mesma: os convidados se sentam num lugar específico e a comunidade se divide em homens para um lado, mulheres para o outro. Algumas vezes procurei quebrar essa praxe, sentando perto dos -moradores. Mas o desconforto, gerado pela minha presença, me fazia voltar para o lado dos meus companheiros. A divisão social entre homens e mulheres é muito forte entre os indígenas do alto rio Negro. Nas refeições comunitárias, é comum seguir-se a ordem: primeiro comem os convidados; quando eles acabam, alimentam-se os homens; no fim, as mulheres.
Fomos recebidos com grande fartura. Beiju com mujeca -uma sopa apimentada com peixe desfiado e encorpada pela goma de mandioca -, quinhapira e caxiri. Como já passava das dez, tratei de comer moderadamente pensando no almoço próximo. Até que o Ivo me cutucou: “Vai fundo, que isso aí é café-da-manhã, almoço e jantar”. Obedeci prontamente. Aprendi que em dia de trabalho comunitário, reunião e festa é costume fazer uma refeição matinal e passar o resto do dia alimentando-se de caxiri. Por ser uma bebida fermentada e pesada, ela dispensa outras refeições. José Roberto abriu a reunião explicando os objetivos da viagem. Cada integrante da nossa equipe se apresentou e, em seguida, começamos as discussões. Eu não compreendia 90% do que ouvia, mas tentava acompanhar a conversa, com o Ivo servindo de tradutor. A idéia era fazer os moradores apresentarem suas principais necessidades e potencialidades. Eu já tinha feito trabalhos semelhantes no Rio de Janeiro. Mas, no caso, as diferenças culturais e lingüísticas impunham novas dificuldades. Era preciso usar português e tucano para todos os presentes participarem da discussão. E exigia certa habilidade ouvir as mulheres, cuja opinião a cultura local não costuma levar em conta. Fazíamos grupos separados com elas, auxiliados pela única mulher de nossa equipe, para que ficassem mais à vontade.
Durante a reunião, as crianças menores ficavam brincando no meio da roda, como se estivessem participando daquela “atividade comunitária”. Observando-as, surpreendi-me com a forma de andar de um bebê. Com poucos meses de idade, ele não conseguia ficar de pé. Engatinhava não com os joelhos, mas com os pés e as mãos no chão. Fazia isso com uma agilidade que me lembrou a dos primatas. Enquanto discutíamos, vez por outra passava uma rodada de caxiri. Cada família fica responsável por trazer um pouco da bebida que, além da mandioca, pode ser feita com pupunha, batata-doce, cana e milho. As mulheres põem a bebida em panelas e vão passando pela roda, servindo as pessoas numa mesma cuia. Há toda uma série de regras para tomar o caxiri. Na primeira rodada, o convidado deve tomar um pouco de todas as cuias, para que a família que está oferecendo não se sinta desrespeitada. E essas primeiras cuias têm que ser bebidas inteiras. As subseqüentes, ele pode até recusar, mas é de bom-tom tomá-las cada vez que lhe oferecerem. Lá pelas quatro da tarde, as pessoas começaram a ficar um pouco mais lentas e distraídas de tanta bebida, o que nos levou a apressar o fim do encontro.
Com os trabalhos encerrados, demos uma fugida até Melo Franco, quinze minutos rio acima, para conhecer a fronteira com a Colômbia. Lá, moram cerca de quarenta pessoas. Há um posto da Polícia Federal com dois funcionários. A fronteira tem marcos de concreto e uma cerca de arame farpado. Ao voltarmos para São Miguel, já havia começado a festa. Fornecemos 4 litros da nossa gasolina, o suficiente para ligar duas lâmpadas e um aparelho de som no centro social. Apesar de estarmos nos confins do Brasil, dentro de terra indígena, não ouvimos música local: o som era típico dos forrós do Norte, alternado com músicas colombianas bem dançantes. O ritmo das rodadas de caxiri aumentou e a festa foi até tarde.
