Como tantos jovens progressistas, Júlio Wrobel foi seduzido pela ideologia comunista e a promessa de um mundo justo e igualitário FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
Preso, banido, desaparecido
A perseguição de Getúlio Vargas a meu avô
Vera Wrobel | Edição 48, Setembro 2010
Meu avô era uma figura silenciosa. Seu nome era Júlio Wrobel e chegou ao Brasil como imigrante em 1929. O pouco que falava era em iídiche, e eu não o entendia. Costumava me comunicar com ele através do olhar, que me parecia particularmente bondoso. Quando ele morreu, em 1959, eu tinha 11 anos.
Vinha de Losice, na Polônia, onde nascera em 1892. Eu já tinha ouvido coisas bastante tristes sobre aquela terra “onde não se podia ser feliz”, quando um de seus filhos recordou como suas vidas haviam sido reguladas pela ultraortodoxia religiosa. E falava com orgulho do fato de o pai ter largado o rabinato no caminho para o Brasil. Sabia também que falira durante a Primeira Guerra Mundial. E que meu avô descendia de uma família de rabinos. E minha avó, Sofia, de ricos comerciantes de couro.
Só recentemente fiquei sabendo que Losice foi rota de passagem para tropas russas e alemãs na Primeira Guerra. Logo, sofrera invasões pelos dois lados, além de ser palco do conflito entre os exércitos russo e polonês. Como se não bastasse, em 1917 os oficiais poloneses deram ordem para que os soldados saqueassem por 24 horas os bens dos judeus. O pogrom se estendeu por mais quatro dias.
Ao desembarcar no Rio de Janeiro, é provável que Júlio Wrobel tenha ficado em algum local próximo à antiga Praça Onze. Havia naquela parte velha da cidade um reduto judaico de imigrantes recém-chegados, que desapareceria com as demolições de ruas inteiras para abrir a avenida Presidente Vargas, na década de 40. Ele tratou de se estabelecer por aqui rapidamente. Em 1932, já podia mandar vir o filho mais velho. Em 1935, comprara as passagens para trazer o resto da família – a mulher e seus três outros filhos. E aí foi preso.
Como tantos judeus progressistas daquela época, Júlio Wrobel fora seduzido pela ideologia comunista e sua promessa de um mundo novo, justo e igualitário. Reunia-se em locais onde a política era assunto e frequentava a Arbeter Kich, ou Cozinha do Trabalhador, no número 151 da rua Visconde de Itaúna, cujas mesas congregavam judeus vindos de vários cantos da Europa. Eles tinham no iídiche sua língua franca. A Arbeter Kich era também conhecida como Brazkor, uma contração de Brazilianer Tzentral Komitet Far Di Idishe Ibervonderer In Rotfarband, que em português virou Socorro Vermelho.
Aos olhos do governo Getúlio Vargas, a Cozinha do Trabalhador abrigava a “Organização Revolucionária Israelita”, como dizem os inquéritos policiais. A repressão chegou à Brazkor na onda de reações desencadeada pela Intentona Comunista, a série de levantes em quartéis que, partindo do Nordeste, no Rio sublevou a escola de oficiais da Praia Vermelha e da Vila Militar. Pelos autos policiais, no mesmo dia em que o movimento eclodiu na velha capital da República, a “seção de segurança social dirigida por Serafim Braga” realizou uma batida na Cozinha do Trabalhador, “poderoso núcleo filiado ao Partido Comunista do Brasil”. A blitz, “na noite de 26 para 27 de novembro de 1935”, prendeu “de dezoito a 25 pessoas”.
E aí, no número de presos, começam as ambiguidades. Em Histórias da BIBSA: Crônicas de um Judeu Progressista, Abraham Joseph Schneider, “O Vermelho”, conta como a repressão política usou um delator da comunidade judaica, Nicolau Zimmerman, para controlar as atividades suspeitas dos frequentadores da BIBSA, sigla da Biblioteca Israelita Brasileira Scholem Aleichem. Ao reconstituir aquela noite de 1935, Schneider não poupa Zimmerman, que apontou ao chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller, quem deveria ser levado, entre os fregueses surpreendidos durante o jantar na Cozinha do Trabalhador.
