The Sub é um coletivo onde se pode morar e trabalhar. Parte de uma rede de lugares semelhantes onde vem sendo gestada a nova modalidade do sucesso americano, o endereço atrai jovens que promovem a confluência do mundo dos negócios com a cena artística experimental FOTO: ALEX EMBER_2012
Sorriso de monge, carteira de yuppie
Como pensa a nova geração de empreendedores do mundo tecnológico
Nathan Heller | Edição 88, Janeiro 2014
Para entrar em contato com Johnny Hwin, um dos jovens mais bem conectados de São Francisco, é preciso ir até a entrada de uma pequena oficina numa área problemática do bairro de Mission District, ligar para o celular dele, esperar que o toque cesse, que a mensagem gravada entre e a ligação finalmente se complete. Às vezes pode levar algum tempo, porque Hwin costuma desligar a campainha do aparelho. Durante a espera, coisas acontecem na esquina – homens voltam do trabalho, sujeitos sem camisa andam de lá para cá. Ao cabo de meia hora, Hwin liga de volta e diz “não saia do lugar”, porque já está a caminho. Não fica claro de que direção ele vem, nem mesmo se é de muito longe, de modo que você pode se deter num mural das redondezas, intitulado “Diversidade em Progresso” (no qual se vê um sujeito de sombrero parado ao lado de uma árvore florida), ou talvez admirar uma pequena casa pentagonal que se ergue em meio a tantas amostras de arquitetura vitoriana. A essa altura, Hwin liga de novo para dizer que não está te vendo. E quando você finalmente entra em seu campo visual e o encontra, pode receber um high-five e uma saudação contida (“Oi, cara”), antes de ser conduzido a uma porta que leva a um lance de degraus iluminado por lampadinhas de Natal. Você está entrando num coletivo de arte e novas tecnologias chamado The Sub [diminutivo de submarino], do qual Hwin participa desde 2009. The Sub é parte de uma vasta rede de lugares assemelhados onde vem sendo gestada a mais nova modalidade do sucesso americano.
Aos 28 anos, Hwin parece mais novo. Tem um sorriso beatífico e sardas de garoto. Seu cabelo, raspado nas laterais, é coroado por uma franjinha desfiada, num penteado de roqueiro: tem-se a impressão de que um chumaço de cabelo acabou de pousar no seu cocuruto depois de despencar de grande altitude. Costuma andar com uma gaitinha pendurada no pescoço, expediente que serve para enfatizar suas afinidades musicais. Há vários anos atua como músico, empresário da área de tecnologia e investidor na formação de empresas de terceiros. Sua banda de dois integrantes, Cathedrals, acaba de lançar uma faixa e em breve começará a produzir um álbum. No momento, ele e um amigo administram investimentos de até 250 mil dólares em empresas privadas.
O Sub não tem campainha nem endereço físico real, e ocupa uma oficina de carros que algumas divisórias transformaram num lugar onde as pessoas – ou pelo menos certas pessoas – podem passar seus dias. Hwin, que se mudou para lá há quatro anos e dois empreendimentos atrás, agora desfruta de um espaço numa estrutura a que se refere como “casa de bonecas”. São dois cômodos precários, as paredes pintadas com motivos florais, numa atmosfera de choupana de conto de fadas. A casa de bonecas é a mais confortável das cinco peças do Sub (um dos garotos ocupa o antigo poço do elevador), mas o conforto está longe de ser o principal atrativo do local.
As pessoas procuram o Sub para estar onde tudo acontece, e as coisas que acontecem ali tendem a refletir a confluência do mundo dos negócios com a cena artística experimental. Pelo menos uma vez por mês, o coletivo organiza um evento para reunir gente criativa e influente. Pode ser um concerto ou uma gravação de algum músico que esteja na cidade (Hwin já recebeu Twin Shadow e Grimes). Quem mora lá também pode realizar o que chamam de NED Night (uma noite de apresentações e debates à moda das TEDs, mas em pegada de paródia). Esses eventos propiciam algumas interseções inesperadas. Nas paredes do Sub, por exemplo, são expostas obras dos amigos, e tanto Hwin como algum multimilionário do Vale do Silício de passagem compram algumas delas por uma bela soma. Hwin define essas interseções como “incentivos à cultura”.
Conheci Hwin numa tarde no início do verão. Ele voltava de Londres, do British Airways UnGrounded [British Airways nas Alturas], evento destinado a apresentar gente como Hwin a pessoas da mesma tribo. “Van Jones, o cara da CNN, conselheiro de Obama, estava lá”, contou-me na sala de estar do Sub. Craig Newmark, da Craigslist, aquela rede virtual que oferece classificados gratuitos aos usuários, também estava no avião [os encontros acontecem durante um voo só para convidados]. “Era como se estivéssemos tomando um porre juntos, mas com o intuito de conversar sobre projetos interessantes.” Além da mesinha sobre a qual estávamos sentados – originalmente, talvez, parte de um conjunto de móveis de jardim –, a sala era mobiliada por um par de sofás desemparelhados, um tapete e um gigantesco pufe recheado de bolinhas de espuma, no qual Hwin desabava de vez em quando. Ele vestia um moletom roxo com capuz, aberto na frente, revelando uma camiseta que dizia ABANDONED WORLD; o disco Life, lançado pelos Cardigans em 1995, tocava ao fundo. Perguntei que tipo de pessoa ele costumava receber no Sub. “Isso aqui virou uma espécie de ponto de encontro de criativos”, respondeu. “Acontece que muitos criativos hoje viraram empresários.”
A maior parte do tempo, Hwin emprega um léxico de surfista, intercalando vocativos como “cara” e “velho” a um amplo espectro de inflexões polidas. Mas quando ele fala de negócios – de “fluxo do consumo” ou de “adequação do produto ao mercado” –, a informalidade jovial desaparece, sua testa se franze e ele enuncia frases como “Montar uma empresa de investimentos é a consequência natural de todas as minhas experiências”. Em seguida, produz uma risada de desenho animado (“uhuhuhuhuhuhu”) e volta a falar do lance incrível que seu companheiro de apartamento, Alex, está armando. Alex é DJ e também trabalha para a Airbnb, o site de locação temporária que está bombando.