À noite, fiquei com fome. Fui salvo pelo José Roberto, que, também faminto, trocou um pouco de gasolina por uma paca moqueada com beiju. Ele chamou Eliseu, Edlene e a mim para matarmos a fome. Umas crianças trouxeram um punhado de japurá, pequeno fruto semelhante a uma castanha, muito saboroso, que os indígenas usam para fazer tempero de sopas e mujecas. Depois da refeição, atei minha rede no canto do centro social, onde algumas pessoas ainda conversavam. A noite foi desconfortável devido a uma bruta dor de barriga, resultado do caxiri. Aí percebi que havia esquecido o papel higiênico. Levantei cinco vezes durante a noite para fazer minhas necessidades no mato. Limpei-me com folhas, prestando atenção para não catar uma urtiga.
No meio da madrugada, depois de tantas idas ao mato, fui tomar um banho no rio. Cheguei lá num escuro total, ajudado pela lanterna. Tirei a roupa e comecei a me acomodar para o banho. Mas a presença de morcegos em vôos rasantes sobre o rio me deixou tenso. Acabei me limitando a escovar os dentes e deixando o banho para a manhã seguinte. Dias depois, viria a saber, por meus colegas, que o caxiri estava mesmo fora do ponto e que a dor de barriga fora unânime.
QUINTA-FEIRA Acordamos cedo, saímos de São Miguel por volta das 7h30 e chegamos à aldeia de Jandiá às 8 horas. Fomos recebidos com mujeca, peixe moqueado (um aracu riscado, que estava delicioso) e um pouco de caxiri. O prato mais bizarro era a piabinha, peixe de pequeno porte, temperado com saúvas, formigas vermelhas, enormes, fritas e crocantes. No início, para comer as formigas, procurava pensar que aquilo era biscoito crocante. Mas logo a gente se acostuma com a idéia. Já estava afoito, comendo exageradamente para agüentar mais um dia só com caxiri no estômago, quando o Jaciel me disse que, segundo o líder local, haveria almoço. Ufa! Menos uma dor de barriga à noite.
Ficamos esperando os representantes de etnia Hupda da comunidade de Uaguiá, que ficava a 45 minutos de caminhada, mata adentro. No distrito de Iauaretê, há diversas aldeias hupdas, que, ao contrário do que fazem as outras etnias, vivem afastadas do rio, mantendo um contato indireto com os brancos, por intermédio de outras aldeias com as quais trocam caça e frutos por roupa, pilha, lanterna ou rede. A maioria dos hupdas não fala português. Eles são mais baixos e se vestem de maneira mais rústica que os outros indígenas. São tratados como inferiores. Embora menos do que antes, ainda é comum prestarem serviços domésticos e trabalharem na roça para famílias de outras etnias em troca de comida e objetos. Já ouvi diversas vezes frases do tipo: “Quando meu pai tinha um hupda”. Mesmo assim, eles são tidos como arredios e independentes, levando vida nômade. Quando lhes dá na telha, mudam-se sem avisar ninguém.
Em Jandiá, o maior problema foi garantir a participação efetiva dos índios hupdas na reunião. Poucos entendiam o português, alguns entendiam o tucano. Quase todas as mulheres falavam apenas a língua hupda. Aos trancos e barrancos, fomos levando a conversa. No almoço, houve paca com arroz e macarrão. Sem pratos nem talheres, eles pegaram folhas e as dobraram, formando cones. Colocaram a comida ali, agacharam e comeram com a mão, com toda a naturalidade, como se estivessem em uma mesa de restaurante. Durante o almoço, fui dar um mergulho no rio para arejar a cabeça. A diferença física entre os indígenas e a minha pessoa parece gritante. Pelo menos é o que sugere a atitude das crianças. De longe, quando estamos já próximos das comunidades, elas começam a se esconder ao ver o branco chegando em meio a sete indígenas. As menores começam a chorar. Choram porque os únicos brancos que aparecem por lá com alguma freqüência são os enfermeiros e auxiliares de saúde. Quase sempre sua vinda é sinal de injeção ou outro procedimento desagradável.
