ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Por aquí pasó, compadre, hacia aquellos montes lejos
Cinco dias de televisão em Cuba
João Moreira Salles | Edição 16, Janeiro 2008
A televisão cubana mudou muito. Ao menos, é a impressão que se tem de um quarto de hotel. Há menos de seis anos, ao ligar o aparelho, o turista invariavelmente se deparava com Fidel. Uma testemunha conta que, no dia 11 de setembro de 2001, a televisão cubana ocupou quase seis horas da sua programação com a solenidade de inauguração da escola secundária Salvador Allende. No noticiário da noite, quem perdera a inauguração ao vivo pôde assistir a um resumo da solenidade. Só depois de estar informado sobre as novas instalações escolares, o espectador era apresentado às outras notícias do dia: “Já em Nova York…” Cuba estava sozinha. Ninguém prestava muita atenção à ilha, e a ilha não prestava muita atenção ao mundo.
Não mais. Agora, há cabo nos quartos dos hotéis. É provável que o viajante curioso prefira os canais quase exclusivos da rede local às ESPNs disponíveis no mundo. Através deles, poderá vislumbrar o que mudou em Cuba nos últimos anos. Será uma experiência de pouco rigor sociológico, mas de notável valor empírico.
Durante cinco dias, no mês passado, um turista ligou a televisão cubana em diversos horários e não viu Fidel uma única vez. Tampouco ouviu falar de Raúl Castro. A figura pública cubana que mais aparece – e, ainda assim, pouco – é o ministro das Relações Exteriores, Felipe Pérez Roque. Se tempo de tela equivale a poder, então Pérez Roque é de fato o delfim do regime. Entretanto, mesmo o ministro não passa de coadjuvante perto do grande protagonista da televisão de Cuba. Ligue-se a TV às três da tarde ou às duas da manhã: depois de cinco minutos, será um espanto se a tela não for ocupada por Hugo Chávez.
Às 20h15 de uma segunda-feira de dezembro, o canal CubaVisión mostrou Chávez ao vivo de Buenos Aires. Ele discorria sobre como Lula organiza mal sua agenda. “Disse a Lula que ele deve ir à Bolívia no dia 16 [de dezembro] para se encontrar com Evo. Ele me disse: ‘Mas Hugo, dia 16 tem a cúpula de ALBA’. Respondi: ‘Lula, a ALBA pode ser mudada. Você deve ir ao Evo. É importante’.” A expressão satisfeita de Chávez sugeria que Lula compreendeu a sensatez da sugestão. (Lula pousou em La Paz no dia 16.)
Chávez está onipresente também nos outros dois canais cuja programação é parcialmente retransmitida pelas TVs cubanas: a Venezolana de Televisión, “El canal de todos venezolanos”, e a TeleSur, “Nuestro Norte es el Sur”. Os dois são gerados em Caracas. São interessantíssimos.
Na Venezolana, o canal público da Venezuela, a programação era interrompida a cada dez minutos pela vinheta “Visita Oficial do Presidente da República Socialista Bolivariana da Venezuela Hugo Chávez à Argentina”. Uma trilha algo épica ressoava sob uma foto de Chávez tomada de baixo para cima. Em seguida, o homem apareceu. Ao vivo, saía de uma solenidade. Um repórter fez uma pergunta sobre as negociações com as FARC, que Chávez foi forçado a interromper por determinação do presidente da Colômbia, Álvaro Uribe. De pronto, o rosto bolivariano murcha como flor desidratada. A tristeza é grande: “Não me venha falar desse assunto. É triste. Até o Natal algumas pessoas seriam libertadas. E agora isso. Veja: eu vivo para salvar vidas. Hasta un perro, hasta un elefante… Si! Si un elefante necesita de mi ayuda, estoy presente!” (Uma semana depois, as FARC anunciaram que, em deferência a Chávez, iriam soltar três reféns.)
Vemos então a mãe de uma sequestrada. Ela faz um apelo: que o presidente Uribe não tente uma ação militar para resgatar os prisioneiros. Firme, apesar dos olhos marejados, diz que a carta que recebeu da filha deixa claro que…
Ficamos sem saber o que ficou claro. Antes que a frase se complete, a Venezolana interrompe a entrevista para entrar, ao vivo, com uma notícia de última hora. Hesitação, uma câmera que treme e finalmente vemos um palco onde um homem, sentado num banquinho, dedilha um violão. De terno e gravata, Hugo Chávez sobe ao palco, apruma o microfone e anuncia: “El show de Hugo Chávez”. Aplausos. O presidente olha para o alto, onde uma câmera posta numa grua ascende às alturas: “Fidel… mi amigo Fidel… Fidel, how are you?” E então, de algum lugar em Buenos Aires, passa a recitar um poema:
Por aquí pasó compadre,
hacia aquellos montes lejos
Por aquí, vestido de humo,
mi general que iba ardiendo…
Era um longo poema – 57 versos – que Chávez declamou ao som plangente do violão. Ora erguia o braço para um lado, ora para outro, ora erguia os dois, apontando para o rastro imaginário do personagem enigmático que por aquí pasó, deixando marcas como la nieve en el pico, como el toro en el rodeo (voz de pedra e trovão), como el grito del centauro (novo trovão, agora aliado à licença poética, já que o poema original, de Alberto Arvelo Torrealba, não menciona centauros). Foi nessa toada até o fecho fulminante:
¡Por aquí pasó Bolívar, compadre,
hacia aquellos montes lejos!