Em busca de indícios sobre meu avô, entrevistei lideranças do meio judaico. Assim, cheguei a Rosa Goldfarb, desde jovem uma ativista da comunidade, autora de O Canto da Rosa: Crônicas de uma Judia Carioca. Antes de encontrá-la, não tinha a menor ideia de que ela fora muito próxima da minha família, e talvez seja a única testemunha ainda viva da repressão. Naquela noite, Rosa conta que seu pai se atrasara ao buscá-la para jantar na “Ídiche Kor”, como ela diz. Em menina, Rosa morou no mesmo prédio da Cozinha do Trabalhador. No momento da invasão, sua família já havia se mudado para outro endereço, mas continuava a fazer ali suas refeições. Os Goldfarb foram todos salvos pelo atraso providencial de seu pai.
“Muito curiosa”, ouvindo depois as conversas dos adultos, Rosa soube que seu pai tomara conhecimento da batida a tempo. Mesmo assim, quis ir ao local para testemunhar da rua o movimento dos carros da polícia e o cerco à Cozinha. Foi assim também, ouvindo conversas, que teve notícia da prisão de Júlio Wrobel, um amigo de seu pai, que havia morado em sua casa ao vir para o Rio.
Há três anos, tentei obter informações sobre meu avô com a historiadora Andréa Telo da Côrte, que fazia sua tese de doutorado sobre os judeus de Niterói, onde ele morou. Achei o telefone dela na contracapa do boletim de um clube judaico niteroiense que estava a caminho do lixo. Marcamos uma entrevista, para a qual convidei também minha tia Fanny. Meses depois, Andréa Telo da Côrte me deu cópias dos registros policiais sobre a operação Brazkor. Os presos foram fichados pelo delegado Delcídio Gonçalves como “elementos indesejáveis ao país e perigosos à ordem pública”. E, como tal, transferidos diretamente “para a Casa de Detenção”, já “aguardando a ordem de expulsão”. Quarenta dias depois, foram expulsos pelo presidente Vargas. O decreto presidencial é datado de 6 de janeiro de 1936.
Faltava nos documentos o registro de entrada na Casa de Detenção. E nada constava sobre os presos encaminhados à Polícia Central, na noite de 26 de novembro, embora se presuma que todos tenham sido acusados e respondido a processos de expulsão. Mas, entre as peças do processo, deparei-me com um requerimento de Júlio Wrobel, pedindo a anulação da sentença em 15 de fevereiro de 1937.
Juntando os cacos dessa história, voltava sempre às mesmas dúvidas. Entre o decreto de expulsão e o requerimento de meu avô, não se conhecia nenhuma referência oficial aos presos da Brazkor. Ou seja, havia um ano e um mês de completo silêncio sobre seu destino, num processo de rito tão sumário que os condenados não tiveram tempo para exercer qualquer direito de defesa, como entrar em contato com suas famílias ou procurar advogado.
Eis o relato oficial do tratamento dado a Júlio Wrobel: “De ordem do Exmo. Sr. Chefe de Polícia, faço-vos apresentar o indesejável S. Seko Vrabel, a fim de ser processado de conformidade com o artigo 113, n. 25 da CF e expulso do território nacional.” O artigo da Constituição de 1934 que o texto invoca abria brechas para que tramitasse em “Juízos especiais, em razão da natureza das causas” o banimento de “estrangeiros perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses do país”.
Era exatamente nesses termos que o inquérito enquadrava “o indesejável S. Seko Vrabel”, preso na véspera, “juntamente com outros elementos reconhecidamente extremistas, numa célula comunista da organização revolucionária israelita Brazkor”. A Cozinha do Trabalhador, segundo o inquérito, “vinha sendo observada” em “suas atividades no propagar dos princípios de Moscou”.