Em Jandiá, quando fui tomar banho de rio, fiz um sinal para algumas crianças hupdas irem comigo. Fui atrás delas, certo de que conheceriam o melhor ponto de banho. Mergulhei num ponto logo após a cachoeira, de águas turbulentas. A diversão delas era “entrar” num redemoinho que as girava e jogava para o fundo. Alguns segundos depois, apareciam um pouco mais abaixo, eu nervoso, e elas gargalhando. As crianças nadavam como peixe, não tinham o menor medo das corredeiras. Fui na onda delas e comecei a nadar nas turbulências. Depois de dezenas de tentativas frustradas, finalmente peguei um redemoinho. A força da água me puxou, girando para mais de 1 metro abaixo da superfície, a ponto de eu vir a bater a cabeça no pé de uma das crianças. Fiquei completamente à mercê da correnteza, que, depois de alguns segundos, me levou de volta à superfície, alguns metros mais à frente.
Depois da reunião, por volta das quatro da tarde, as pessoas se mantiveram nos seus lugares. Fumavam tabaco e tomavam caxiri. De vez em quando, colocavam na boca um pouco de ipadu (um pó extraído da folha de Eythroxylum cataractum, arbusto aparentado com a coca). O pó é colocado no canto da boca e vai sendo ingerido aos poucos, pelo contato com a saliva. Dizem que os pajés o consumiam antigamente, para ajudar a compreender melhor o mundo e aumentar a capacidade de memória do momento. O fato de estar conversando, fumando, tomando um caxiri, mascando ipadu era suficiente para manter aquelas pessoas ali, mesmo sem reunião. Nem os primeiros indícios de escuridão preocuparam os moradores de Uaguiá, que tinham uma trilha de 45 minutos pela frente. Era como se eu tivesse chegado a um dos últimos lugares do mundo, onde a televisão não havia impregnado uma cultura com sua confusão, sua pressa e seu imediatismo. O papo varou a madrugada. Eu o abandonei por volta de uma da manhã.
SEXTA-FEIRA Saímos sem tomar banho ou café-da-manhã. Ainda sob a névoa matinal, descemos um pouco o rio antes de pararmos numa pedra com visual lindo, para tomar o café-da-manhã. Comemos um pedaço da paca moqueada, trocada em Jandiá. Levamos mais uns vinte minutos até chegar a São José de Anchieta, nossa próxima parada. Depois da tradicional recepção com mujeca e beiju, abrimos a reunião. Tivemos um almoço com peixe e, outra vez, paca moqueada. Além dos moradores de Anchieta, participaram os de Tucunaré Alto e de São Fernando, comunidade formada pelos índios hupdas.
Anchieta foi o lugar onde fomos mais bem recebidos. Antes de dar início à festa, foi feita uma cerimônia de dabucuri, na qual se faz oferendas aos visitantes. Cada pessoa da comunidade traz algo para presentear os convidados. Depois de um ritual de dança e canto, as pessoas deixam os presentes no meio do centro social. Em seguida, temos que levantar, pegar as oferendas, dar duas voltas pelo centro social, mostrando as coisas para todos, antes de as levarmos para nosso alojamento. Recebemos farinha, peixe, paca, laranja, coco, banana e açaí, o que garantiu fartura para o resto da viagem. O capitão da aldeia foi extremamente simpático, e me pediu para tirar uma foto dos moradores.
Com o caxiri rolando solto, a primeira dança foi a do cariço. Para ela, os homens fazem flautas de madeira, que usam só uma vez. No final de cada festa, elas são quebradas. Os homens começam a dança tocando as flautas e marcando passos fortes, e depois as mulheres entram para acompanhá-los. Eu já tinha tocado cariço em outras circunstâncias. Pela primeira vez, me arrisquei a tocá-lo em público. Musicalmente foi uma catástrofe. O instrumento parece simples, mas é difícil dançar e tocá-lo ao mesmo tempo. A experiência valeu a pena pela hilaridade geral, principalmente das mulheres ao verem um branco entrar na roda. Por volta das 22 horas, o líder da comunidade se levantou e falou alguma coisa em tucano. Imediatamente meus companheiros se viraram para mim e falaram: “Vamos embora, acabou o caxiri”. Fiquei meio embaraçado de sair assim que acabou a bebida. No entanto, para eles, isso não só era natural, como era quase protocolar. O aviso formal do chefe era justamente para isso.
