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    FOTO: PAULA SCARPIN_2007

animal

Sinantrópicos e columbófilos

Quem são os pássaros misteriosos que, sob borrascas ou céu de brigadeiro, voltam sempre para casa, e quem são os seres ainda mais enigmáticos que gastam milhares de reais para criá-los

Paula Scarpin | Edição 16, Janeiro 2008

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A sombra da única árvore do descampado mal conseguia comportar os mais de 200 espectadores espremidos. Na tarde abafada de Governador Valadares, em Minas Gerais, a chegada da grande prova estava marcada para as 13 horas, mas desde o meio-dia os aficionados disputavam as cadeiras de frente para o pombal. Seis meses antes, conforme as regras do Columbódromo de 2007, os competidores haviam providenciado a reprodução dos seus melhores pombos. Em seguida, embarcaram – de caminhão ou avião – os filhotes com apenas 30 dias de idade para Valadares. Lá, os 1 200 pombinhos receberam a mesma alimentação e treinamento. A prova estava marcada para 13 de outubro, quando os filhotes percorreriam os 460 quilômetros que separam Vitória da Conquista, na Bahia, do pombal mineiro onde foram criados.

Um leigo não consegue distinguir um pombo competidor dos “ratos com asas” que infestam as praças das grandes cidades. Eles pertencem à mesma espécie, a Columba livia, e a única diferença entre uns e outros são a linhagem e o tratamento recebido. A genética, a alimentação e o treinamento fazem com que os competidores fiquem com porte atlético, penas sedosas e pés cor-de-rosa pálido, enquanto os de rua são mirrados, têm a plumagem mal ajambrada e as patas vermelhas.

Disseminados pelo mundo inteiro, à exceção das regiões polares, as pombas têm uma reputação ambígua. Se hoje figuram ao lado de ratos, pulgas e baratas com o triste rótulo dos animais sinantrópicos – “aqueles que se adaptaram para viver junto ao homem, a despeito da vontade deste”, segundo o Centro de Controle de Zoonoses – , o seu passado glorioso ainda ecoa no presente. Sua imagem difunde mercadorias (de sabonetes a guloseimas) e símbolos (do Espírito Santo à paz mundial).

Fósseis indicam que os pombos surgiram no Sul Asiático há cerca de 30 milhões de anos e logo chegaram à Europa e à África. Seu hábitat original eram as costas rochosas, onde faziam ninhos. Pombos e humanos se aproximaram por interesse. Conforme o homem dominava o cultivo de grãos e cereais – o alimento preferido dos pombos – , as aves se aproximavam, e serviam, por sua vez, de alimento para os humanos. Daí até o homem perceber o agudo senso de direção das pombas, e começar a usá-lo em seu favor, foi um passo.

Um pombo-correio não pode ser enviado a qualquer parte, como um teleguiado. Sua habilidade consiste unicamente em voltar sempre para casa, percorrendo longas distâncias. Há referências à criação de pombos em escritos mesopotâmicos e hieróglifos egípcios. O povo do Nilo foi provavelmente o primeiro a explorá-los como mensageiros, quando enviavam pombos aos quatro pontos cardeais para anunciar a ascensão de um faraó ao trono. Os gregos os usavam para transmitir os resultados das olimpíadas. Júlio César e Gengis Khan deram conteúdo militar à tecnologia.

Quando a comunicação à distância era precária, era comum um jornalista sair a campo com um ou outro pombo na bagagem para enviar em primeira mão o furo de reportagem. Foi um pombo que levou a Londres a notícia da derrota de Napoleão em Waterloo. Julius Reuter, o criador da agência Reuters, supria a lacuna de telégrafos entre a Bélgica e a Alemanha com equipes de pombos-correio. Quase todos os países tinham “pombais de guerra”, com aves treinadas para morrer pela pátria, e equipamentos próprios como caminhões-pombais e mochilas-gaiolas, que os combatentes levavam nas costas para mandar mensagens de volta à base. Uma história razoavelmente conhecida é a do pombinho americano Cher Ami, que foi baleado várias vezes pelo exército inimigo, na I Guerra Mundial, mas manteve o vôo e conseguiu levar a mensagem ao escritório de comando. Cher Ami está hoje embalsamado no Museu Nacional da História Americana, em Washington, DC.

