ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Pimenta à macuxi
Thomas Troisgros prova a damurida
Bernardo Esteves | Edição 94, Julho 2014
Num dia claro de maio, a índia uapixana Teresa Cardoso recebeu uma equipe de filmagem na comunidade em que vive, nos arredores de Boa Vista, capital de Roraima. Os visitantes vinham de Belo Horizonte, a mais de 3 mil quilômetros dali. Estavam interessados em vê-la preparar algumas especialidades da culinária local. As gravações integrariam uma série de vídeos sobre a gastronomia regional brasileira.
No caminho até a comunidade da Taba Lascada, Rusty Marcellini, o líder do grupo, pediu ao motorista que encostasse a van na estrada de terra. Queria fotografar a paisagem: estavam no meio do lavrado, uma savana com longas extensões de vegetação rasteira desprovida de árvores, muito diferente da selva que haviam sobrevoado para chegar a Boa Vista.
Teresa Cardoso – ou dona Teresinha, como era tratada pelos peregrinos – nasceu na Guiana, país limítrofe com o estado de Roraima. Vive no Brasil há 26 anos. Mas estar num país ou no outro não é uma distinção que faça muito sentido para ela – a fronteira é uma divisão relativamente recente no território ocupado há séculos por seus antepassados. Além da língua uapixana, ela também fala inglês e um português fluente, com ocasionais trocas de gênero e uma frase truncada aqui ou ali.
A equipe filmou-a preparando a farinha d’água, que está na base da culinária local. Feita de mandioca, tem grãos maiores e mais duros que a consumida noutras regiões do Brasil. O grupo pareceu se entusiasmar quando ela lhes mostrou o caxiri (também chamado de pajuaru), bebida alcoólica fermentada à base de mandioca. “É a cerveja do índio”, definiu dona Teresinha. Diante das câmeras, a uapixana disse que seu povo fabrica o caxiri para vender ou para consumo próprio, e que ele costuma ser tomado em ocasiões festivas. “Mas bebemos também quando tem serviço na roça”, acrescentou. “Chamamos umas três ou quatro pessoas para ajudar no plantio da mandioca. Se não tiver o caxirizinho…”
A índia foi buscar um pouco da bebida para oferecer aos forasteiros. Voltou com um líquido amarelo-claro de aparência leitosa, que deve ser degustado em temperatura ambiente (gelado não poderia ser, uma vez que não há luz elétrica na comunidade). Serviu num copo de plástico e perguntou: “Cadê o cozinheiro?” Referia-se a Thomas Troisgros, que fora convidado para se juntar à expedição. Filho de Claude Troisgros, estrelado chef francês radicado no Rio de Janeiro, Thomas seguiu a carreira do pai e hoje está à frente do Olympe e de outros restaurantes da família. Tem os traços franceses do pai, mas o sotaque e os trejeitos inconfundíveis de um carioca autêntico, como sua mãe.
Convocado pela uapixana, Troisgros cheirou o líquido e disse que lembrava cerveja. Surpreendeu-se ao primeiro gole. “É ácido e tem gosto de torrado”, constatou. E aprovou: “Adoro coisas fermentadas, merrmão.” Rusty Marcellini, que também havia experimentado a bebida, disse que mal se percebia o teor alcoólico. Dona Teresinha advertiu: “Agora você não sente nada, mas espere meia hora para ver.”
Mineiro de Belo Horizonte, Rusty Marcellini é o curador da Expedição Fartura Gastronomia, que documenta as práticas culinárias das diferentes regiões brasileiras. Ele vem rodando o país à frente de uma equipe de mais quatro pessoas – uma produtora, dois cinegrafistas e um operador de áudio. “A ideia é fazer o registro de toda a cadeia produtiva gastronômica em cada estado brasileiro”, explicou Marcellini, que além de documentarista também é cozinheiro. “Nosso trabalho vai do campo à cultura regional, passando pelas feiras até chegar aos restaurantes e ao consumidor final.”
Roraima foi o 16º estado percorrido pela expedição, lançada em 2012 por iniciativa dos promotores do Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes. Neste ano, a caravana já passou por Amapá, Alagoas, Sergipe e Espírito Santo. O material recolhido nas viagens deu origem a um livro – um segundo volume e um documentário estão em fase de finalização. “Com o material coletado este ano pretendemos fazer uma série de vídeos para a internet”, anunciou Marcellini.
A viagem a Roraima incluiu uma visita ao mercado municipal e a produtores de doces e da paçoca feita com carne de sol e farinha d’água. O ponto alto foi a elaboração da damurida, prato típico indígena que consiste num condimentado ensopado de peixe. Para documentar o preparo, a trupe visitou a casa de Lídia da Silva Raposo, uma índia macuxi de 50 anos que vive em Boa Vista. Ao receber os hóspedes do Sudeste, ela explicou que aprendeu a fazer a iguaria com a mãe e a avó.
O segredo da damurida reside numa pequena xícara de tucupi reduzido, obtido depois que o tucupi convencional, ralo e amarelado, apura no fogo por algumas horas, resultando num líquido escuro e encorpado. “É amargo, quase um shoyu”, disse Thomas Troisgros após experimentá-lo. A cozinheira havia preparado um belo tambaqui, mas explicou que também poderia ter usado carne. “O que caracteriza o prato é a pimenta. Sem pimenta, não é damurida.”
Lídia usou dois tipos de pimentas típicas da culinária local: a murupi, bem ardosa, e a olho-de-peixe, uma bolinha amarela que, ao ser degustada, provocou uma careta em Troisgros, acompanhado de um eloquente e sucinto “Jesus!”. “A damurida tem que estar queimando mesmo”, justificou Lídia. “Nós, índios, comemos muita pimenta.” Quando o quitute foi servido, os visitantes foram unânimes em elogiá-lo e reiterar sua ardência. “Tá todo mundo suando”, notou o filho da cozinheira.
Thomas Troisgros disse que pretendia elaborar um ensopado parecido, com restos de peixe. Lembrando que no Rio não encontraria o cariru, a folha amazônica que tempera o caldo, logo pensou numa alternativa: “Posso fazer com ora-pro-nóbis, que tem textura parecida.” O cozinheiro carioca abriu então o sorriso empolgado de quem tivera um estalo. “Isso aqui está me dando umas ideias… Chupa, Alex Atala!”