Hwin passou quase toda a vida em Hercules, na Califórnia, cidade-dormitório de conjuntos residenciais agradáveis e encostas crestadas no extremo leste da baía de São Francisco. Seus pais, refugiados do Vietnã – a mãe abriu vários salões de manicure –, tiveram-no quando ambos já passavam dos quarenta. Ela, budista, costuma dizer que o filho “foi um presente de Jesus”. Hwin cursou a Universidade Stanford com bolsa integral e se formou em psicologia. E foi lá que se interessou pelos negócios, e também pela atividade tecnológica da região à sua volta. Criou um dos primeiros aplicativos de jogos do Facebook, chamado Quizzes (“viral, quase um spam”), e conquistou 15 milhões de usuários. Vendeu o aplicativo, mas não ficou satisfeito e empregou o dinheiro para criar uma nova empresa, Damntheradio – uma plataforma de marketing no Facebook que acabou sendo usada por Lady Gaga e outros músicos empenhados em incrementar sua base de fãs nas redes sociais. Vendeu a empresa em 2011, por uma soma de dinheiro e ações que, dizem, foi estimada em mais de 1 milhão de dólares. E foi aí que começou de fato sua experiência de incentivo à cultura.
Tudo isso fazia um vago sentido para mim, mas eu ainda não tinha entendido bem de que maneira ele empregava seu tempo, e perguntei se podia me mostrar como era um de seus dias. Ele decidiu atender meu pedido na hora: trocou o moletom por uma jaqueta de couro mais pesada e fomos para a rua. Hwin me contou que tinha encontrado uma feliz zona intermediária entre dois mundos. Alguns de seus amigos “passam a semana inteira fazendo auditorias ou envolvidos em diversas atividades de negócios”; outros são “artistas que passam fome em Oakland”. Ele organizou sua vida de modo a prescindir dos dois sacrifícios.
Era uma tarde clara; na Market Street, a luz dourada era filtrada pelas palmeiras plantadas por ocasião do último surto de prosperidade de São Francisco. Hwin ocupa uma sala no Centro de Comunicações da Comunidade de Veteranos, onde trabalha com música, e foi lá que entramos. “Antigamente aqui era um centro comunitário hippie, e é por isso que ainda tem tanto buda e esses troços pelos cantos”, mostrou. Numa das paredes, havia um cartaz dos Smashing Pumpkins. Hwin passou um tempinho dedilhando uma guitarra, depois tocou um pouco de bateria. Então propôs que continuássemos nossa longa jornada dia afora.
Hwin fazia questão que eu entendesse que a vida dele, naquela semana, na verdade não era só a vida dele: nos últimos dias, ele tinha “trocado de vida” com Stephan Jenkins, da banda de rock alternativo Third Eye Blind. O cantor tem uma casa linda e espaçosa em Pacific Heights, bairro das antigas fortunas de São Francisco. Ao que tudo indica, a vida de privilégio tinha se tornado um empecilho para a composição de canções mordazes e inconformistas. Por isso, Hwin mudou-se para o estúdio de Jenkins, enquanto Jenkins se transferia para os aposentos mais acanhados, tipo dormitório universitário, que Hwin ocupa no Sub. (“A vida na vizinhança do Sub é a mais dura da cidade”, disse Jenkins. “Por lá todo mundo anda com faca.”) Hwin me perguntou se eu por acaso queria conhecer a casa em Pacific Heights – era um lugar lindo, e Jenkins tinha uma porrada de guitarras – e eu respondi que sim. Ele chamou o Lyft, um serviço de transporte em carros particulares, baseado num aplicativo que funciona muito melhor que o fraquíssimo plantel de táxis da cidade. O carro demorou a aparecer, e Hwin me perguntou se no final das contas não deveríamos ter chamado um táxi mesmo, mas então o veículo apareceu, um pequeno sedã branco com o característico logo do bigode cor-de-rosa no para-choque dianteiro. Entramos e nos apresentamos, porque os motoristas do sistema Lyft não são profissionais, são apenas pessoas que transportam outras em suas horas vagas. Hwin perguntou à motorista se ela tinha uma entrada auxiliar no sistema de som. Tinha. Ele entregou o celular a ela, e uma balada eletrônica começou a pulsar nos alto-falantes dianteiros do carro.
“Quem é?”, perguntou a motorista.
“Minha banda, ainda inédita”, respondeu Hwin. “Pode aumentar!”
Ela aumentou o volume, entusiasmada, e Hwin começou a cantar junto com os vocais. As janelas estavam abertas, o vento ia direto na minha cara; corríamos em direção ao centro da vida de um garoto que, por motivos que eu ainda não entendia, parecia saber tudo sobre a nova configuração da área em torno da baía, e como tudo aquilo funcionava.
São Francisco sempre foi uma cidade que, tal um caranguejo, de tempos em tempos troca de carapaça e então se enterra na areia até criar uma casca nova. Nunca foi uma cidade industrial como Nova York, que deve sua configuração a bem mais de um século de atividade dos meios de comunicação e das finanças. Também não tem nada a ver com Washington ou Los Angeles, cujos sonhos são dominados por uma atividade única com cabeças múltiplas, à maneira de uma hidra. São Francisco nunca foi dominada por nada, mas sempre deu um jeito de se destacar em alguma coisa. A mineração de ouro, por exemplo. O amor livre. Ou os microchips. A verdade é que as pessoas nunca se transferem para São Francisco – elas acorrem em bando para lá. E os que se incomodam com uma vida marcada pela mudança raramente continuam na cidade. “As coisas que representam São Francisco para mim estão desaparecendo depressa”, queixa-se o atribulado empresário Gavin Elster em Um Corpo que Cai, de Hitchcock – e ainda faltava uma década para o Verão do Amor.
O padrão começou a mudar. São Francisco virou uma cidade industrial. Sua indústria é geralmente chamada de tech, mas o termo não significa apenas “tecnologia”, como antes. Hoje em dia, a indústria tech tem a ver com tudo que envolve computadores, internet, meios de comunicação digitais, redes sociais, smartphones, dados eletrônicos, crowdfunding[1] e, de um modo geral, a criação de novos modelos de negócios. Ou seja: em determinado momento, o tech deixou de ser uma simples indústria e se transformou no substrato da maioria das coisas que vêm transformando a cultura urbana. E esse alargamento teve outros efeitos. Como muitos outros observadores, nos últimos anos venho percebendo aqui e ali uma guinada no caráter das aspirações nacionais. Mudou o que as pessoas – na maioria, gente ambiciosa de classe média – querem da vida, e mudou a maneira como tentam chegar lá. Várias se dedicaram a atividades que julgavam virtuosas ou fundaram empresas com essa finalidade. Muitas que vinham suando em Nova York, Los Angeles ou Washington largaram tudo e se mudaram para São Francisco. Você pode entrar em qualquer café de certos bairros da cidade que ouvirá jovens conversando animadamente sobre seus planos de criação. Moro em Nova York, mas cresci em São Francisco. Passei anos viajando entre as duas cidades, sempre a trabalho. De um ano para cá, comecei a perceber que são os pousos de volta a Nova York que me trazem o alívio relaxante de um motor que reduz o giro, uma sensação de maior repouso.