A columbofilia como esporte nasceu na Bélgica. Com o desenvolvimento do telégrafo e de outros meios mais rápidos de comunicação, o pombo-correio foi deixado de lado e as criações ficaram restritas às competições. Até hoje as linhagens belgas são as mais respeitadas e, entre elas, a de maior renome é a que foi desenvolvida pelos irmãos Janssen. Em leilões, um pombo descendente dos criados pelos irmãos chega a valer centenas de milhares de dólares. No pedigree, o nome do criador vale mais do que premiações em campeonatos. Depois dos belgas, os criadores portugueses são os mais reputados.

Até os anos 90, os columbófilos brasileiros voltavam de viagens a Portugal com filhotes e ovos na bagagem. Foi a epidemia de gripe aviária que mudou a situação. A secretaria nacional de Defesa Agropecuária baixou, em 1993, uma instrução normativa que impôs restrições para a entrada de “aves ornamentais de gaiola”. Na prática, ficou impossível trazer pombos para o Brasil. Mas sempre se dá um jeitinho. Para aprimorar as linhagens, alguns criadores trazem pombos e ovos na bagagem de mão. Nem sempre dá certo. Um columbófilo paulista conta que, para disfarçar uns filhotes lusos na bagagem, embrulhou-os em meias. Como menos da metade chegou viva, foi com o coração partido que o criador jogou num depósito de lixo os cadáveres de pombos campeões. Depois de várias tentativas, os mais persistentes chegaram ao esquema perfeito: trazer os ovos em caixas de vidro, embrulhadas para presente. Com um detalhe crucial: o ovo precisa estar no 12º dia de existência, para que os raios X do aeroporto não o danifiquem.

Alguém avistou o primeiro bandinho chegando ao céu límpido de Valadares e deu o alerta. Todos se calaram para prestar atenção. Os bichos se aproximaram e pousaram no beiral do pombal, mas nenhum entrou. Na portinhola que dá acesso ao interior, onde água e comida farta aguardam os vencedores, foi colocada uma bandejinha com um sensor, de modo que o pombo precise pisar ali antes de entrar na gaiola. É a chamada “entrada eletrônica”, a última palavra em registro de chegada de pombos. O sistema é parecido com o de alarme nas bibliotecas. Assim como cada livro tem um minichip que apita quando passa pelo sensor, cada anilha (uma espécie de tornozeleira de metal com uma identificação) também é “chipada”. Quando a ave pisa na bandeja, ela é reconhecida e a informação é mandada para o computador. Todo o equipamento, que inclui um sensor (a bandejinha), um terminal (parecido com um controle remoto), o software para instalar no computador e os cabos de conexão, foi desenvolvido pela empresa alemã Rüter Tauris, que o exporta para o mundo todo.

Chegou o segundo bandinho, rodeou o pombal e pousou, novamente sem entrar. A tensão aumentou. Ouviam-se, aqui e ali, cochichos sobre problemas no treinamento dos pombos. “Pombo bom é aquele que chega e entra direto”, disse alguém. Um terceiro bandinho chegou e, sem rodar muito, pousou e entrou direto na gaiola. A maioria dos que aguardavam entrou no embalo. Numa salinha ao lado, o computador registrava os primeiros colocados. Jurandy Góis, o columbófilo mais enfronhado em informática, cantou os nomes dos primeiros a chegar.

 

O primeiro prêmio, uma motocicleta, vai para quem enviou dois pombos cuja soma das colocações seja a melhor. Os criadores responsáveis pelos pombos que chegam entre o primeiro e o quinto lugares ganham entradas eletrônicas Tauris, e entre sexto e décimo lugar, um aparelho de DVD. Há ainda uma televisão oferecida como prêmio para o criador do primeiro pombo “designado”. Quando um criador manda seus pombos para um campeonato, ele escolhe aquele que, por uma razão ou outra, aposta que chegará antes dos demais – é ele o pombo designado. Num columbódromo, a aposta se baseia unicamente na linhagem dos pais, pois todos os filhotes recebem o mesmo treinamento. Mas, por mais que a linhagem pese, ela nem sempre é uma garantia de bons resultados.

