MICHAEL SOWA
Porco
Um relato à maneira de Clarice Lispector feito por um(a) renomado(a) escritor(a) nacional. Quem acertar o nome do (a) autor(a) até a próxima edição ganhará uma assinatura de piauí
| Edição 21, Junho 2008
Era um porco de todo dia. Um porco sem cor e sem graça, estúpido sob o seu couro. Era um porco: redondo com a terra do curral, esparramado no meio da vida dos outros porcos, muito de enfeitar uma mesa de domingo – quando chegasse num ensolarado o sábado do brilho-faca.
Não sujava ninguém, ninguém sujava nele. Mesmo quando o alimentavam, ensaboando com olhos, sabão e dissabor a condição de sua espécie, nunca saberiam dizer se era gordo ou magro – um porco; o mesmo que fora amoldado no começo dos séculos. Jamais se adivinharia nele um sentido; nem um senso de humor.
Pois foi uma surpresa quando, ao roçar a escuridão de uma maçã (cabendo exata sob o perverso do focinho), torceu a boca de mudo porco, levantou uma sobrancelha e exclamou na desafinada imitação dos homens:
– O almoço está servido!
Surpreendido, enlevado com seu próprio falar, ele martelou, tecla por tecla (de piano e de máquina de escrever), a escala cansada dos humores de que agora era dono.
A chacota, o chiste, o burlesco e a anedota, o bon mot e o mot d’esprit, o witticism, a sátira e a paródia, a piada e o aforismo, o epigrama e a mordacidade, o sarcasmo e a ironia.
Usou e sujou, muito do consciente e muito do orgulhoso da nova sofisticação recém-adquirida: privilégio e mistério entregue de repente, como de súbito, às patas desajeitadas de seus grunhidos.
Os outros, porcos também, sentiam-se roubados do maior pudor que lhes era dado: eu… vocês. Feriam-se na sua porcina essência adulterada. Ficaram – que fazer? – a olhá-lo e escutá-lo enquanto ele doía na sua compreensão simples, como num mendigo nos dói a esmola e não a ferida. Passaram-se dias, como num mês, e o porco em seu humor movia-se mais rápido e ágil, a velha placidez já esquecida. Tornou-se – santo Deus! – um porco que se pensava George Bernard Shaw na cara e no corpo de George Sanders.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo o porco que se calcara contra a lama do quintal, prestes a reclamar, como um sabiá-reclamação. Nesses momentos, enchia os pulmões com o ar impuro das tardes e grunhia como um sabiá-grunhição. E se fosse dado aos porcos machos procriar sozinhos, ele não procriaria porcos, mas ficaria muito mais contente. Embora nesses instantes sua sofisticada cabeça não se alterasse, continuava um bicho muito do porco, atrapalhado apenas com um senso de humor; um péssimo, um horrendo senso de humor.
Fácil é – glória a Deus! – chegar-se à estranheza e à autopiedade pelos caminhos solitários do humor. Ele se sentia diferente. Perguntava: por que é que os porcos me olham tanto? Que é que tenho afinal? Que me sobra, por que este humor, esta alegria? Que graça é esta como se só eu risse?
E grunhia para as pedras do quintal e a lama do curral.
De manhã e pela tarde, deu-se a distribuir insultos e vilipêndios, como um sabiá-insulto e um sabiá-vilipêndio.
Um porco – como um homem – pode ser um homem. Um homem – como um porco – pode ser um porco. Um curral foi feito para caber porcos. O mundo foi feito para caber homens – e jamais os dois devem se encontrar. Mas eis que ambos, mundo e curral – que fazer? – machucados e ofendidos, impelem-se para o tocar: a gramática ao guincho, o fuzil alimentado à espiga devorada. Num curral e num mundo, pois, traça-se o esboço, o recorte e o perfil dos homens e dos suínos: parecem penetráveis porque têm uma porta e uma porteira, como outras portas e outras porteiras fechadas.
Função: encontrar uma semente onde incrustar uma magnífica frase.
Natureza: riscos não tomados, palavras orgulhosas de si mesmas.
Relação com as pessoas: a natureza aprisionada dos objetos e bichos.
Objetivo: a simplificação das coisas complicadas, a complicação das coisas simples.
O mundo e o curral e as coisas e as pessoas e os bichos são enormes, pequenos, intrusos, bem-vindos, tristes, alegres, bondosos, ruins.
E eis que de repente chega sábado, como uma segunda-feira, enchendo os cochos de abóbora quente. As rugas negras da cozinheira escolhem-no – aquele que engordara de enfastiamento e ironia – para o linho branco de anil e goma da mesa de domingo. Ele caminha em sossego ao lado da negra, o rabicho perguntando atrás do guincho, na sincronização cozinheira-comida.
Suavemente opaco ao lado da fada-cadafalsa, inclina o pescoço:
– Cuidado, ele é tão frágil! – como Maria Antonieta.
– Oink! Oink! – chega às rugas negras com que a cozinheira ouve.
Perto de queimar, molha uma lágrima:
– Eppur si muove! – como Galileu.
– Oink! Oink! – chega às rugas negras com que a cozinheira ouve.
Fecha-se, portanto, por sobre o porco, a porta-porteira-fogão – e, ao movimento, no novo cheiro de cozinha em festa, entram panelas e panelas de sarapatel. (Hábil tempero, contribuição, pantagruélico apetite, o pão e o circo.)
Até que um dia, os porcos, preocupados com suas coisas e gestos de porcos, distantes de seus sábados, esquecem-no e passam-se 365 dias. Como num ano. Que não fosse bissexto.