SÁBADO, 1º DE DEZEMBRO A principal característica de Uirapixuna, nossa parada seguinte, é que ela tem uma escola, centro de referência onde estudam crianças de várias aldeias do Papuri. Sua população varia, por isso, de acordo com o ano letivo. Passa dos 100 habitantes no período escolar, cai para cerca de trinta ou quarenta nas férias. Na ocasião, as aulas não tinham começado ainda. As pequenas casas temporárias onde moram os estudantes estavam vazias. Mas vieram à reunião os moradores de Cabeça de Onça (Nhá Mnu, em hupda), a meia hora de caminhada. Só seu agente de saúde falava tucano e um pouco de português, tendo ele servido de intérprete. A tranqüilidade da reunião foi atrapalhada por um acidente: Nivaldo preparava nosso almoço quando o botijão de gás começou a vazar e fez um fogaréu. O risco de pegar fogo na palhoça de madeira onde nos alojamos mobilizou todo mundo. O incêndio só foi controlado quando um morador pegou uma toalha e o abafou. A comida teve que ser terminada no fogo a lenha.
Desde Jandiá, eu tentava fazer contato com o Pelotão Especial de Fronteira, em Iauaretê, para falar com Julia, minha mulher. “Eco Bravo, Eco Bravo”, eu repetia pelo rádio. Sem resposta. “Eco Bravo” é a forma de chamar o Exército Brasileiro nessas ligações. As iniciais E e B são as mesmas. Em Uirapixuna, tentei de novo. Não consegui, mas falei com uma pessoa no pólo-base de saúde de Iauaretê, que ficou de ligar para a Julia. Fui avisado de que ela chegaria até o rádio em dez minutos. Quando tentei contato, pouco depois, a primeira coisa que ouvi foi sua voz me chamando. Eu respondia, mas ela não me escutava. Durante alguns minutos ficamos assim. Mesmo sem ser diálogo, o fato de ouvir sua voz já foi um alento que renovou minhas forças.
Encerrada a reunião, fui tomar banho de rio. Todas as outras vezes tive que tomar banho de bermuda ou cueca, pois havia esquecido minha sunga. Os indígenas, em geral, tomam banho de sunga ou short. Têm o ótimo hábito de lavar a roupa no banho, o que, principalmente em viagem, é muito prático. Dessa vez, fui sozinho. Encontrei um canto entre pedras, que me deixou à vontade para banhar-me pelado. Foi um dos meus momentos de maior interação com a natureza, ouvindo o barulho do rio, curtindo o pôr-do-sol, acompanhando os pássaros.
DOMINGO Partimos de Uirapixuna às 6h40, pois teríamos um longo percurso até Patos. No caso, Patos não se refere à ave: é o nome de uma das flautas do Jurupari, o ritual de iniciação na vida adulta. Trinta minutos além de Uirapixuna, paramos em Monforth, na margem colombiana do rio. No percurso, viajamos quase o tempo todo em território neutro. Isto é: no meio do rio, nem Brasil, nem Colômbia, deslizando sobre a linha de fronteira entre os dois países. De um lado, a moeda é o Real; do outro, o Peso. Português aqui, espanhol lá. Quando o sol se põe, às 19h30 no lado brasileiro, são 18h30 no colombiano. As aldeias do lado colombiano têm, em geral, melhor infra-estrutura, como luz, telefone, saneamento básico, escolas com melhores instalações e comércio. Mas, antes de tirar conclusões precipitadas sobre a administração dos dois países, convém notar que as cidades da margem colombiana têm maior concentração demográfica, com algumas centenas de moradores, enquanto, no Brasil, a maioria não passa de poucas dezenas. No Papuri, há 25 comunidades brasileiras e só quatro colombianas. Participei de dois encontros de fronteira com representantes do Brasil e da Colômbia. Os indígenas dos dois países, falando o tucano, dão um banho de comunicação nos brancos brasileiros e colombianos. A comunicação entre eles é melhor, inclusive, do que com seus respectivos compatriotas brancos.