Logo na primeira leva Jurandy Góis anunciou: “Já temos o primeiro pombo designado: é o de Jefferson William Mourão”. Dentre as centenas de columbófilos de várias partes do país, acostumados a se cruzarem em campeonatos, Mourão é pouco conhecido. Depois de mais de trinta anos sem criar, ele voltou há dois anos ao métier, e esse foi o primeiro columbódromo do qual participou desde o seu retorno aos pombais. Os amigos brincavam que ele tinha virado um columbofilista em vez de columbófilo: um colecionador de pombos em vez de criador. Uma rodinha de novatos – entre curiosos e invejosos – se formou para cumprimentá-lo.

William Mourão começou a se interessar por pombos aos 6 anos, quando o pai comprou um casal para que ele criasse. O menino não tardou a descobrir os pombos-correio e os criou durante toda a adolescência. Quando entrou para a faculdade de administração de empresas, a dedicação diminuiu, e a proposta para gerenciar a Fundação Nacional de Saúde, em Rondônia, pôs fim ao seu pombal. “Tive pesadelos recorrentes durante dez anos seguidos por causa da ausência dos pombos”, contou. Ele ficou em Rondônia até 1996, quando voltou a Belo Horizonte para tocar um negócio próprio.

Não voltou aos pombais porque achava até que já não havia mais clubes em Minas. Foi só alguns anos mais tarde, quando encontrou um grupo de discussão sobre pombos-correio na internet, que descobriu estar justamente no epicentro da columbofilia nacional. Das 110 mil anilhas que a Federação Internacional de Columbofilia envia anualmente para todo o país, Minas fica sozinha com 60 mil. Mourão comprou um terreno em Vespasiano, nos arredores de Belo Horizonte, e passou a freqüentar leilões. “Para ganhar tempo, descobri quem eram os melhores criadores e fiz uma proposta irrecusável de compra das criações inteiras de cada um”, disse. Ele calcula ter gasto 100 mil reais em pombos e mais 50 mil em estrutura. “Eu já disse para a turma que não estou de brincadeira nessa história”, afirmou, “os pombos são a prioridade número um na minha vida.”

A maioria dos criadores divide o pombal em dois setores: um com os pombos de reprodução, e outro com os filhotes já em fase de treinamento. Os pombos que Mourão comprou foram todos para o pombal de reprodução, já que eles não poderiam mais competir – ou acabariam voltando para o pombal antigo ao fim de cada prova. Ali dentro, entre arrulhos e peninhas voando, ele adaptou um computador no qual monta gigantescas tabelas de Excel com os resultados do cruzamento de várias combinações de casais. Os resultados vão para o outro pombal, o de treinamento. Enquanto o pombal de reprodução é composto por gaiolas que servem de suítes nupciais, o pombal de treinamento lembra um grande albergue coletivo, onde cada pombo tem um poleiro para si – alguns em forma de V invertido, outros mais espaçosos, em forma de cubos – , mas a portinhola, o comedouro e o bebedouro são compartilhados.

Para incrementar os bichos, ele buscou a assessoria do columbófilo português Salvador Gama, um dos papas da columbofilia. Mourão trouxe Gama para visitar o seu pombal e dar sugestões de treinamento, alimentação e eventuais modificações na estrutura. Bancou as passagens aéreas dele e ainda pagou pelas aulas particulares um valor que prefere manter em segredo. “Eu vim aqui a convite do meu amigo a fim de conseguir que ele, em dois ou três anos, vire campeão do Brasil”, explicou Gama. “Mas ele tem que fazer aquilo que eu lhe disser. Se não fizer, não adianta ter o melhor pombo do mundo.”

Com mais de 20 mil associados em 766 clubes, Portugal é o principal centro columbófilo, e o esporte é o segundo com mais adeptos no país, perdendo apenas para o futebol. O próprio presidente da Federação Internacional de Columbofilia, José Tereso, é português. Criador há mais de 60 anos, Salvador Gama foi uma escolha óbvia para Mourão. Desde que começou a competir, o português nunca ficou mais de dois anos sem ganhar um campeonato. Bem-humorado, ele tenta desmistificar a criação. “Tenho só até o quarto ano primário”, disse. “Se você me perguntar o que tem mais aminoácidos ou o que tem mais proteínas, eu não sei. Só sei que mando vir do armazém as comidas e faço a minha ração em casa.”