Não fazia sentido que, das duas cidades, a mais poderosa fosse agora São Francisco. Por outro lado, é bem verdade que a nova dinâmica das aspirações americanas me deixa confuso. Nunca entendi, por exemplo, por que de repente todos as firmas querem ser uma startup, uma empresa nascente. Nunca entendi como pessoas como Hwin conseguem viver sem uma identidade profissional definida. Há quem diga que, hoje, Washington está no bolso do Vale do Silício; outros, que o Vale não está nem aí para Washington. As grandes universidades tentam tornar-se “virais” com seus cursos online. Hollywood vive da Netflix, e dos irmãos Ellison.[2] O capital de risco[3] tornara-se o novo capitalismo (embora os retornos deixem muito a desejar). O Twitter e o LinkedIn mudaram a vida das pessoas (mas foi só uma bolha). Todo mundo sente que o norte da Califórnia foi a fonte dessas mudanças, mas poucos sabem por quê. Quem quiser entender alguma coisa sobre a cultura americana da última década precisa decifrar exatamente o que vem acontecendo em São Francisco.
Numa bela manhã de verão, tomei café com Tyler Willis, que durante o dia trabalha no desenvolvimento de novos negócios numa empresa de marketing em redes sociais. Depois do expediente, com seu próprio dinheiro, ele financia startups de outras pessoas. “Conhecidos meus estavam criando empresas que eu achava geniais”, ele disse, num café perto da casa onde cresci. (Antigamente, o café, fundado por um centro zen, se chamava Tassajara Bakery; agora seu nome é La Boulange, e é controlado pela Starbucks.) “E eu sempre dizia, ‘Cara, bem que eu gostaria de bancar um pessoal assim!’” Quando a startup em que ele trabalhava foi comprada no ano passado pela Oracle, Willis acabou embolsando uma grana e resolveu peitar seu sonho. Naquela manhã eu já era o segundo interlocutor dele; pouco antes, ali mesmo, tinha ouvido a proposta de um empreendedor. Mais tarde talvez fosse ao escritório para trabalhar um pouco.
Nos últimos anos, São Francisco transformou-se na capital do que alguém já descreveu como “a vida dos três cartões de visita”. O sujeito passa boa parte do dia numa startup e é acionista importante numa ou duas outras empresas que estão começando a decolar – pode inclusive ter um cargo formal em alguma delas. Ou pode estar em pleno processo de alavancar fundos para uma empresa e investindo recursos diretamente em outra. O empreendedorismo é uma atividade com alto percentual de erro, todos dizem, mas se você mantém várias panelas simultaneamente no fogo, em algum momento uma delas há de ferver. A partir daí você pode viver do resultado por algum tempo, ou investir o que ganhou. E pessoas como Willis, jovens urbanos e de profissão difusa, tendem a medir o sucesso em termos de autonomia – poder fazer o que quiser da vida –, e não do território que conseguiram dominar, à moda napoleônica.
“O ecossistema tradicional empurrava muitas pessoas de talento por um funil estreito, do qual só saíam pouquíssimos ganhadores”, disse Willis. “Hoje, o novo ambiente de negócios permite que muita gente talentosa tenha uma série de experiências diferentes.” Por que ser Gordon Gekko quando você pode ganhar o suficiente para morar bem, comprar exclusivamente produtos locais para a sua dieta paleo – a última moda, baseada na suposta alimentação dos nossos ancestrais no Paleolítico – e em seguida tirar um ou dois dias de folga para uma pedalada até uma praia deserta nas proximidades? Quem não achará essa liberdade mais prestigiosa que dinheiro ou um cargo de CEO, objetivos ao alcance de qualquer pessoa relativamente talentosa? Os jovens empreendedores de São Francisco parecem menos preocupados em ostentar seus ganhos do que em mostrar conspicuamente que vivem uma vida imaginativa repleta de boas intenções.
“A palavra ‘empreendedor’ sofreu toda uma redefinição”, disse Ben Casnocha enquanto almoçávamos na sede da LinkedIn em Mountain View, perto do Google. “Durante um período, você ou abria um café/lavanderia automática, ou tentava fundar a nova Apple. De uns tempos para cá, surgiu muita gente que prefere outro tipo de aventura – gente que se orgulha de um negócio pequeno que lhes dê autonomia.” Casnocha e eu somos amigos de infância, nossas famílias se conheceram por meio de uma cooperativa de baby-sitters. Depois, perdi seu rastro até que, poucos anos atrás, começamos a nos seguir pelo Twitter.
Casnocha está com 25 anos, e embora seja difícil precisar qual é seu trabalho, é fácil ver que ele é competente à beça. Escreve livros sobre empreendedorismo; participa do conselho de administração da Comcate, uma empresa que fundou ainda na adolescência para, entre outras coisas, ajudar administrações públicas locais a adequar suas respostas às reclamações da população; faz a curadoria de um ciclo de palestras e mantém um blog; e é o braço direito de Reid Hoffman, um dos fundadores e presidente do conselho da LinkedIn.
Muitas pequenas empresas são o que outrora era chamado depreciativamente de empresas de “estilo de vida” – companhias que dominam um ou dois pequenos serviços para melhorar o poder de compra ou a qualidade de vida dos consumidores. Outras são “plataformas de venda”, conectando compradores a vendedores. (O exemplo clássico pré-internet de uma empresa desse tipo eram as corretoras de imóveis.) A Airbnb e a Seamless, a rede online que entrega comida em casa, são plataformas de venda em escala gigantesca. Mas as empresas de estilo de vida ou plataformas de venda não precisam ser grandes, e isso lhes confere uma flexibilidade especial. Como não precisam ter grandes estoques nem desenvolver produtos, podem operar com poucos empregados. Dispensam sedes imensas. “O lance da tecnologia propriamente dita (a hard-tech) necessita de engenheiros com muita experiência”, explica Casnocha. Quando ele se mudou para o Vale do Silício, alguns anos atrás, a maioria dos jovens ambiciosos que ele conhecia já tinha começado a se transferir para São Francisco, na esperança de produzir alguma coisa com seus próprios recursos. O futuro da influência tech agora está nas cidades.