A parte do rio na qual cada lado pesca é definida, respeitosamente, entre as aldeias brasileiras e colombianas. Há intensa troca de produtos agrícolas e até industrializados. Num dos lugares que visitamos, havia três placas solares, conseguidas por meio de trocas na Colômbia, onde são mais baratas. É trivial o casamento entre indígenas dos dois países. As comunidades de um país constantemente têm roças no país vizinho. Alguns moradores de comunidades brasileiras falam melhor o espanhol do que o português. Conheci um indígena que tinha título eleitoral nos dois países, o que lhe dava grande notoriedade, porque podia solicitar apoio tanto dos políticos brasileiros quanto dos colombianos. Outra diferença significativa é que, no território brasileiro, por ser terra indígena, é proibida a entrada de bebida alcoólica. Na Colômbia, não. Assim, nossa passagem por Monforth serviu também para tomar uma latinha de cerveja. Mesmo de manhã, e quente, matou saudades.
Às 9 horas, chegamos a Patos, que já foi o maior centro econômico e populacional do rio Papuri. Sua localização é estratégica: fica defronte a uma cachoeira de difícil transposição, que obriga a maioria das cargas a passar pela trilha de cinqüenta minutos em terra firme. No seu auge, tinha uma cooperativa, liderada pelos missionários, que comercializava os produtos das aldeias e contava com um trator usado para transportar os produtos. Sua decadência decorre da debandada de moradores para Iauaretê, como aconteceu em outros locais. Hoje, sobrou para Patos o papel de centro de referência em atendimento de saúde do Papuri.
A reunião contou com representantes das aldeias Santa Marta e São José, ambas de indígenas hupdas. O encontro ocorreu como planejado. Mas uma coisa me deixou intrigado. As duas comunidades vieram lideradas por dois indígenas de outras etnias, que se apresentavam como agentes de saúde. Nos grupos, só eles punham nos papéis as necessidades e potencialidades das comunidades, sem ouvir os índios hupdas. Quando tentei estimular a participação deles, percebi que estavam meio bloqueados. Boa parte deles não falava tucano, e não sei se havia ali algum hupda que falasse português. Muitos antropólogos e indígenas me haviam falado sobre a independência dos hupdas. Para eles, parece não haver problema em trabalhar para os outros, desde que recebam o pagamento de seu trabalho em roupas, sandálias, farinha, fósforo ou anzol.
Patos foi o único lugar de onde consegui falar com Julia por rádio. Com a intermediação dos agentes de saúde, conseguimos a ligação. Não estávamos na freqüência mais usada – para casos de doenças, solicitação de transporte para os pacientes ou acertadas reuniões e viagens. Mesmo assim, num canal menos “público”, é desagradável dizer “meu amor” e ” minha querida” quando qualquer um pode ouvir. Pelo menos, deu para matar um pouco as saudades. Em três anos de convivência, nunca tinha passado tanto tempo sem falar com minha mulher. Para quem está acostumado a telefones celulares, é estranho ficar dias seguidos sem possibilidade de comunicação.
A festa, depois da reunião, foi tímida e com pouco caxiri. A vantagem é que a estrutura do pólo-base nos deu direito a usar a cozinha e principalmente o banheiro. Nivaldo fez um macarrão que dividimos com os índios hupdas, vindos de outras aldeias. O pólo tinha um gerador que alimentava sua estrutura e algumas casas. Uma delas tinha televisão. Foi impressionante ver o efeito hipnótico da televisão sobre as crianças indígenas. Mesmo sem entender quase nada de português, elas ficavam vidradas na tela, vendo desenho, futebol ou o Faustão.
SEGUNDA-FEIRA Acordamos por volta das seis. Comecei a arrumar minhas coisas. Em seguida, como ainda vi companheiros deitados nas redes ao terminar minhas arrumações, aproveitei para ir ao banheiro do pólo-base para tirar a forra da semana usando o mato. Não sei se demorei demais, matando as saudades da privada, ou se eles foram muito rápidos para se aprontar, mas o fato é que nos desencontramos. Quando saí do banheiro, não havia mais ninguém na palhoça, onde dormimos. Peguei minha bolsa para levar para o porto, mas ouvi o motor da voadeira partindo. Supus que eles tinham pensado que eu havia pegado a trilha e, com tanta bolsa a bordo, não deram pela falta da minha. Tive que enfrentar de novo a trilha de quase uma hora, dessa vez sozinho e carregando minhas bolsas. Mesmo depois de alguns meses morando em Iauaretê, a floresta para mim continua um mistério. Nessa caminhada solitária de uns 3 ou 4 quilômetros, foi inevitável pensar nas possíveis surpresas.