As dicas passadas em particular foram cruciais para Mourão, que já no terceiro dia da visita de Salvador Gama acreditava que o dinheiro gasto tinha valido mais a pena do que o esperado. Mourão ficou em dúvida se deveria levar ou não Salvador Gama para o concurso de Governador Valadares, que acontecia no mesmo período. Seria interessante ter a avaliação do grande columbófilo português sobre um campeonato brasileiro, mas era contraproducente compartilhar sua presença com todos os adversários. Mourão acabou cedendo à pressão dos colegas mais próximos, e não se arrependeu. No seu primeiro momento de glória na columbofilia, a presença de Gama abrilhantou a vitória.

 

Numa tarde fria de sábado, Félix Buonafine conversava com o amigo Dario Ricciardelli na laje de casa. Os dois não tiravam os olhos do céu paulistano, que o mau tempo deixara cinzento. Ao contrário do que acontece nos columbódromos, a chegada dos pombos em um campeonato tradicional costuma ser solitária. Nesse sistema, os pombos crescem em pombais separados e são treinados pelos próprios criadores. Junto com os 25 pombos de Félix Buonafine, outros 800 viajaram de caminhão até Ipameri, em Goiás, a 800 quilômetros de São Paulo, e foram soltos, todos ao mesmo tempo, às 6h45 daquela manhã. A prova, a segunda do campeonato paulista, tinha um só ponto de partida, mas muitos de chegada. Os criadores estavam cada um em sua casa. Tocou o telefone. Era o Chinês, de Indaiatuba, dizendo que acabara de chegar o seu primeiro pombo. Buonafine blefou: “O meu primeiro chegou às 12h07”, disse em tom de brincadeira. Voando a uma velocidade normal, em torno de 1,2 quilômetro por minuto, seria impossível. “O dele que chegou é filho deste meu aqui”, apontou, orgulhoso.

Apaixonado por pombos desde criança, Buonafine começou a criá-los em 1963, com a ajuda de um columbófilo da vizinhança, que lhe deu o primeiro casal. A habilidade para administração – foi gerente de uma seguradora por 34 anos – o levou, em 1970, à presidência da sociedade de columbófilos da zona sul paulistana. Existem três sociedades na cidade de São Paulo: a Tietê, que reúne os columbófilos da zona leste, a Rolinha, das zonas oeste e centro, e a Paulista, presidida por Buonafine.

Depois da pausa impaciente para o cafezinho, ele subiu de novo na laje e avistou a primeira pomba. Começou a assobiar, um estímulo para que ela entrasse logo na gaiola. Assim que a pomba entrou, Buonafine a apanhou. Estava molhada de chuva. Do lado de fora da grade, seu filho o aguardava com o relógio para depositar a anilha 361 405. Eram 17h24. O horário fica registrado numa fita de papel. O procedimento é repetido com os próximos cinco pombos. Em seguida, o relógio é lacrado, e qualquer tentativa de fraude fica marcada na fita. Como a maioria dos columbófilos brasileiros, Buonafine não tem uma entrada eletrônica. Tocou o telefone de novo. “É o Correia, quer ver?”, perguntou. “Recebi uma agora”, disse ao telefone. “Quê? Chegaram todos? Bom, então parabéns.” Ele pôs o telefone no gancho e não falou nada. O amigo Dario quebrou o gelo: “Lá é Pico do Jaraguá, é sacanagem. O tempo fecha de lá pra cá, aí já viu”.

Como o ponto de chegada é variável, o resultado não é imediato – o primeiro pombo a chegar não é necessariamente o mais veloz. Por isso, as coordenadas de cada pombal são registradas por um sistema de GPS, assim como o de embarque, e a partir dessas duas medidas se obtém a velocidade de cada pombo. A apuração é feita na Federação Paulista de Columbofilia, que fica no malcuidado Complexo Desportivo Baby Barioni, no bairro da Água Branca. A salinha número 52 não tem nenhum aviso na porta, ao contrário de duas federações vizinhas, a de Levantamento de Peso e a de Handebol, ao lado. Ali, vinte e poucos homens, quase todos com idade entre 50 e 80 anos, se espremiam no corredorzinho, que parecia mais apertado por causa do cheiro de cigarro e mofo que emanava do carpete.

José Luiz Gomes divertia uma roda contando de um vizinho que, inconformado com a criação de pombos, chamou duas vezes a fiscalização do Centro de Controle de Zoonoses. “É sempre assim: o fiscal vem e fica encantado, quase pede um casal”, disse. Policial aposentado, ele é rígido com os pombos. Mantém só cinqüenta, e elimina os que pousam antes de entrar na casinha. Pouco depois, o outro José Luiz, o Almeida, fez circular um bolão de apostas para acertar o campeão da prova. Todos votaram em si mesmos. “O dinheiro é para a gente comer uma pizza depois”, justificou. Aos 47 anos, o vendedor de autopeças Almeida é um dos mais jovens do grupo. Discreto, é tratado pelos demais como intelectual. Nos últimos tempos os dois José Luízes têm sido imbatíveis nas provas.