Embora tudo se consumasse em poucas horas, os autos declaram que “foi dada vista para defesa ao acusado e este não apresentou, deixando extinguir-se o prazo concedido”. Portanto, “recolhido à Casa de Detenção”, meu avô estava “à disposição do Exmo. Sr. Chefe de Polícia”, para “o que julgar de direito”. O desfecho se limitaria a repetir textualmente a denúncia: “O presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, considerando que o polonês Sgulin Seko Vrabel, conforme foi apurado pela polícia, se tem constituído elemento nocivo aos interesses do país e perigoso à ordem pública, resolve em conformidade com o disposto no artigo 113, n. 15 da Constituição Federal expulsar o referido estrangeiro do território nacional.”
Partira diretamente do chefe de polícia Filinto Müller a decisão de banir “os dezoito elementos do Brazkor que estavam recolhidos na Casa de Detenção”. E nem dezoito eles eram. Entre lituanos, poloneses, romenos e russos, fichados como alfaiates, marceneiros, padeiros, hoteleiros, garçons, operários e até, num caso, “prestamista”, contam-se 18, 24, 25 e até 54 presos nos textos sobre a Brazkor que encontrei na internet – de Eva Alterman Blay, Esther Kuperman, Henrique Samet ou Fania Fridman.
Confrontando as listas, deparei-me com um nome que não entrava nas contas, o de Sojer Kaplansky. E, num manifesto escrito por ativistas do Socorro Vermelho e publicado por Alexandre Samis em Clevelândia: Anarquismo, Sindicalismo e Repressão Política no Brasil, surgem mais onze nomes excluídos da conta. A consolidação das listas dá um total de 36 pessoas.
No rol oficial dos dezoito presos mandados à Casa de Detenção, meu avô ocupava o 22º lugar, já com o rótulo de “deportado” e com o nome de Szulim Seko Vrobel. Embora sua deportação nunca tenha chegado a se efetivar, figura ali a data de seu embarque para fora do Brasil: 10 de julho de 1937. E lá está o nome do navio que o transportou, Comandante Ripper. Tratava-se de um vapor da marinha mercante, veterano da rota que, na seca nordestina na década de 1910, levava cearenses para a Amazônia, recrutados como seringueiros. O Comandante Ripper fazia, portanto, navegação costeira.
Num estudo copiosamente documentado, “Ação e repressão policial num circuito integrado internacionalmente”, a historiadora Elizabeth Cancelli destrincha o canal direto que funcionava entre Filinto Müller e o presidente Getúlio Vargas. Um decreto de 10 de janeiro de 1933 acabara, “do ponto de vista hierárquico”, com a subordinação da polícia ao Ministério da Justiça. Desde então, a polícia dependia diretamente da Presidência. E isso quatro anos antes do golpe que implantou a ditadura do Estado Novo.
Depois, as coisas ficaram ainda mais explícitas. Em 1937, escrevendo sobre a detenção de presos políticos sem processo formal, Filinto Müller argumentaria: “Somente ao presidente da República devo dar conta de meus atos no exercício do cargo com que sua confiança me honrou.” O poder ilimitado do chefe de polícia transparece num ofício enviado a Washington, em 5 de junho de 1935, por um agente do FBI, alertando que era um erro tentar qualquer empreendimento sem o consentimento de Müller, já que “o governo brasileiro só funciona com o apoio da polícia e das Forças Armadas”.
Sobre a imigração judaica, Filinto Müller tinha a seguinte opinião, transcrita pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro no livro O Anti-semitismo na Era Vargas: “Os indivíduos não possuíam profissão e estavam sem trabalho, exercendo influências por toda parte e de vários modos, considerando-se que o imigrante polonês era de péssima qualidade.”