Em parte por isso, os investidores na área tech ficaram entusiasmados com a ideia de financiar as fases iniciais dos negócios – os investimentos de risco que propiciam a decolagem de uma empresa nascente. As grandes bolhas costumam surgir nas fases posteriores, quando companhias com capacidade para crescer tentam abrir o capital no mercado de ações para se financiar, muitas vezes superestimando seu potencial de crescimento. Os investimentos muito precoces (ou “de incubadora”) estão menos expostos a esses riscos. Em meados da década de 80, o investimento de risco se dividia em proporções iguais entre as fases de incubação, de startup, ou de expansão. Quando a bolha das ponto.com explodiu, no ano 2000, os investimentos na incubação de empresas eram, em termos relativos, os menores registrados em décadas. Isso começou a reverter à medida que os investimentos nas fases iniciais foram ficando mais baratos e atraentes, e a nova tendência se manifestava numa chuva de negócios envolvendo empreendimentos nas primeiras fases. Ano passado, metade de todos os investimentos de risco foi canalizada para os estágios de incubação e de startup – a maior proporção desde 1985. Um número inédito de companhias em fase mais adiantada, enquanto isso, permanece em oferta nos portfólios de risco, em vez de serem adquiridas ou terem suas ações oferecidas ao público. O investimento, hoje, tende a ser particular e discreto: quando uma startup tem suas ações oferecidas ao público, boa parte da comunidade tech já investiu algum dinheiro e colheu seus lucros. O que permite aos empreendedores de São Francisco continuar a operar de acordo com regras próprias.
“No início, era o executivo engravatado”, me disse Roy Bahat, hoje diretor do fundo de investimento Bloomberg Beta, especializado em startups. “E a regra era a seguinte: nós vamos espremer vocês e causar alguma dor; em troca, oferecemos a nossa expertise e os nossos recursos. É o que eu chamo de compensação.” Hoje, o dinheiro chega por canais que mais lembram bolsas de estudo que holerites. Em parte, isso se deve à interligação muito íntima de toda a área tech, e também de sua célebre tolerância para o fracasso. Se sua companhia afunda, como ocorre com a maioria, você sempre pode abrir outra ou, num momento de desespero, ir trabalhar na de um amigo: a dívida e outros demônios têm um poder muito atenuado no domínio das startups. E, como resultado, as mudanças no calendário funcional foram profundas.
“É muito mais um modelo baseado em campanhas: você dá duro alguns anos e depois passa um tempo ausente”, diz Bahat. “Nem sei dizer quantas vezes liguei para um CEO e ouvi como resposta algo do tipo ‘Estou num retiro de meditação!’ ou ‘Não posso assumir nenhum compromisso nos próximos três meses’.” A pausa para meditação é um indicador de sucesso tão notável quanto a agenda lotada, pois o retiro é um luxo a que só as pessoas de alta produtividade podem se dar. Uma vez, quando Bahat contou no LinkedIn que ia deixar um emprego, alterando seu status para “Não Fazendo Nada”, seus amigos de Nova York se inquietaram e prometeram que lhe avisariam imediatamente se soubessem de alguma oportunidade. Já os amigos da área de São Francisco o felicitaram pela saída.
“Olha só esse mar!”, exclama Johnny Hwin, fitando a baía ao passarmos pelo alto de Pacific Heights e seguirmos para oeste, na direção de Presidio. Livre da manta do nevoeiro de verão, aquele fim de tarde permitia distinguir todos os detalhes da costa norte. Paramos diante de uma casa branca um pouco recuada. Hwin paga a corrida do Lyft pelo celular, e entramos por uma servidão que leva a um pátio. Sente-se um perfume de jasmim, o vento nas folhas de palmeira salpica o chão com um mosaico de sombras. Numa área atrás da casa, Stephan Jenkins montou seu estúdio de música. Faz parte da ideia de “troca de vida” que depois um mostre ao outro o que criou nesse meio-tempo. Parece que Jenkins já tinha começado uma canção inspirada no Sub, intitulada “Back to Zero”.
“Bem-vindo à espaçonave!”, ele diz quando entramos. Verdade que Hwin chama quase todos os cômodos de espaçonave, mas aqui o termo me parece perfeito. O estúdio de Jenkins lembra uma caverna que passou pelo verniz de um decorador: paredes revestidas de tecido acústico marrom-escuro, cortinas elegantemente contrastantes, de um verde alegrinho. No meio da sala, uma gigantesca mesa de mixagem com um computador no centro.
Passamos em revista a impressionante coleção de guitarras de Jenkins. “Stephan vive dizendo, ‘Velho, eu tenho uma instalação do caralho’”, diz Hwin, correndo os dedos pelo braço de uma guitarra. “E é verdade, cara, tem mesmo! Tem mesmo!” Dedilha algumas cordas. “E ele tem uma sala só para amplificar esse harém.” Torna a dedilhar a guitarra.
Hwin começou a manipular os botões da mesa de mixagem, e perguntei como tinha virado investidor.
“Cara, foi uma loucura”, ele responde, mexendo nos controles. “Basicamente, depois que vendi minha empresa, fiquei com algum capital líquido e pensei em entrar nesse lance como investidor anjo” – o “anjo” é a pessoa física que investe diretamente em empresas, em contraponto àqueles que investem recursos através de grandes fundos. “Eu tinha amigos que estavam captando recursos para as empresas deles. E todas eram incríveis – eu logo saquei que esses caras iam ficar milionários dali a pouco tempo. E não é que alguns deles já estão mesmo?!” Hwin ri, e então franze as sobrancelhas e sua voz muda de tom, entrando em modo empresarial. Começou a dar consultoria “trabalhando meio expediente em troca de participação, e às vezes também recebendo algum dinheiro”. E acrescenta: “Eu entendia bastante de como funcionam os estágios iniciais de um negócio.”
Jovens startups contrataram Hwin para ajudá-las a formar uma base de usuários. “Acontece que muitas das empresas que eu estava assessorando também queriam levantar dinheiro – ou já tinham levantado algum”, lembra. Foi quando ele lançou um fundo para investir na fase de incubação. “Quando você está tentando criar uma reputação de investidor na fase de incubação de empresas, no meio de um milhão de investidores do mesmo tipo, é preciso cuidar da diferenciação”, ele pondera. “O Sub é um dos principais atrativos para que as pessoas nos ouçam – o pessoal pergunta, ‘Ah, você participou daquele evento no Sub?’ – e também por causa do que a gente representa, um modo de vida criativo e consciente.”
Essa combinação de crescimento dos negócios na área tech com valores ligados ao estilo de vida e à estética – e, daí, ao mundo da arte – causa estranheza a muita gente. Tradicionalmente, as pessoas acreditam que os enclaves criativos surgem pelas mãos calejadas de gente que vê com ironia os bons sentimentos do mundo corporativo; os fundos de investimento, sabemos bem, não “representam” nada, limitam-se a ser bons fundos de investimento. Por que, então, Johnny Hwin fala com tanta eloquência sobre a maneira como os negócios que despertam seu interesse, seu estilo de vida e sua arte ajudam uns aos outros? Para ele, não é nada difícil explicar. Em parte, ele se dedica à “vida criativa e consciente” porque isso faz bem a seus negócios. Seus negócios contribuem para reunir pessoas em torno da arte underground. No processo, gente influente da arte e dos negócios é exposta à “vida criativa e consciente”. Percebo que estou às voltas com uma combinação bastante incomum, mas que, até aqui, parece vir funcionando muito bem.