Fim do boletim. Era hora do intervalo. Veio a vinheta “Construyendo el socialismo bolivariano. Democracia plena!”, seguida de cenas de realizações do governo. Há uma seqüência recorrente na qual um menino pobre olha pela janela da sua casa, constata os benefícios bolivarianos na paisagem e, ao girar o rosto na direção da parede do quarto, encara um cartaz do Homem-Aranha. O menino reflete e, com um gesto decidido, pega a fotografia de um líder chavista e a prega por cima do super-herói. Sorri com o feito: “Construyendo el socialismo bolivariano. Democracia plena!”
A Venezolana ocupa o canal 23. O 24 pertence à TeleSur. Inaugurada em 2005, é uma emissora multiestatal – Venezuela, Argentina, Bolívia, Cuba, Equador e Nicarágua – , mas seu financiamento é de competência da República Bolivariana. Adriana Orejuela, responsável pelo setor de co-produções da TeleSur, explica o propósito do canal: “Somos uma alternativa ao monopólio midiático do Norte. Somos a contra-ideologia da CNN, que, como sabemos, é de ultradireita”. A TeleSur é como uma Al-Jazeera da América Latina.
Terça-feira. Programa La Noticia, o jornal das 8 da Venezolana. A primeira matéria trouxe Geraldo Alvarez, embaixador da Venezuela nos Estados Unidos, anunciando, em Boston, a nova etapa do programa Energia Cidadã, que oferece petróleo barato para aquecer o lar dos “americanos mais necessitados, pobres e índios”. Na televisão cubana, o telespectador assistia a matérias aprofundadas sobre dois congressos: o de reumatologia e o dos arquitetos e engenheiros. Fidel, nada.
Quarta-feira. O embaixador Geraldo Alvarez já estava em outro estado americano. Americanos necessitados, pobres e índios agitavam bandeirinhas venezuelanas. Às sete da noite, na CubaVisión, um nativo finalmente mencionou Fidel. O apresentador Randy Alonso Falcón, o William Bonner de lá, pronunciou o nome do Comandante, numa citação sobre a importância das universidades para o avanço do socialismo.
Quinta-feira. Entrevista na Venezolana com o ministro do Poder Popular para a Educação, Adán Chávez Frías, irmão do presidente. Ele acabara de se reunir com sóror Núbia Marin, uma freira simpática e rechonchudinha, presidente da Associação Venezuelana de Educação Católica. Entrevistas com os dois sobre programas educacionais em parceria com a Igreja. Entrou no ar um programa educativo. Um antropólogo de longas barbas tecia considerações sobre o poder popular. O apresentador anunciou: “Esse velho mestre marxista que acabamos de ver um dia teve diante de si, como pupilo, o nosso comandante Hugo Chávez. Em certa ocasião, ao perceber que Chávez hesitava em permanecer no poder, ele lhe disse: ‘Não deixe o poder. Fique onde está. Dê um jeito'”.
Sexta-feira. Ao meio-dia, na TV cubana, abertura do programa cultural Cercanias. Imagens de Che e de Chávez são superpostas. Nada de Fidel. No canal venezuelano, La Noticia foi interrompido por “um comunicado do Governo Popular”. A apresentadora assumiu uma expressão grave. Leu um texto sobre as insinuações americanas de que 800 mil dólares descobertos na mala de um empresário venezuelano teriam sido enviados pelo governo de Chávez para ajudar a campanha de Cristina Kirchner. A presidente da Argentina acabara de negar o fato. A jovem apresentadora comentava: “O mundo se manifesta contra a ação vulgar e descarada impetrada pelo Império contra as repúblicas da Venezuela e da Argentina. O Império foi desmascarado. Nosso rumo histórico não será determinado pelas elites ianques de Washington”. Terminada a leitura, a Venezolana seguiu com sua programação normal, no caso, uma coletiva de imprensa do prefeito de Caracas, Freddy Bernal, que, exaltado, falava do “caráter guerreiro e justiceiro do nosso presidente Hugo Chávez, em oposição ao servil cachorro do Império, Uribe”.
Para quem, em 2008, comemorará com uma ponta de nostalgia os quarenta anos de 1968, a Venezolana de Televisión e a TeleSur são um oásis. Nesses canais, ao menos do ponto de vista retórico, aquele é um ano que de fato ainda não acabou.