Desde novembro de 1935, segundo Elizabeth Cancelli, as relações de Filinto Müller com a Gestapo eram estreitas. O Brasil participou da Conferência Policial de Berlim, organizada pela Gestapo em 1937. E Filinto Müller chegou a propor que se instalasse no Rio de Janeiro um agente alemão, a exemplo do que já acontecia em Buenos Aires.
Não era uma posição isolada. Numa correspondência sigilosa, de 1938, com o ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha, o cônsul do Brasil em Budapeste, Mario Moreira da Silva, resumiu o que boa parte da diplomacia brasileira achava do assunto: “Os judeus, embora possuam isoladamente elementos bons, são, em comunidade, assaz perniciosos e, por tal forma agem, que são tratados nas suas próprias pátrias de nascimento como indivíduos nocivos, indesejáveis mesmo, contra os quais se decretam toda a sorte de restrições, com um único objetivo de vê-los partir.”
Júlio Wrobel não foi deportado. Mas seu longo sumiço deixou marcas na família. Acompanhei, em 1991, as crises depressivas de seus filhos, principalmente dos que vieram para o Brasil em 1936, quando o pai estava desaparecido. Ambos imigraram ainda jovens, com menos de 20 anos.
Oito anos atrás, na terceira crise depressiva de Jacob, o caçula, resolvi intervir. Queria conhecer a sua história. Sabia que existia alguma coisa. E tinha que ser sobre o passado. “Ele só se abria com você”, disse-me recentemente minha tia Fanny, sua mulher. De fato, ele melhorava com nossos “encontros terapêuticos”, em sua casa.
E as histórias foram emergindo. A fuga pelos trilhos do trem em Losice, na Polônia. A cicatriz profunda na testa do irmão mais velho. Não lhe perguntei do que estavam fugindo. Hoje, levanto hipóteses. Dos ataques antissemitas dos soldados poloneses? Da invasão do exército russo?
Em outro encontro, em 2002, Jacob pegou um livro na estante que eu jamais vira e me disse: “É a entrevista de seu avô, em 1946, a um jornalista de Losice. O livro reúne depoimentos dos sobreviventes da Segunda Guerra nascidos na cidade.” O texto era em iídiche. Ele começou a traduzi-lo para mim, cansou-se daquilo e resumiu o conteúdo: “Seu avô conta como fugiu da prisão durante o governo Vargas.” Soava como um relato histórico, talvez com tintas heroicas, mas esvaziado do extremo sofrimento que Júlio descreve na entrevista.
Embora sem detalhes, sua história era conhecida na família pelos contemporâneos, mas não pelas gerações seguintes. Dizia-se vagamente que ele, depois de preso, foi mandado para algum lugar na costa amazônica, de onde teria conseguido fugir para Belém. O lugar do degredo seria “Goiânia”. Ninguém parecia estranhar o que estaria fazendo a capital de Goiás, cidade construída no Planalto Central durante a década de 1930, numa história supostamente passada na Amazônia.
A referência a Goiânia não corria só na família. Num artigo do professor Henrique Samet, “No pasarán olvidados: judeus do Brasil na Guerra Civil Espanhola e Resistência Francesa”, encontrei o depoimento de Rifka Gutnik, mulher de Waldemar Gutnik, um dos degredados. Ela afirma que os policiais teriam “engolido o dinheiro das passagens e proposto aos presos que eles fugissem sem a documentação legal que já haviam conseguido”. Os que recusaram a oferta, temendo ser mortos na fuga, foram levados “até a fronteira da Goiânia e soltos no meio do mato”. Entre esses, meu avô: “um que era de Niterói e que já tinha mandado buscar sua família”.
Rifka não tenta precisar quantos foram deportados, quantos aceitaram a “oferta” dos policiais e quantos acabaram “soltos” em “Goiânia”. Mas menciona o retorno do meu avô ao Rio de Janeiro.