“É só uma parte do espaço tech que está se transferindo de Mountain View[4] para São Francisco”, diz Hwin. Ele se mostra preocupado com o ritmo acelerado demais em que isso parece vir ocorrendo, e teme que a cena possa acabar poluída pelos “artefatos da cultura suburbana”. “Não que eu me sinta superior ao pessoal de Mountain View, claro – a gente deve respeitar todos os seres humanos e coisa e tal –, mas…” Ele tenta tocar para mim sua faixa mais recente no sistema de som do estúdio, mas o mouse sem fio se recusa a funcionar, o Mac congela e para de responder. “Computadores!”, ele bufa, e vamos embora.
“É um pouco parecido com a pré-Revolução Industrial”, diz Naval Ravikant no escritório sem paredes, ocupando um andar inteiro, onde funciona sua startup, a AngelList. Na área de São Francisco, Ravikant é conhecido como um pensador de sistemas, um sujeito com uma compreensão integral do ecossistema. Em 2007, ele lançou com um sócio o blog Venture Hacks, fonte de informações para empreendedores. Sua nova empresa é uma plataforma de venda que procura conectar os fundadores de startups a anjos e outros investidores – uma Airbnb voltada para a incubação de empresas. Ele me recebe numa sala de reuniões envidraçada, com sofás e quadros brancos cobrindo as poucas paredes sólidas. Eu me sento, ele fica de pé.
“Antes da Revolução Industrial, cada um meio que tinha sua chácara própria, sua casinha, seu trabalhinho, sua oficinazinha”, ele diz, abrindo e fechando com um estalo a tampa da pilot de escrever em quadro branco. O efeito era professoral, embora Ravikant, com um moletom de capuz preto, jeans cinza e mocassins de couro marrom, parecesse menos um estudioso que um monge descolado. Em seguida vieram a eficiência de escala e o advento da fábrica, ele me explica. Num ensaio influente escrito em 1937, “A natureza da firma”, o economista britânico Ronald Coase argumentou que qualquer empresa continuará crescendo enquanto os custos em que incorre ao produzir internamente forem inferiores aos custos externos em que incorreria caso produzisse por meio de terceiros. Ravikant sugere que, hoje, na região de São Francisco, os custos externos de muitas coisas ficaram tão baixos que é cada vez mais difícil conseguir economias de escala, essa antiga vantagem estratégica das grandes empresas.
“Por exemplo, no passado, o café da manhã e o almoço eram trazidos de fora e servidos na empresa todos os dias, para que os engenheiros pudessem continuar trabalhando e produzindo”, ele explica. “E você precisava de um gerente para cuidar disso – uma pessoa que praticamente ocupava seu tempo de trabalho tomando essas providências. Hoje, existe um zilhão de pequenos prestadores de serviços que vão à sede da empresa.” Quanto mais confiante Ravikant vai ficando, mais depressa fala; e começa a enumerar as opções disponíveis. Na área de transporte, “temos Lyft, Sidecar, UberX, InstantCab e Flywheel. Dois anos atrás, nem em caso de vida ou morte você conseguia encontrar um táxi na cidade. Hoje, vendi quase todos os meus carros e tenho cinco serviços diferentes de transporte ao alcance dos dedos”.
Os mesmos sistemas que tornam mais eficiente a terceirização de pequenas tarefas reduziram muito os custos para a criação de uma empresa. Antigamente, o empreendedor precisava procurar um investidor de risco[5] para conseguir um financiamento inicial de 5 milhões de dólares – dinheiro referente a custos de equipamento, sistemas, comercialização, distribuição, atendimento ao cliente, vendas, e assim por diante. Hoje, são muitas as alternativas disponíveis na internet. “Em 2005, a coisa explodiu”, diz Ravikant. “Equipamentos? Não, basta usar a nuvem e recorrer a Amazon ou Rackspace. Sistemas? Hoje todos os softwares são abertos, e estão às ordens. Distribuição? É a App Store, o Facebook. Atendimento ao cliente? É o Twitter – basta responder aos melhores clientes pelo Twitter que eles ficam satisfeitos. Publicidade e marketing? Pelo Google AdWords, ou AdSense. Assim, o custo de criar e lançar um produto caiu de 5 milhões” – a ponta do seu marcador vai descendo pelo quadro branco – “para 1 milhão” – continua o traço –, “para 500 mil” – desenha um círculo –, “e hoje chegou a 50 mil.” Como resultado, o número de empresas disparou, bem como o número de investidores anjos: você não precisa mais ser cotista de um fundo de investimentos para se tornar um acionista de primeira hora.
E toda essa redução de escala, avalia Ravikant, estimula o surgimento de novos estilos de vida, mais recompensadores. “Conheci um sujeito que já me levou várias vezes de um lugar para o outro no Sidecar”,[6] ele conta. “Ele mora em Tiburon. Joga golfe todo dia no começo da tarde em Palo Alto. No caminho entre Tiburon e Palo Alto, passa por São Francisco. Aperta um botão, liga o Sidecar, pega uns passageiros, faz umas cinco ou seis corridas, rejeita umas duas, conhece gente nova, conversa um pouco, e depois segue viagem até Palo Alto, depois de juntar o dinheiro de que precisa para passar o resto do dia jogando golfe.” Ravikant imagina um futuro em que todo mundo terá esse tipo de autonomia, podendo escolher seu trabalho no éter, e prestando serviços aos outros da maneira que preferir – um futuro muito parecido com a São Francisco dos dias de hoje.
Outro efeito da redução de escala é o desgaste do modelo de capital de risco ligado a grandes grupos financeiros, e de suas premissas financeiras. “Quando ações da empresa são finalmente oferecidas ao público, já não há mais dinheiro a ganhar, na minha opinião”, diz Jude Gomila, um ávido empreendedor e investidor em startups, fundador de uma plataforma de jogos para celular.
Em julho passado, a Securities and Exchange Commission, SEC [organismo federal que controla o mercado de capitais nos Estados Unidos], derrubou uma regra dos tempos da Depressão que impedia as startups de divulgar que estavam captando recursos, limitação cuja consequência era franquear apenas ao pessoal envolvido com a própria área tech o zum-zum-zum do que estava acontecendo no mercado.