Primeiro, ao ouvir pássaros, eu tentava localizá-los, o que é quase impossível devido à densidade da floresta. Eles se escondem nas copas das árvores. Um movimento de folhas perto de meus passos me deu um susto. Apesar de ter quase a certeza de que se tratava de um lagarto, pensei que podia ser uma cobra. Comecei a imaginar a espécie e o tamanho da bicha. Jararaca? Coral? Sucuri? Jibóia? Vieram à minha cabeça aquelas cobras de 5 ou 6 metros, vistas na televisão. Passei a olhar mais para o chão e a tomar mais cuidado com meus passos. Qualquer som de galho quebrando me trazia à cabeça a imagem de cotias, pacas ou antas. Será que uma anta corre rápido? Mais do que eu? E se o barulho for de onça? Peguei o primeiro pedaço de pau que apareceu à minha frente. Só por garantia, mesmo sabendo que ele dá apenas um falso sentimento de proteção. A forte dose de adrenalina subiu quando, apesar do medo, pensei que seria interessante ver uma onça. Meus olhos, de repente, começaram quase que a procurá-la na floresta. Imerso nesses pensamentos, enxerguei o boné de um companheiro que me esperava no fim da trilha. Meu primeiro contato longo e solitário com a selva amazônica terminou aí. Não encontrei pacas, antas, onças e nem cobras gigantes. Muito menos o Curupira, que devia estar dormindo para poder trabalhar à noite, período em que os pescadores e caçadores estão mais ativos.
Seguimos viagem para São Gabriel do Papuri, local da próxima reunião com moradores também de Tucunaré Baixo, São Paulo e Japim. A reunião foi proveitosa. Nesse trecho do rio, as comunidades indígenas da etnia Piratapuia (ou Waikhana, como elas mesmas se denominam) desenvolvem um projeto conhecido como “Volta às Aldeias”. Seu objetivo principal é incentivar o retorno das famílias às comunidades originais, estimulando a agricultura, a reforma das casas etc. O projeto cria uma alternativa à concentração demográfica, enfrentada na sede do distrito. E tem levado outras etnias a tentar o mesmo caminho. Em São Gabriel, os waikhanas construíram uma linda maloca, decorada com desenhos mitológicos e modelos dos instrumentos musicais tradicionais. Há também belas miniaturas de equipamentos de pesca, como o cacuri e o matapi, feitos pelos alunos da escola. Troquei uma bela miniatura de matapi por um par de sandálias e um pouco de comida. Negócio fiado a pagar em Iauaretê. Quando fui tomar banho de rio, vi três meninas de 2, 8 e 10 anos, tirando a carapaça de um tatu enorme. Só depois soube que elas ajudavam a preparar nosso café-da-manhã: carne de tatu e de cotia desfiada. A habilidade e a naturalidade com que aquelas crianças pequenas lidavam com a caça, como se fosse um brinquedo, me deu a impressão de estar muito mais perto que nunca do meio “selvagem”.
TERÇA-FEIRA A saída de São Gabriel foi a mais demorada. Primeiro, por ser a comunidade originária do Arlindo, o que tornava um desrespeito não ficarmos para a refeição matinal. Além disso, havia certa apreensão no ar porque, para chegar ao destino seguinte, Santa Cruz do Turi, era preciso entrar no igarapé Turi, que tinha muitas árvores caídas e talvez não houvesse passagem. Há alguns dias, torcíamos para que chovesse. Quanto mais seco o igarapé, maiores são os obstáculos. Na véspera, tentamos contato radiofônico com Santa Cruz para saber como estava o igarapé e não tivemos resposta. Com seis dias de viagem, a equipe mostrava os primeiros sinais de desgaste. Alguns vinham conversar comigo e falavam que Santa Cruz era muito longe, que levaríamos seis horas para chegar lá. Claramente tentavam me convencer a desistir de atravessar o igarapé. Mas fomos em frente.