O jornalista de Losice que o entrevistou em 1946 contou outra história:
Ele foi condenado a muitos anos de trabalho forçado numa longínqua ilha selvagem no Equador, no oceano Atlântico. Acorrentado e torturado, foi levado para esse lugar tenebroso fortemente vigiado. Para continuar a viver, decidiu fugir. Além do navio da polícia que trazia novos prisioneiros, jamais passava por ali qualquer embarcação. A única chance seria construir uma canoa a remo, cuja madeira seria cortada de uma árvore. Muitos chegaram a fazer essa tentativa. A segurança militar na ilha não mais reprimia as tentativas de fuga. Não precisava. Quando os fugitivos não morriam afogados, voltavam depois de dias, no mar, mais mortos do que vivos. Em seu plano de fuga, Júlio incluiu mais dois colegas. Navegaram sete dias e noites num mar revolto, queimados pelo sol, sedentos, famintos, enfraquecidos, desnorteados e em estado de delírio. Finalmente alcançaram uma margem povoada, vigiada pela polícia militar. Eles tinham que tomar conta da fronteira, não é mesmo?
Evidentemente, a ilha não poderia ficar em Goiânia, ou meu avô não teria fugido por mar até Belém. Quando telefonei para Rosa Goldfarb e demonstrei interesse pelas prisões ocorridas no Brazkor, meu formalismo foi quebrado instantaneamente pela resposta: “Seu avô foi mandado para a Francesa, para a Guiana, você não sabia?”
Ali estava a peça que faltava. Ele esteve preso na fronteira da Guiana, por óbvias razões geográficas. Retrospectivamente, não é difícil entender a confusão entre Goiânia e Guiana em versões veiculadas por estrangeiros, que pouco falavam o português e quase nada conheciam do território brasileiro. Sobretudo se a insegurança e o medo contribuíram para silenciá-los, impedindo-os de compartilhar informações.
Rosa juntou o quebra-cabeça que ligava a Brazkor, meu avô e a Guiana Francesa. “É a primeira vez que conto esse episódio para alguém”, ela disse. E acrescentou: “Como ele saiu de lá, não sei.” Para a tal ilha, como aprendi depois, eram enviados os expulsos do país que não saíram do Brasil, porque permaneciam no limite extremo da extradição – a fronteira do país com a Guiana Francesa. O local do confinamento ficava no rio Oiapoque, extremo norte do Amapá. Quem chega a seu porto é recebido atualmente pelo slogan na murada do cais: “Aqui começa o Brasil.”
O lugar se chama Clevelândia do Norte porque existe outra Clevelândia no Brasil, no sudoeste do Paraná. Ambas homenageiam o presidente norte-americano Grover Cleveland, o árbitro das questões de limites que liquidaram, em favor do Brasil, pendências com a Argentina e a França – além de mandar reforços militares ao Rio de Janeiro em 1889, para esmagar eventuais tentativas de restauração monárquica.
Foi para ocupar a fronteira recém-demarcada que, no começo do século passado, o governo brasileiro instalou em Clevelândia do Norte uma base militar e uma colônia agrícola, que o impaludismo devastou. A partir de 1922, governando em estado de sítio um Brasil agitado por rebeliões militares, o presidente Arthur Bernardes passou a despachar para lá presos políticos, imitando o processo de ocupação do território que já era adotado na Guiana Francesa. A situação de completo isolamento na mata virgem oferecia as condições perfeitas para a repressão: epidemias, fome, trabalhos forçados.
Só assim eu soube que o Brasil teve, na primeira metade do século XX, uma colônia penal remota, insalubre e tão sem volta que seus internos eram “deportados” para lá. Ainda no governo Arthur Bernardes, Clevelândia do Norte foi retratada como um campo de extermínio. Um relatório encaminhado ao ministro da Agricultura, “Viagem ao núcleo colonial de Cleveland”, dá conta de que, dos 946 prisioneiros desterrados para ali depois da revolta de 1924, 444 haviam morrido. Jaime Cubero, jornalista e ativista envolvido na resistência ao Estado Novo, afirma que “o envio de presos para Clevelândia representava algo equivalente a uma sentença de morte”. Ou, pelo menos, um meio de condenar “desordeiros sociais” a “contrair malária, à época, sem cura”.