Enquanto os presidentes das três sociedades abriam relógio por relógio, conferiam a anilha com o cadastro e anotavam os resultados da fita em uma tabela, Brasílio Marcandoro Neto passava tudo para o computador. Cada campeonato estadual tem doze provas, sendo quatro de velocidade (entre 100 e 300 quilômetros), quatro de meio-fundo (entre 301 e 500) e quatro de fundo (entre 501 e 1 000). Os resultados de cada pombo em cada prova são computados e o ganhador é o columbófilo cujos pombos tiverem melhores colocações em todas as provas. É possível, portanto, que alguém ganhe um campeonato sem ter ficado em primeiro lugar em nenhuma prova, pois o que conta é o conjunto de pombos. É o caso de seu Narciso Baptista da Silva, presidente da Sociedade Columbófila Tietê, campeão há três anos. Ele praticamente não abre a boca a não ser para cantar um ou outro número. Vermelho, concentradíssimo, com a boina enterrada na cabeça, anotava tudo com caligrafia desenhada.

Às dez e meia da noite, os dados estavam no computador. Apesar de todos terem acompanhado os cálculos e já saberem o nome do vencedor, é tradição que seu Félix Buonafine leia os nomes até o trigésimo colocado. Primeiro lugar: José Luiz Fonseca de Almeida. Palmas entusiasmadas. Segundo lugar: ele de novo. Mais palmas. Terceiro lugar: José Luiz Gomes. As palmas foram minguando e, depois do décimo lugar, pararam de vez. A sessão foi encerrada com a leitura do trigésimo nome, e a pizza, esquecida.

 

Em Minas Gerais os jovens dominam o cenário. Para uns, a renovação é fruto do estímulo dos columbófilos veteranos, sempre dispostos a doar pombos e passar as dicas para quem está começando. Os céticos atribuem o interesse dos jovens mineiros à escassez de outras formas de entretenimento no estado. “Uma coisa é certa: no Rio de Janeiro, a columbofilia está acabando”, avaliou Salvador Gama. “Os jovens não se interessam, falta incentivo, é caro, é preciso muita dedicação. Não podem continuar a ir a discotecas se às sete da manhã precisam soltar os pombos.” Wellington Freitas, o Tuchinha, quase se deixa convencer pela hipótese. “No Rio é mais complicado, tem praia, quem vai querer criar pombo? Se bem que eu tenho amigos de Florianópolis que preferiam morar em Belo Horizonte para poder competir mais.”

Estrela da nova geração mineira, Tuchinha aparenta ter dez anos a menos do que seus 37. Ele está desempregado há três meses. De moto, fazia cobranças para um escritório de contabilidade e hoje se dedica exclusivamente aos seus mais de 300 pombos. Ele entrou no campeonato mineiro com 135 fêmeas e só perdeu quinze. Essa margem de perda, considerada baixíssima, é fruto de seu zelo. Além das instalações cinco estrelas, que contam com um marcador eletrônico ganho em um campeonato, ele compra os grãos separados a granel, e faz ele próprio o balanço da alimentação. Os sacos de trigo, ervilha, amendoim, semente de girassol, painço, arroz com casca, ervilhaca e aveia ficam armazenados em baldes gigantes, e o balanço das quantidades é diferente a cada fase do treinamento ou da reprodução. Tuchinha utiliza ainda uma pasta de alho que ele mesmo prepara e que “funciona como um elemento aglutinador dos grãos, mata vermes e limpa as vias aéreas”. Patrícia, sua mulher, sempre guarda um pouco dessa pasta para temperar carnes nos dias de churrasco.