Paramos na comunidade de Santa Luzia, perto da boca do Turi, onde seria a reunião do dia seguinte. Para deixar a voadeira mais leve, Arlindo, Ivo e Jaciel ficaram lá. Nivaldo, José Roberto, Eliseu, Edlene e eu seguimos só com a gasolina e a alimentação necessária para ir e voltar. Por precaução, pegamos emprestado um facão para cortar galhos e troncos que atravancassem nosso caminho. A viagem em igarapés é mais bonita e confortável do que em rios maiores. A mata fica mais fechada, protegendo da chuva e, principalmente, do sol. Encontram-se mais animais, principalmente aves. A toda hora ouvem-se cantos de pássaros. O barulho do motor os espanta, permitindo apenas um vislumbre de tucanos, gaviões e martins-pescadores. O pássaro que mais me impressionou foi o mergulhão, ahkô da’se, em tucano. Quando o vimos pela primeira vez, ele ouviu o barulho do motor e voou. Mas, como se manteve na linha do igarapé, mais à frente o avistamos novamente, e ele voltou a escapar. Mais alguns segundos e lá estava ele em outra árvore. Dessa vez saiu planando sobre o igarapé, para dar um mergulho cheio de estilo. Acostumado a ver essa cena no mar com gaivotas e outras aves pescadoras, fiquei esperando ele voltar à superfície. O mergulhão não deu sinal de vida. Diante da minha perplexidade, José Roberto explicou que a ave fica até cinco minutos debaixo d’água e que sabe nadar muito bem. Segundo ele, já devia estar a muitos metros do lugar onde mergulhara. Longe de mim duvidar. O fato é que, nos trinta segundos em que tivemos ângulo de visão para ver o local do mergulho, o pássaro não reapareceu.
Chegamos a Santa Cruz depois de três horas de viagem. Além das comidas habituais com que fomos recebidos nas outras aldeias, ali o caxiri era de milho. Por ser mais suave, veio bem a calhar depois de seis dias seguidos bebendo caxiri de mandioca. Havia um grupo maior de indígenas hupdas. Os outros eram da etnia Desana. Foi o local onde senti menor diferença entre os grupos. Apesar de terem menor domínio da língua portuguesa, os hupdas falaram à vontade. O local produz muito milho. O que a mandioca representa nas outras comunidades, o milho tem seu similar no Turi. As lideranças disseram que, por algum tempo, tentaram levar sacas para vender em Iauaretê, mas não conseguiam um preço satisfatório e desistiram. Sobra milho a ponto de estragar. E eles fazem todo tipo de comida com ele. Nosso almoço foi uma deliciosa paca com mingau de milho.
Após a reunião, tive um fim de tarde divertido, brincando com umas crianças de Santa Luzia. É uma coisa deliciosa ver como as brincadeiras infantis são universais. Eu não entendia uma palavra do que elas falavam, e nem elas a mim. Mas corria para pegá-las e elas corriam. Mesmo as mais novas, que fogem dos brancos, entraram na roda. Quando eu pegava uma delas, colocava no ombro e começava a fazer cócegas. As outras gargalhavam e começavam a fingir que fugiam, mas querendo ser pegas. Sempre que eu soltava uma interjeição, elas repetiam, ironizando. Na festa, foram os hupdas que abriram a dança tradicional, tocando cariço. Depois foram os Desano, com quem peguei carona: tive na flauta uma performance ligeiramente melhor que a anterior, embora continue longe de aprender a tocar e dançar ao mesmo tempo. Gostei de ver as crianças de várias idades, imitando a dança dos pais e mães. Elas se metiam no fim da fila, com um menino e uma menina e, às vezes, dois meninos tentando seguir os passos dos adultos. Os meninos colocavam os quatro dedos da mão direita na vertical, encostados nos lábios inferiores, representando flautas. Davam passadas fortes como os pais.
Pelo contraste com o que vejo a toda hora em Iauaretê, a cena me marcou. Lá, na sede, os líderes indígenas têm dificuldade para envolver os jovens. Crescem os problemas sociais típicos das cidades: violência entre os jovens, alcoolismo, brigas familiares e desrespeito aos mais velhos. Os jovens desdenham cada vez mais sua origem e sua cultura, adquirem hábitos consumistas e ninguém mais quer saber das danças tradicionais. Mas todos sabem o que aconteceu no último capítulo da novela das oito.