O padre Rogério Alicino, que estudou o processo de colonização e a transformação da colônia agrícola em colônia penal, conta em livro que, “após a chegada dos presos provenientes de Catanduvas, nos meados de 1925, rebentou, no meio de todos os moradores de Clevelândia, presos e colonos, uma espantosa epidemia de disenteria bacilar que vitimou a muitos”. Alicino foi para lá a convite da companhia de fuzileiros da selva, e assim pôde recolher depoimentos dos sobreviventes nos anos 70. Um deles mencionou a “amebiana que liquidava rápido a vida dos padecentes”.
Eu havia esbarrado em histórias da colônia no livro de Alexandre Samis. Mas eles cobriam principalmente os anos 20, na República Velha. Há uma vaga menção a Clevelândia no caso Brazkor. Está num manifesto do Socorro Vermelho, denunciando deportações “na vigência do governo provisório de Getúlio Vargas”. Mas o relatório é tão impreciso quanto os papéis da polícia. Afirma que, embarcadas no vapor Santos, as vítimas foram enviadas à “tenebrosa região do norte” em “17 de março de 1934”. Os autores do panfleto parecem ter ouvido falar de Clevelândia, mas sequer levaram em conta que a blitz na Brazkor ocorreu um ano e meio depois da data usada na denúncia.
A colônia penal dos anos 30 só se tornou concreta para mim num artigo de Mariana Cardoso dos Santos Ribeiro, “Direito e autoritarismo, a expulsão de comunistas no Estado Novo (1937–1945)”. Nele há um imigrante que viveu uma experiência semelhante à do meu avô. Preso e acusado de comunista em 1934, o português Joaquim Alves da Rocha foi recolhido à Casa de Detenção do Distrito Federal para cumprimento da ordem de expulsão e embarcado para Recife em 1o de julho de 1936. Ficou preso na cidade até 8 de outubro de 1937 e, em seguida, foi solto numa região inóspita, de onde fugiu para Belém no ano seguinte. A rigor, todas as fugas da colônia penal cumpriam o mesmo percurso. Costeavam a Guiana, partindo de Saint Georges, no Oiapoque, e iam dar em Belém.
Na capital do Pará, meu avô foi preso novamente com seus dois colegas, agora como mendigos. Da prisão, contatou uma judia influente, que os ajudou a voltar para casa. Na entrevista de Júlio Wrobel, que foi publicada com o título “Um revolucionário da casa ultraortodoxa” num livro editado em Tel-Aviv em 1963, o entrevistador descreve o quanto meu avô havia mudado desde a emigração, em 1929: “Lembro-me dele como um rapaz ultrarreligioso, de barba e peyot, casaco comprido, botas longas e solidéu, puxando de uma perna com dificuldade e de sua mulher como uma mulher de shaitel, ultrarreligiosa. De repente, depois de vinte anos, vejo-a sem peruca, de cabelos brancos, curtos, e ao lado dela um senhor alto, bastante envelhecido.” Aparentemente, eles se conheciam bem, mas não se viram por duas décadas.
Para minha avó, a transformação do marido tivera início em Losice, quando ele começou a abandonar a sinagoga, preferindo conversar com amigos sobre “política, fome e pobreza”. Como disse Júlio Wrobel ao jornalista: “Isto foi um processo lento, que levou muitos anos e talvez a culpa possa ser creditada aos longos anos da Primeira Guerra Mundial, que gerou uma situação financeira dificílima.” Foi a partir desse momento que começou, segundo ele, um grande movimento de emigração para o outro lado do mundo, entre os filhos dos sapateiros, todos de casas ultraortodoxas.