Como grande parte dos columbófilos brasileiros, ele só compete com fêmeas, por acreditar que elas trazem melhores resultados. Há os que evitam pombos brancos também: uns acham que eles são mais suscetíveis a ataques de gaviões; outros, que pombo branco é coisa de macumbeiro. Arnaldo Machado, que passa boa parte de seu tempo lendo a respeito de columbofilia, explica que o pombo velocista tem penas mais largas, como grandes remos, e movimenta mais ar a cada bater de asas. Tem, portanto, maior tônus muscular. O pombo meio-fundista, diz, tem um lado da pena maior que o outro, é intermediário. Já o pombo fundista tem penas mais finas, o que faz com que ele tenha que bater a asa mais vezes para se movimentar, ganhando maior resistência. “Outra característica físico-morfológica essencial é a distância entre a forquilha, aquele osso em formato de Y na bacia do pombo, e o esterno”, ensina. A partir da análise da forquilha, é possível avaliar o desenvolvimento dos rins. “Depois da prova o pombo chega cheio de ácido lático. Quanto mais desenvolvidos são os rins, maior a sua capacidade de filtrar o sangue para a recuperação.”

Além da costumeira apalpada que os columbófilos dão para avaliar a qualidade dos pombos, há o exame do olho. Muitos se dizem capazes de avaliar se um pombo é bom ou não a partir do olho, e revistas especializadas costumam trazer fotos da íris de pombos de leilões. “Tem a teoria do olho, a teoria da asa, e todas são frutos da fantasia de amadores dedicados, que tentam encontrar uma razão para entender por que eles são vencedores”, explica Ronald Ranvaud, professor doutor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Físico italiano graduado em Oxford e pós-graduado em Brown, Ranvaud veio parar no Brasil justamente por causa dos pombos. Disposto a testar uma teoria de que os pombos-correio se guiavam pelo magnetismo terrestre, o professor escolheu Camocim, no Ceará, como cenário para a sua experiência devido à proximidade da cidade com a linha do Equador. Logo na primeira tentativa, os resultados seguiram exatamente como o esperado. Ranvaud repetiu a experiência no ano seguinte. Os resultados não bateram. Nem no ano seguinte. Ao todo, ele fez dez tentativas, e apenas a primeira seguiu a teoria.

 

A razão pela qual os pombos-correio conseguem encontrar seu pombal de origem, apesar das longas distâncias, é um mistério para a ciência. Há, grosso modo, três tipos básicos de deslocamento animal: o migratório, de aves como a andorinha, que sempre vão em direção ao verão; o nômade, típico de herbívoros que permanecem em um lugar enquanto dura a comida; e o do retorno ao lar, que é o caso do pombo, mas também o de tartarugas marinhas, albatrozes e até crocodilos. O que faz do pombo-correio um ícone no estudo do comportamento do retorno ao lar é a seleção que o homem tem feito desde o princípio da civilização. “Levando em conta a qualidade do vôo, marrecos-correio seriam os substitutos mais próximos. Mas eles são muito maiores, põem ovos maiores, trariam mais transtornos”, pondera Ranvaud. “Além disso, para que eles alcançassem o mesmo desempenho e velocidade, seriam necessários muitos anos de seleção e treinamento.”

Uma tentativa de esclarecer o misterioso radar dos pombos foi feita, nos anos 70, pelo cientista alemão Klaus Schmidt-Koenig. Influenciado pela pesquisa do colega Gustav Kramer, que havia comprovado a orientação de aves migratórias pela chamada bússola solar (a utilização do sol como referencial), Schmidt-Koenig desenvolveu uma espécie de óculos de lentes embaçadas e os fixou nos olhos dos pombos com velcro. O objetivo era verificar o quanto a visão comprometida atrapalhava a sua orientação. Os pombos tiveram pouca dificuldade na orientação inicial e durante o percurso, mas alguns não conseguiram identificar o pombal. A conclusão de Schmidt-Koenig é que a visão não exerce um papel central na orientação dos pombos. Mas ele levantou a hipótese de que a identificação do sol também teria sido prejudicada pelo embaçamento, o que diminuiria os efeitos da bússola solar.

Hoje, a orientação pela bússola solar é consenso entre os cientistas, assim como também é consenso o fato de que ela não age sozinha. O ponto de divergência é justamente qual outro fator complementa a bússola solar ou até prepondera sobre ela. Depois dos testes em Camocim, Ranvaud deixou de acreditar na teoria do magnetismo. Suas últimas experiências têm encontrado mais evidências de outra teoria: a do mosaico olfatório. Partindo do pressuposto de que os pombos têm uma percepção de odores muito mais apurada que os seres humanos, os defensores do mosaico acreditam que eles perceberiam, à distância, os diferentes cheiros do ambiente no qual vivem. O pombo conseguiria detectar a origem desse conjunto de odores trazidos pelas correntes de vento. Por exemplo: o pombo identifica que em seu pombal chega, do norte, um aroma de eucalipto. Quando solto no norte, ele seria capaz de identificar esse aroma e concluiria que seu pombal está ao sul. Segundo Ranvaud, a poluição não atrapalharia necessariamente a identificação dos cheiros. Ela poderia, inclusive, funcionar como mais um referencial.

