AS AVENTURAS DE PINÓQUIO_1883 DE ENRICO MAZZANTI (1852-1910). COLORIDO POR DANIEL DONNA
Por que as crianças gostam de Valtidisnei
De como me perdi de minha família ao ver Pinocchio, fui parar num reformatório, e a reencontrei numa sessão de Bambi
Stephen Rose | Edição 13, Outubro 2007
Eu tinha 7 anos e usava calças curtas de botão. Um dia fui com meus pais e meus irmãozinhos ver Pinocchio, de Valtidisnei; a gente não perdia filme de Valtidisnei. O cinema estava muito cheio, tivemos de sentar separados. Estava indo muito bem quando veio a cena da baleia que come Pinocchio. Saiu uma desordem danada e eu gritei, chorei e saí correndo, mas não achei mamãe, estava muito escuro. A cena da baleia dava cada vez mais medo, então resolvi sair do cinema para não sofrer mais. Me perdi dos meus pais desse jeito, ou eles se perderam de mim. Não sabia o endereço de casa, só sabia a cor e o jeito dela, e que havia um baleiro na esquina. Não sabia também meu nome inteiro, era muito comprido e não conseguia decorar. Não tinha documentos, não tinha emprego fixo, a polícia foi obrigada a me pôr num reformatório de órfãos e filhos perdidos.
No primeiro ano, aprendi as coisas da vida, jogar pôquer, aprendi palavras novas. O passadio não era muito bom, mas a companhia era. Comecei a usar calças compridas de suspensório. A única esperança de rever minha família era um outro filme de Valtidisnei, que meus irmãozinhos apreciavam tanto.
Certa vez, vi no jornal que ia passar A Vitória pela Força Aérea, de Valtidisnei, no cine Art-Palácio. No dia da estréia, ganhei no pôquer, fugi do reformatório e entrei no cinema às 2 horas da tarde. Fiquei no cinema durante as duas semanas em que o filme passou, dormia no banheiro, no entanto minha família não apareceu (depois soube que meus pais não foram porque achavam que um filme de guerra não é bom para crianças. E meu pai trabalhava na Marinha).
Tive de voltar ao reformatório. Já era um veterano, e como prêmio pelo meu mau comportamento ganhei o direito a talher para comer, travesseiro, cigarros, bebidas espirituais e fui convidado pra freqüentar a sala do diretor uma vez por semana. O diretor sempre tinha gostosas guloseimas para dar aos meninos bonzinhos da vida. Coitado, o diretor era muito solitário porque sua mulher tinha fugido com Rubão, o carcereiro-chefe.
Já tinha dois anos de reformatório e não podia me queixar da vida. Daí anunciaram Bambi, “um poema de ternura e compreensão animal”. Ganhei no pôquer, fugi de novo e fui correndo ao cinema. Me lembro até hoje. Na sessão das 4, na cena em que o esquilo diz que podem chamá-lo de flor, reencontrei de novo meus pais e meus irmãozinhos. Foi uma festa. Eles já haviam sentido a minha falta e também esperavam um filme de Valtidisnei. Estavam cheios de presentes para mim. Só papai, que era muito distraído, ficou sério e me passou um sabão porque eu não tinha feito a barba e estava com o pescoço meio sujo.
Voltei enfim para o lar. Hoje já estou maiorzinho e progredi muito na vida. Sou chefe de uma quadrilha do bairro e estou nervoso porque esta tarde vamos assaltar minha casa. Meus pais e meus irmãozinhos foram ver a vesperal de Cinderela. Eu não quis ir, mas ainda gosto de Valtidisnei.
Incríveis revelações sobre a origem do manuscrito, seu autor e as voltas que o mundo dá
Meu nome (falso) é Heitor Gonzalez Saavedra, nascido José Souza da Silva. Sou desembargador aposentado do estado de Mato Grosso do Sul. Conheci intimamente o autor do conto filosófico ora em pauta, tendo inclusive participado do assalto nele referido – crime prescrito, data vênia nossa jurisprudência. Fui também seu colega de reformatório, prova de que nosso sistema de recuperação da infância desvalida piorou muito de lá para cá.
Tenho, portanto, toda a autoridade para falar sobre o assunto. Vamos aos fatos: o autor foi batizado como Estevão Rosa e sempre sofreu dessa fatalidade legal – era chamado ora de Estêvão, ora de Estevão, ora pelo apelido de Estevinho, devido à sua baixa estatura, não mais de 1,54 metro. Tudo isso se agravava com o sonho, acalentado desde o reformatório, de se tornar um escritor de renome internacional. Cedo ele adquiriu rudimentos de inglês, francês e religião. Ao estudar a vida dos santos – tema que o fascinava, sobretudo quando ligado ao martírio -, descobriu, em suas leituras, na excelente biblioteca do reformatório, que Estevão Rosa correspondia em inglês a Stephen Rose e em francês a Etienne Rose. Foi um deslumbramento: de quebra, se livrava do til do prenome.
