ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Seu futuro cabe numa xícara
Na Turquia, tomar café pode ser perigoso
Clara Becker | Edição 37, Outubro 2009
O carioca Daniel Gnattali, de 23 anos, andava pela Istiklâl Caddesi com um papelzinho na mão. Havia chegado a Istambul na véspera, à cata de profecias. No papelzinho se lia: kahve keyfi, o que em tradução livre significa “leitura de borra de café”. Gnattali procurava um adivinho. O recepcionista do hotel lhe dissera para ir à rua onde agora estava – a via de pedestres formada por prédios do século XIX era um criadouro deles.
Gnattali estava acompanhado de sua irmã Laura. Fora ela que insistira no programa. Dizendo-se “espiritualizada”, tinha uma queda pelo esoterismo e considerava um sacrilégio ir à Turquia e não experimentar a prática divinatória. Imagine, seria como vir ao Brasil e não dar um pulinho no candomblé.
O rapaz não estava interessado em amores ou fortunas. Sua motivação era mais prosaica. Da leitura da borra do café, o que mais lhe interessava era mesmo a bebida. Sonolento e maldormido, àquela altura uma injeção de cafeína lhe parecia um santo remédio. Fora acordado de madrugada por um homem que berrava rente à sua janela. Chegara a ligar para a recepção do hotel e ouvira polidamente que “eles iriam checar”, já que não tinham percebido nada. Esclareceu-se mais tarde que os berros não eram berros, mas o som dos alto-falantes espalhados pelas mesquitas da cidade convocando os fiéis para a reza das cinco da manhã. Como isso o hotel não podia resolver, Gnattali enfrentava a perspectiva de diversas noites insones.
Os irmãos mostravam o papelzinho aos transeuntes, que, educadamente, apontavam a direção. A leitura é feita nos próprios cafés e está incluída no preço da bebida. Quanto a isso, nenhum problema. O diabo seria entender quais peças o destino estava preparando para lhes pregar. Apesar dos mais de 2 mil leitores de borra de café em Istambul, raros são os que falam inglês. Português, nenhum.
Depois de muito buscar, encontraram Kerem Dilbaz. Adivinho ativo ele não era, apenas um bom comerciante. Proprietário de um café, não queria perder os clientes e se propôs a traduzir a consulta no seu inglês fluente. Seis videntes revezavam-se no estabelecimento e, todos os dias, eram consultados por cerca de 200 turcos. Dilbaz também possui o dom da adivinhação, que se revelou a ele aos 6 anos de idade. Mas preferiu terceirizar o serviço.
O café de Dilbaz está localizado no 3º andar de uma galeria. Chega-se lá por um caminho imaginado por um diretor de cinema afeito a clichês. Primeiro, escadarias sombrias que rangem sob os pés; depois, um corredor salpicado de cadeiras velhas empilhadas pelos cantos; e por fim, o café, literalmente impregnado pelo cheiro de mofo e cigarro. Gnattali percebeu seis fregueses que olhavam para xícaras emborcadas sobre o pires. É parte do ritual: depois de beber o café, vira-se a taça e se aguarda uns minutos para que a borra esfrie.
O café turco é feito com pó não coado. Gnattali adorou a beberagem e ao engolir um pouco da borra especulou, temeroso, se teria comido parte do seu futuro. Já Laura detestou. Para apressar o andamento da coisa, o irmão se ofereceu para dar uns goles no café dela, mas Dilbaz não permitiu: “A pessoa influencia os desenhos que a borra formará pelo contato dos lábios e da respiração na xícara.”
A leitura se assemelha um pouco a um teste de Rorschach ou à leitura das nuvens. O adivinho divisa nas manchas formas de objetos, às quais se atrelam atributos específicos – peixe significa segredo; chapéu ou boné: encontro com um homem; animal doméstico: um amigo está com problema; vaso: previna-se contra a generosidade de desconhecidos. E assim por diante, até onde a imaginação alcance. Só entra no negócio da adivinhação quem foi visitado por anjos; para os que não receberam a visita, as figuras são mais abstratas do que a obra de Kandinsky. “É necessária concentração e sensibilidade para ver a figura”, explicou Dilbaz. Atrás dele, uma mulher passou aos prantos em direção ao banheiro. Decerto, foi apresentada a um animal doméstico ou a um vaso, quando não a coisa pior.
Gnattali acompanhou Dilbaz a uma mesinha escondida ao fundo do café, onde dava expediente o vidente Sait Savas, um homem jovem inteiramente à vontade no filme (mal) imaginado pelo diretor de cinema. Savas é corcunda e possui um olho maior do que o outro. Recebeu Gnattali com um sorriso carinhoso.
O sistema de crenças de Gnattali é tortuoso. Por princípio e disposição, o rapaz duvida de tudo. Mas como leva esta disciplina às últimas consequências, vê-se obrigado a duvidar também de suas dúvidas, o que torna tudo possível. E de fato, o impensável se materializou. Pareceu-lhe tamanha a precisão de Savas com relação a seu passado, que passou a se preocupar com o futuro. Ouviu que tinha duas irmãs – uma mais velha do que ele, outra mais nova –, e era verdade. Ouviu também que trabalha com computadores, o que, convenhamos, nos dias de hoje não chega a ser uma profecia de primeiro calibre. Mas como é designer, Gnattali sentiu um frio na barriga. Savas sugeriu que ele avisasse ao professor da família que tome cuidado com a saúde, já que os tempos não estão fáceis. Gnattali não sabe a quem passar esse recado: se ao pai, mãe, avó ou tios. Todos ensinam.
Gnattali foi informado de que pensará em casamento por volta dos 30 anos. A mulher terá um nome longo (ou quem sabe composto), de origem espanhola (isso se não se chamar Sabrina). O adivinho sugeriu que evitasse mulheres mestiças ou de pele escura, bem como as nascidas sob os desígnios de Gêmeos e Câncer. Em vidas passadas ele já se envolveu com mulheres desses signos e é melhor nem dizer como a história acabou. A mulher ideal é taurina. Savas pediu para que o jovem passasse o dedo indicador da mão direita na borra. No café agarrado às unhas ficou claro que ele terá dois filhos.
Por fim, com certa frieza, Savas anunciou que Gnattali sofreria um acidente de automóvel em junho de 2010. O sinistro acontecerá perto do mar. Gnattali não sofrerá nada, mas o carro e – infelizmente – o motorista não terão tanta sorte. Não sairão ilesos. Como mora no Rio, Gnattali concede que a profecia pertence ao terreno das possibilidades, todavia aprendeu com Édipo que não adianta fugir do destino e por isso não vai deixar de andar de carro. “Mas não custa nada evitar a orla”, pois que las hay, las hay.