Hugo Hirata, um orientando de Ranvaud, tem testado a relação entre estímulos magnéticos e o olfato. Ele fez um acordo com o Zoológico de São Paulo, que enfrentava problemas com os pombos que vinham comer a ração dos animais do cativeiro. Com os pombos doados pelo zoológico, Hirata expõe metade das aves a um campo magnético artificial, durante uma hora, e os sacrifica uma hora depois. Na seqüência, retira o cérebro dos animais e faz uma série de fatias da região do bulbo olfatório dos dois grupos para analisar no microscópio. O objetivo é verificar se existe um receptor de magnetismo na região do cérebro responsável pela identificação dos cheiros. Se o campo magnético causa algum efeito no bulbo olfatório, uma determinada proteína é produzida, e é esse resultado que Hirata avalia. Caso seja provada a relação, é possível que todas as experiências relativas ao olfato que obtiveram resultado positivo até hoje tenham sido causadas pela sensibilidade magnética.

 

No mesmo sábado da chegada do columbódromo de Valadares, houve o leilão dos pombos que acabavam de cumprir a prova. A cada pombo, o leiloeiro lia o pedigree com a filiação, o histórico dos pais em campeonatos e alguma história do pombo. Do dinheiro arrecadado no leilão, 10% vão para o criador, o resto fica para cobrir os gastos com a administração do columbódromo, ou para preparar um próximo evento. Os criadores estão cientes de que os prêmios não chegam nem a cobrir o dinheiro investido. Do outro lado do mundo, em Taiwan, a história é diferente: um columbófilo pode ficar milionário vencendo apenas um campeonato. Há apenas três anos na columbofilia, o taiwanês Chang Chai Zon deu uma sacudida no esporte em Governador Valadares. Muitos atribuem a ele o sucesso do columbódromo na cidade. Um tio seu, que ainda mora em Taiwan, ganhou uma Mercedes-Benz num campeonato local, vendeu e mandou o dinheiro para que Chang começasse a sua criação no Brasil.

Circula de mão em mão entre os criadores brasileiros um DVD do programa National Geographic sobre a columbofilia em Taiwan: El juego de las palomas, ainda não disponível em português. Ele mostra que, em vez do caminhão-pombal, as aves são levadas de navio até o alto-mar. Das 4 mil que iniciam o campeonato, apenas 100 sobrevivem para participar da última prova, a 300 quilômetros da costa, sob borrasca ou em céu de brigadeiro. Apesar do encantamento com a infra-estrutura das provas e com as recompensas taiwanesas, os columbófilos brasileiros criticam o campeonato chinês. “É sacanagem, um absurdo para a columbofilia”, comenta Tuchinha. “Você viu como um criador pega o seu pombo preferido? Com uma rede de caçar borboleta! Aquilo machuca toda a asa do animal, não faz o menor sentido.”

Os maiores lances do leilão em Valadares chegaram a 1 500 reais, enquanto pombos que chegaram minutos depois foram vendidos por 60 reais. O professor Ranvaud não vê diferença entre um pombo que chega em primeiro lugar e um que chega em centésimo numa prova com milhares de concorrentes. “O que conta é o pedigree e o cuidado, o resto é sorte.” Em alguns casos, o método para fazer os lances foi heterodoxo. Antes da saída dos pombos, Rafael Mayerholfer, de Campos, no Rio de Janeiro, sentiu uma bicada num dedo enquanto conversava com um colega, apoiado na grade do pombal. Era uma pombinha. “Pisquei pra ela, ela piscou pra mim de volta”, ele contou. “Pus o rosto na grade, ela me deu um beijo na bochecha. Fiquei apaixonado. Depois, descobri que ela tinha feito a mesma coisa com outros vinte caras, mas eu a quero mesmo assim.” Mayerholfer queria comprá-la no leilão de qualquer jeito, mas a pombinha amorosa não chegou.