Ali, vendo aquelas crianças imitarem a dança tradicional indígena, estava diante de uma sociedade onde os pais ainda são exemplos para os filhos. Provavelmente, quando essas crianças crescerem, terão que estudar em Iauaretê ou em São Gabriel da Cachoeira. Seus pais não estarão mais presentes. É difícil calcular a falta que isso fará na sua formação como cidadãos indígenas brasileiros.
A grande vantagem entre nossas bebidas alcoólicas e o caxiri é que, antes de embebedar, a bebida indígena provoca desconforto no estômago pela sua acidez e seu peso. Sempre que diminuía o ritmo de ingestão do caxiri, era porque meu estômago já estava pedindo arrego, dando indícios de que viria uma diarréia. Como em Santa Luzia o caxiri era mais suave, pudemos tomá-lo à vontade. Parei de beber quando percebi que estava com os sentidos afetados. Saí da festa à francesa.
QUARTA-FEIRA Saímos para Santa Luzia às nove. Como parte da equipe tinha ficado lá, podíamos viajar sem tanta pressa. Agora, conhecendo as passagens do igarapé, fizemos o trajeto em duas horas. O ponto alto da estada em Santa Luzia foi o drible que pudemos dar no caxiri. Eu e um companheiro nos recolhemos mais cedo, pois nossos estômagos estavam completamente avariados. Tomamos só as cuias que passaram durante a reunião e as primeiras da festa, para não faltar ao respeito com os anfitriões. Às sete da noite, me recolhi. O problema é que, como nas outras comunidades, o caxiri era nossa refeição noturna. Acabei ficando com fome. Procurei ignorar a barriga roncando. Mas, no meio da madrugada, já em situação extrema, lembrei-me de uma barra de chocolate amargo que Julia colocara em minha bolsa. Foi o melhor chocolate que comi na vida.
QUINTA-FEIRA Depois de Santa Luzia, Aracapá, que fica a quinze minutos de Iauaretê, era a última aldeia em nosso roteiro de visitas. Inicialmente planejáramos dormir lá. Mas a saudade de casa – e dos confortos domésticos, pelo menos para mim – levou-nos a decidir voltar logo depois da reunião. O problema foi segurar a pressa do grupo. Depois de nove dias longe de casa e da família, era mais que esperada essa reação de cavalo que acelera o passo quando está chegando perto da cocheira. Mas mantivemos a metodologia e a reunião só findou as quatro horas da tarde.
Aracapá nos ofereceu de quebra uma chance de variar o cardápio. Lá tem muita piabinha que, no almoço, comemos cozida e frita. Elas vêm inteiras, com carne, espinha, rabo, olho e cabeça. As piabinhas fritas, pelo tamanho e maneira de comer, parecem batatas fritas, mas são mais nutritivas. Da mesma forma que Patos, Aracapá teve certa importância há algumas décadas e hoje está meio abandonada. Havia por ali aldeias com mais de 100 habitantes. Com o êxodo para a sede do distrito, hoje têm apenas vinte ou trinta moradores. Ocupa um vasto espaço, onde se vêem casas abandonadas, vastos campos de futebol completamente inutilizados e capelas degradadas.
Minha chegada, com um dia de antecedência, surpreendeu Julia, que precisou transformar em jantar de boas-vindas o almoço previsto para me receber no dia seguinte. Considerando que eu não jantava há nove dias, foi uma ótima troca. Confesso que foi reconfortante chegar em casa, voltar para os braços da minha mulher e para os confortos da vida de branco – banheiro, cama, água gelada e, claro, jantar. Depois de tomar um delicioso banho de chuveiro e de comer, fui deitar-me. Na cama, com Julia, demorei a dormir. Fiquei pensando no quanto tinha aprendido na viagem e se teria a oportunidade de ter outra experiência semelhante. Nunca compreendi tão claramente, como nesses dias, o valor do bate-papo descompromissado, da conversa. As pressões profissionais e pessoais da cidade não nos deixam jogar conversa fora assim, com amigos, parentes e vizinhos. Foi estranho precisar vir até aqui para enxergar isso. Este ano, Julia e eu voltaremos para o Rio de Janeiro. Mas espero manter contato com os indígenas de Iauaretê, para saber como andam seus projetos, suas viagens e suas vidas.
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