Era disso que ele estava fugindo ao emigrar para a América do Sul: “Quando cheguei ao Brasil, encontrei não só um novo mundo, um novo continente, mas um mundo novo onde havia esperança, trabalho e crença.” E aqui acabaria encontrando também um outro clima de perseguição.
Recentemente, descobri que nem mesmo os parentes e amigos que conviveram com meu avô tinham conhecimento dessa história. É o caso de Luiz Goldberg, que me recebeu com documentos de seu acervo pessoal, contendo informações sobre a participação de membros da minha família nas atividades sociais da comunidade progressista. Mas deu mostras de não ter conhecimento de que meu avô teria estado envolvido no episódio Brazkor. Ao chegar ao Brasil, Goldberg tinha a mesma idade do meu pai e ambos frequentaram os clubes de sua época. Estavam muito atentos aos acontecimentos da Segunda Guerra, disse ele.
Acredito que meu avô, e outros que estiveram diretamente envolvidos nas crises políticas da década de 30 no Brasil, se calaram depois devido à insegurança que perdurou após a Segunda Guerra Mundial, na Guerra Fria. O decreto de anistia de 18 de abril de 1945, assinado por Getúlio Vargas, na realidade tinha por objetivo mais ocultar o lado autoritário de seu governo do que inocentar os indivíduos que haviam sido processados politicamente. Arquivou os processos sem reavaliar os supostos crimes, numa época em que bastavam suspeitas de comunismo para ter culpa formada. O ato garantia ao Estado a imprescritibilidade do crime, a eterna possibilidade teórica de execução da pena. Assim, mantinha-se o estrangeiro cativo do medo.
Sem dúvida, quando deu a entrevista em Losice, o Estado Novo acabara no Brasil, mas Júlio Wrobel aparentemente ainda temia a polícia do Distrito Federal, onde, segundo o entrevistador, “ele tinha desaparecido para sempre”. Isso, dez anos depois da prisão. Segundo Fanny, “eles não podiam falar do que tinha acontecido. Preferiram empurrar para o fundo”.
Meu avô jamais voltou a trabalhar. Seus filhos o sustentaram até a morte, em 1959. O silêncio de Júlio Wrobel, de seus filhos e conhecidos foi a resposta que puderam dar aos traumas sofridos. E assim a família foi marcada pela depressão. A raiva ficou reprimida e os traumas, guardados.
Uma noite, contei num pequeno círculo de pessoas a história de meu avô. Um amigo, indignado, perguntou em que medida a família tinha conhecimento desses fatos. Fiquei perplexa. Ele notou meu bloqueio e refez a pergunta, entrando em detalhes: Quem sabia desse acontecimento na família? Quanto sabia cada um? Ninguém sabia?
Custei a voltar a mim. Respondi, enfim, que sempre estive à procura de alguém que me contasse a história. Mas pensei comigo mesma: “Acho que você é a pessoa que tem que contá-la. Não adianta olhar para os lados. Você não vai encontrar ninguém.”
No dia seguinte perguntei a minha tia Fanny se, na época em que os contemporâneos de Júlio Wrobel estavam vivos, discutia-se o caso. “Era uma coisa tão violenta, tão drástica, que ninguém tocava nisso”, ela respondeu. “Eu não soube nunca dos detalhes completos. Aquilo marcou toda a família.”
Era um segredo. Mas um segredo que nunca deixou de se fazer presente na vida familiar. Entrava por todas as brechas do cotidiano. De alguma maneira, sempre vinha à tona, ainda que de modo velado, entre os fragmentos de memória dos anos difíceis.
Mexer nessas lembranças é como enfrentar um trauma, roçar num elemento surpresa que tira de modo violento a pessoa do caminho traçado e seguro, para o qual ela não poderá mais voltar. Mas, dias depois de me lançar nesse desvio com aquela pergunta, o tal amigo me mandou endereços na internet, com pistas sobre a história de meu avô. Ele estava realmente disposto a me fazer ir em frente.