Teoricamente, investidores parrudos de fora da área tech agora terão a oportunidade de lucrar com o mercado de startups. Mas tudo indica que a transição não será suave. “Se você abrir para todo mundo, vai ser uma loucura”, diz Gomila. “Vai ter muita gente pequena quebrando.” Antes mesmo dessa decisão da SEC, Ravikant criou, através da AngelList, um sofisticado esquema de investimento aprovado pelo governo que chama de syndication, um programa de financiamento por grupos numerosos em que um anjo principal cria uma espécie de arcabouço em que outros anjos podem depositar seus investimentos menores, chegando assim a grandes somas. Esse esquema desempenha o papel que cabia tradicionalmente ao investimento de capital de risco em grande escala, embora envolva uma quantidade menor de recursos próprios de anjos credenciados como Gomila, Willis e alguns poucos fundos maiores. Poucos dias antes do lançamento da ideia, Ravikant assistiu a uma entrevista com Fred Wilson, um dos principais investidores de risco do país. Wilson expunha um esquema quase idêntico para explicar como a indústria poderia funcionar dali a 25 anos. E Ravikant mandou-lhe imediatamente um e-mail: “Fred, é exatamente isso que estamos fazendo.”
Procurei Wilson algumas semanas mais tarde, em Nova York. Ele tem cabelos escuros, curtos, um olhar impassível e um meio sorriso cortês. Considera que o tradicional sistema de investimento de risco está perdendo vitalidade. “O modelo existente nos últimos cinquenta anos, em que pessoas como nós fazem o papel de porteiros, indicando quem entra ou quem fica de fora do banquete de capital direcionado a empreendedores, deve perder importância. Nossa participação no total de dólares investidos em startups será cada vez menor”, ele diz. Em vez de levantar dinheiro fora, as firmas de capital de risco podem começar a investir seu capital próprio; o resto virá do crowdfunding. O que os transformará de porteiros em guardas de trânsito. “Muita gente, inclusive eu, passou pela era do boom e das quebras na internet, no final dos anos 90 e início da década de 2000”, diz Wilson. Mas ele não espera um segundo colapso. “O que estamos vendo é uma grande transformação da maneira como as pessoas fazem negócios – as arquiteturas hierarquizadas estão sendo substituídas por arquiteturas em rede.”
Normalmente, porém, os investidores de risco fazem grandes investimentos na expectativa de retornos ainda maiores: a lógica do modelo é de que, de tempos em tempos, uma startup irá bombar e se transformar no próximo Facebook (ou, pelo menos, no próximo Dropbox[7]). Mas hoje, ao que tudo indica, as startups têm toda a motivação para permanecer enxutas em mãos de particulares, prosperando em escritórios do centro das cidades em vez de construírem gigantescas sedes próprias. E essa pressão já pode ser percebida no mundo do capital de risco. Fundos de médio porte especializados em capital de risco começaram a minguar nos últimos anos. Os que não conseguiram produzir um retorno financeiro suficientemente volumoso vêm tendo problemas para angariar mais dinheiro destinado a seus futuros portfólios de startups.
Um dia, enveredei pela Highway 1 a partir de São Francisco e segui um pouco para o sul, ao longo das praias e através das florestas de eucaliptos, ao encontro de Timothy C. Draper, um investidor de risco de terceira geração, de 50 e poucos anos, no hotel Ritz-Carlton de Half Moon Bay. Seu avô, William H. Draper III, foi um dos fundadores da primeira empresa californiana de capital de risco, em 1958, em Palo Alto, pioneiro na prática de arrebanhar investidores em regime de sociedade limitada para a constituição de fundos. Hoje, Draper vem tentando adaptar esse modelo amplamente testado a um mercado atomizado de startups. Trajava terno cinza e uma gravata que trazia estampas de homenzinhos. Convidou-me para caminhar pelos gramados do campo de golfe, para fazer exercício.
Draper é alto, com sobrancelhas escuras e abundantes. Como muitos homens de negócios, fala com a voz projetada a partir do diafragma, e, enquanto circulávamos pelo campo de golfe, me ocorreu que se esbarrasse numa árvore seria provavelmente a árvore que lhe pediria desculpas.
Ultimamente, diz ele, empresas de capital de risco como a sua, especializadas em startups ou em firmas em fase de crescimento, estão se sentindo prejudicadas porque poucas companhias vêm abrindo o capital no mercado através de ofertas públicas iniciais de ações, as IPOs. “Algumas companhias atingiram a marca de 100 milhões de dólares em vendas, o que antigamente significava ir direto para um IPO, mas acontece que hoje isso já não basta porque o custo de se transformar numa empresa com ações na Bolsa é grande demais”, diz ele, explicando que o motivo está nas mudanças regulatórias e também no momento histórico. “O ciclo funciona assim”, diz ele, pegando meu bloco e minha caneta. E rabisca um zigue-zague de fora a fora da página. “Cheguei à conclusão que a coisa obedece a esse padrão do serrote. Vamos chamá-lo de ‘Variação Emocional do Mercado de Capital de Risco, ou Curva Draper’.” E escreveu, nos vales do zigue-zague, os anos de baixas do mercado ou recessão: 1957, 1968, 1974, 1983, e assim por diante. Os dentes do serrote – os picos – ele rotula alternadamente de MA, “mercado de ações”, e CR, “capital de risco”. A teoria de Draper é que os booms do capital de risco sempre se seguem às quebras no mercado de ações. “Depois de uma recessão, as pessoas perdem seus empregos e começam a matutar se não poderiam tentar a sorte no mercado e se sair melhor do que a turma que fracassou. Decidem abrir suas próprias empresas, coisas interessantes começam a acontecer, e aí se forma um boom.” Com o passar do tempo, entretanto, os investidores de risco vão ficando “descuidados” – começam a imaginar que tudo que tocam vira ouro – e o mercado de risco desaba. Então o pessoal ligado ao mercado de ações faz reajustes no sistema, e o ciclo torna a recomeçar. No momento, sugere Draper, estamos em plena ascensão do mercado de risco. E traça um círculo em torno do último zigue-zague do seu diagrama: a linha sobe e depois se interrompe abruptamente.
Pergunto a ele como acha que vai ser a próxima baixa, e ele franze a testa. “Bem, antes de mais nada precisamos de um boom”, ele responde. Penso em pessoas como Johnny Hwin, Tyler Willis e Naval Ravikant, e me pergunto se Draper estaria procurando no lugar certo. Sua ideia é que essa nova onda de crowdfunding pode conduzir as startups para os braços dos investidores de risco: depois que o financiamento dos anjos seca e a empresa ainda quer crescer, onde mais ela pode ir buscar recursos? Enquanto isso, Draper tenta manter um pé na incubação de negócios, através de uma boarding school[8] que fundou. E que se chama Draper University of Heroes, a Universidade de Heróis de Draper.