A partir de então, Estevão tornou-se Stephen ou Etienne. Já tinha um nome, faltava-lhe apenas fazer uma obra à altura. Reintegrado à sua família, conseguiu escrever apenas um conto de duas laudas: “O anão maneta”. Fui seu único leitor e, com minha franqueza habitual, disse-lhe que se tratava de uma nulidade.
Acabrunhado, sem poder escrever de fato, desviou sua obsessão para uma curiosa mania: as falsas dedicatórias. Emporcalhou a biblioteca de sua mãe, escrevendo na folha de rosto coisas assim: “Sincerely yours, Oscar Wilde” (tratava-se de O Retrato de Dorian Gray). Em Madame Bovary, foi singelo: “Amicalement, Gustave Flaubert”. Com a antologia de Shakespeare, fez pior: “With love, dear friend. Will”.
Quando, certo dia, num chá beneficente, a mãe foi mostrar uma de suas preciosidades da biblioteca e deparou-se com a dedicatória, que escandalizou as amigas. No mesmo dia, castigou Estevão. Revoltado, ele rasgou todas as páginas que continham a prova do crime – daí em diante todos os livros que comprava sofriam a mesma vilania: páginas arrancadas – “o sumo”, dizia ele – e o livro jogado fora. Voltando atrás: poucos dias após o incidente com sua mãe, planejou e executou o assalto à própria família.
Ganhamos muito dinheiro com o assalto. Homem de visão, dele me servi para completar meus estudos na tradicional Faculdade do Largo São Francisco. Já Stephen-Etienne dissipou sua parte no pôquer e na quantidade absurda de livros que comprava para completar sua formação de grande futuro literato. Nunca produziu nada – se o fez, escondeu-o até de mim, seu maior amigo. Ensimesmou-se e viveu uma fase errática como escriturário. Formou-se em caligrafia na Escola Di Franco, pioneira na América Latina. Estudou datilografia, mas nada brotava dessas novas possibilidades de escrita.
Não tinha amigos nem namoradas. Foi definhando. Nada de obras. Até que um dia, no final dos anos 60, fui informado de seu desaparecimento. Corri à pensão onde morava, na rua do Triunfo, região então chamada de Boca de Lixo. Em seu quarto, apenas restos de sua passagem por ali, durante cinco anos: um par de meias Lupo, cerzidas e usadas, um pé de sapato em mau estado, um frasco de Biotônico Fontoura, giletes enferrujadas. Em meio a esse lixo, brilhava um envelope pardo, no qual se lia, em sua impecável caligrafia: “Aos pósteros”.
Tomado de viva emoção, abri-o e li o conto acima publicado, também manuscrito. Nele reconheci o mesmo texto que ele enviara, em 1964, como colaboração espontânea à revista Pif-Paf, criada por Millôr Fernandes. Lembrei-me então de como meu amigo ficou absolutamente abalado com essa última rejeição a seu último escrito, de caráter estritamente biográfico, sem nenhuma invenção ficcional (nem de linguagem, diria eu).
Atesto, finalmente, sob as penas da lei, que tudo isso é verdade e se passou em São Paulo. Creio que essa conceituada revista faz bem em publicar o escrito de Stephen Rose (Etienne Rose), como uma homenagem e um trágico exemplo de que um belo e extraordinário nome, ainda que pseudo, não pode garantir a existência de uma obra, com raríssimas exceções, como o professor Emilio Myra y Lopez e o americano Edgar Lee Masters, poeta tão extraordinário quanto desconhecido.
Soube depois que Estevão Rosa não morreu nos anos 60. Ele teria embarcado num cargueiro, com destino à Europa. Em minhas pesquisas no Google, descobri alguns indícios desses três nomes relativos a alguns personagens: um monge cisterciano, chamado Étienne, na França, que vive em reclusão absoluta, mas teria reformulado o canto gregoriano de acordo com princípios da Escola de Schleiermacher; um velho diretor de teatro de marionetes, Estevão, que encanta as crianças em Braga, Portugal etc., etc. Porém, a hipótese menos provável, por isso mesmo a mais confiável, é de que ele seria um auxiliar do físico excepcional (nos dois sentidos) Stephen Hawking (seu xará, portanto), como peça-chave do computador especial que lhe construíram.
Nosso Stephen trabalharia dia e noite dentro dessa máquina, provando a tese do anão-autômato aventada há mais de setenta anos pelo pensador alemão Walter Benjamin. De qualquer forma, não há dúvida de que os sistemas de busca na internet não poderiam existir sem o trabalho de anões internos que tudo sabem e investigam (mas nada criam), em que pese a Norbert Wiener.
P.S.: o pai de Walt Disney, Elias, era muito severo e o maltratou muito. Walt cedo descobriu que não tinha certidão de nascimento, e alimentou a idéia de que era filho adotivo. Já adulto, nos anos 40, fez um acordo com o FBI: em troca de informações que lhe permitissem saber quem eram seus pais verdadeiros, passaria a ser dedo-duro a serviço do anticomunismo. O FBI nunca descobriu a verdadeira origem de Disney. Extraordinária premonição do jovem Estevão quanto a prenomes e sobrenomes.
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