“Acho que estou indo na direção certa, com a Universidade de Heróis”, ele declara enquanto fazemos uma curva. “Ainda tenho contribuições a fazer.” No programa de Draper, os estudantes-empreendedores (os “heróis”) aprendem os fundamentos básicos da estratégia de uma startup, e são submetidos a um regime de treinamento de sobrevivência na selva e na cidade, o que Draper julga contribuir para lhes dar confiança. Sua expectativa é de que a escola atraia estudantes ambiciosos do exterior, interessados no mercado das startups. “Por exemplo, a Estônia está levantando voo!”, ele revela. Nos últimos tempos vem sendo bombardeado por pedidos de inscrição de jovens estonianos.
Draper não é o único a tentar capturar a energia da fase de incubação de negócios. Nos últimos anos, a região de São Francisco se transformou num terreno fértil de caça para o capital de risco “estratégico”: firmas que operam sob o guarda-chuva de grandes corporações. Isso porque bancar uma startup vem se tornando um modo mais eficiente de adquirir tecnologia e clientes/usuários do que o modelo tradicional de investir em Pesquisa & Desenvolvimento. Certa manhã sou recebido por Laura Schewel, de 30 anos, uma das fundadoras da StreetLight Data, financiada em parte pela T-Venture, firma estratégica da Deutsche Telekom. Sua startup captura e analisa dados anônimos de celulares e aparelhos de GPS – informação útil para conservacionistas preocupados com o consumo de combustível fóssil (Como dirigimos?), os comerciantes (Qual o melhor ponto para uma mercearia?) e os especialistas em planejamento urbano (Onde autorizar a construção de um estacionamento?). Ainda assim, Laura Schewel, como muitos empreendedores altamente técnicos, teve problemas para atrair capital de risco. “Devemos ter proposto o negócio a uns quarenta, talvez cinquenta, investidores”, ela conta. E as firmas estratégicas lhe surgiram como uma revelação. “Para as estratégicas, você não precisa fazer uma apresentação cheia de confetes”, ela explica. A Deutsche Telekom gostou da ideia de integrar a StreetLight a uma rede de telecomunicações, e o apoio da telefônica alemã ajudou a empreendedora a superar a temida “eliminação na primeira rodada de conversas” – uma peneira implacável para jovens startups. “Este escritório, e todos os móveis, nós os compramos de outras startups daqui do prédio que deixaram de existir nos últimos doze meses”, diz Laura.
Mas o que será desses empreendedores contumazes quando chegarem aos 45 anos, com dois filhos – sobretudo se nenhuma de suas empresas fizer sucesso? Eis um futuro a considerar na área de São Francisco, e fiz a mesma pergunta a muita gente. Ninguém soube dizer. O consenso é de que pessoas assim acabam trabalhando para o Google. As empresas de sede gigantesca hoje são vistas como um porto seguro de ganha-pão, a garantir uma vida confortável como gerente de nível médio ou engenheiro. De tempos em tempos, um funcionário do Google com 30 e poucos anos e um bom pé-de-meia pode tentar reingressar no jogo. Mas para quê, afinal? No mundo tech, como em muitos outros, a América das grandes empresas começa a figurar como um porto seguro quando chegam as responsabilidades da vida adulta.
Para outros, porém, o meio-termo – a empresa de nicho – se transformou em lar, ainda que para lá de instável. “Em matéria de carreira, é a menos segura de todas”, diz Gregg Brockway, um empreendedor profissional já com mais de 40 anos. “Pode custar caro para a sua vida pessoal e familiar.” Ele deixou uma empresa de Wall Street em 1998, com planos de aproveitar o boom na área de São Francisco, e pôs muito dinheiro próprio numa startup que não deslanchou. Mas seus dois projetos seguintes deram certo, e no momento ele e a mulher estão lançando um outro, para a venda de móveis de luxo. Ele se preocupa com os jovens empreendedores. “Como ficou muito mais fácil começar uma empresa, estou achando que, infelizmente, o empreendedorismo pode se tornar uma coisa banal”, ele conclui. “Talvez as pessoas não estejam pensando tão grande quanto deviam.”
Mas é difícil separar a voz da sabedoria da voz da experiência. Quando foi que o pessoal de meia-idade não olhou de soslaio para a proliferação de jovens em seu campo de atividade? É incomum que uma tendência tão próspera de negócios seja tão marcadamente uma atividade de jovens – o sucesso costuma contemplar gente mais velha. E, aliado aos horários mais flutuantes, isso pode explicar por que a cultura em expansão das startups tem a ver com um viés sonhador, artístico e idealista: trata-se de uma fantasia juvenil transportada para um lugar onde nem a juventude nem a fantasia costumam prosperar.
Em 1966, Hendrik Hertzberg, então jovem repórter da Newsweek em São Francisco, escreveu sobre os “novos boêmios” da área:
Os hippies, muito mais numerosos que os beatniks jamais foram, enfatizam o que há de positivo na vida. […] Como os beatniks, abandonaram as convenções da “disputa por status”, mas, à diferença deles, criaram um singular estilo de vida marcado pela alegria a que é possível aderir. “De certa maneira”, diz Jerry Garcia, de 24 anos, principal guitarrista do Grateful Dead e um dos heróis culturais das redondezas de Haight-Ashbury, “estamos em busca da respeitabilidade – não à maneira da Ford ou da General Motors, mas da respeitabilidade de uma comunidade capaz de se sustentar tanto financeira como espiritualmente.”
A juventude, os sonhos ambiciosos, a ênfase no estilo de vida e não nos símbolos de status, o desdém pela hierarquia, os benefícios sociais de ações virtuosas e de pensamentos comandados pelo afeto – troquem-se os nomes da descrição acima e temos um retrato da cultura que hoje rodeia as startups em São Francisco. É surpreendente constatar que a vida urbana das pessoas ligadas à atividade tech é a mais próxima herdeira do espírito dos anos 60, e de sua eflorescência criativa, a surgir na América desde então.
Mas há uma diferença crucial. Se um dos impulsos mais fortes que motivavam o movimento hippie era um espírito comunitário, o que ocorre hoje em dia aponta para uma forte tendência à privatização. Em junho, estive com Kyle Kirchhoff, um dos fundadores de uma startup de transportes chamada Leap Transit. O sistema de transporte coletivo de São Francisco, conhecido como Muni, é notoriamente desorganizado, e a Leap tentou aliviar um pouco esse problema: lançou uma linha particular de ônibus, cobrando uma tarifa de 6 dólares (a passagem do Muni custa 2), percorrendo a mesma rota da superlotada linha 30X Marina Express. Os ônibus da Leap têm bancos de couro e wi-fi. Os passageiros podem usar seus celulares para pagar e acompanhar o itinerário do veículo.
Kirchhoff marcou de me encontrar na Taste Tea, uma casa de chá em estilo gong fu. (Ele vai tanto lá que, quando entra no estabelecimento, o aplicativo Square, de pagamento com cartão de crédito, já se conecta à sua conta.) Pergunto a ele como se interessou pelo transporte coletivo. “A gente pensou: por que não podemos resolver esse problema que existe aqui, bem no nosso nariz?”, responde. Veste uma camiseta cinza e jeans, e senta-se com as pernas cruzadas numa bay window da casa de chá. Seu pai trabalhou por três décadas como vendedor e gerente na HP, e ele sonhava com uma trajetória parecida. Quando finalmente conseguiu emprego numa grande empresa, decepcionou-se. Faltava imaginação, faltava liberdade de espírito. A cultura profissional americana estava muito voltada para o lucro. Os ônibus, por exemplo. “Os ônibus fabricados na Europa ou no Japão são simplesmente demais. São inspirados.” Os modelos americanos, bem menos. “Ninguém aqui se pergunta como fabricar um ônibus de fato excelente. Já na largada, pensam como encontrar um jeito de ganhar grana. Esse tipo de mentalidade me desanimou.” Uma garçonete se aproxima com uma bandeja e começa a verter o chá lentamente, com toda a calma, do bule para as xícaras. Ao fundo, uma flautinha.
A Leap, como a Lyft, é um exemplo do estilo utilitário, de efeito imediato, da cultura tech local. Se um sistema não funciona bem, um empreendedor da área cria um melhor. E essa postura produziu claros benefícios para o sistema de transportes. Mas nem tudo são flores. Vamos supor que você seja um advogado que utiliza o ônibus da Muni e detesta a experiência. O ônibus, superlotado, nunca é pontual. Incomodado, você aciona a sua expertise jurídica para pressionar a companhia a dar um jeito na linha. E o serviço melhora para todos os passageiros: o estudante, o sem-teto alcoólatra, a velha senhora chinesa que mal fala inglês, gente incapaz de fazer pressão por conta própria para melhorar o transporte coletivo; assim, seu esforço, feito em causa própria, acaba redundando em benefício para a coletividade. Hoje, o advogado contrariado pode simplesmente preferir tomar um ônibus da Leap. Isso pode ser ótimo para ele. Mas sai perdendo a velha senhora chinesa, que não tem mais seu defensor na esfera cívica. Propiciar uma válvula de escape para os usuários mais prósperos de um sistema diminui a pressão em favor da mudança.
Kirchhoff encara a questão de outro modo. Para ele, um dos motivos da ineficácia do ônibus da Muni é não ter havido concorrência de mercado para torná-lo melhor. “Poder escolher é uma coisa maravilhosa, e haver concorrência também é uma coisa boa”, ele afirma. “Não falo da concorrência no sentido mais brutal, de eliminar o outro do negócio. Falo em oferecer uma opção a partir de uma concepção original de como devem funcionar as coisas.”
Se o antigo ativismo se concentrava na infraestrutura de serviços públicos, o novo modelo parte da premissa da privatização. Fui visitar Leila Janah, cuja startup, Samasource, constrói redes digitais de terceirização para ajudar mulheres e jovens pobres. (A terceirização de serviços básicos de informática é fato, diz ela. Por que não capacitar esse contingente de desamparados de maneira que as empresas possam contratá-los por salários decentes?) As pessoas começam cumprindo tarefas que não exigem noções prévias de informática, como, por exemplo, catalogar imagens para a Getty Images ou a Microsoft. Até agora, o programa já ajudou 15 mil pessoas a ultrapassar a linha da pobreza.
Janah considera seu programa diferente das startups comerciais com pegada filantrópica, tão em moda nos anos recentes – empresas que prestam serviços ou fazem comércio, destinando parte do lucro a boas causas. Ela mesma tentou obter fundos de apoio de organizações filantrópicas tradicionais. Todas recusaram. “Fiquei chocadaça”, ela disse. “A comunidade do Vale do Silício teve bem mais facilidade de compreender a ideia do que as organizações de combate à pobreza.” Só depois que alguns anjos da área tech começaram a investir é que fundações voltadas para a pobreza e oportunidades de crescimento passaram a levar a ideia dela a sério. “Hoje, a expectativa é de que os empreendedores sociais resolvam os problemas que antes só eram enfrentados pelo governo”, ela diz.
Em São Francisco, os jovens que pensam a esfera pública parecem ter essa expectativa, e é em parte por esse motivo que o mercado de startups cresceu tanto, e tanta gente inteligente de todo o país continua afluindo para cá. O resultado é uma geração, cada vez mais numerosa, de gente criativa, com consciência social, influência na cultura, transbordante de generosidade e sonhos juvenis – e fundamentalmente comprometida com a ideia de soberania da iniciativa privada.
Quando terminava o verão, tornei a visitar o Sub, convidado para um jantar que Johnny Hwin organizou para seu amigo Tim, que por sua vez queria apresentar um outro amigo, Serge. Serge é um profissional de software que, nas horas vagas, conduz as pessoas a estados profundos de meditação, nos quais elas podem reviver vidas passadas. Para algumas pessoas, “revisitar vidas passadas reduz o medo da morte”, Serge comentou naquela noite, de olho no relógio. “Espero que a gente comece logo”, disse. “Já vi pessoas que conseguiram passar por três, quatro, cinco vidas anteriores.”
Hwin ajudou a contratar um serviço de bufê, que ofereceu um jantar paleo, com algumas opções veganas. Nós nos refestelamos em almofadas ao redor de uma mesa azul-clara, nos servimos de comida e nos apresentamos uns aos outros. A certa altura, um velho monge budista em trajes cor de açafrão entra, dá uma olhada geral e depois sai; ninguém, nem mesmo Hwin, soube explicar o que ele tinha ido fazer ali.
Nenhum dos convidados jamais tinha experimentado alguma regressão a vidas passadas, mas todos estavam curiosos. Quatro pessoas se ofereceram como voluntárias. Nós nos enfiamos na casa de bonecas de Hwin, onde havia um sofá, alguns assentos improvisados e uma cama com um dossel de veludo vermelho. As luzes estavam apagadas, acendemos velas. Os voluntários se deitaram na cama ou no chão. “Vamos resolver com quem devo interagir se alguém entrar no transe?”, perguntou Serge.
“Primeiro as damas”, alguém disse.
Acomodei-me no chão. Desde a escola secundária eu não passava tanto tempo sentado no chão, e minha mente se pôs a vagar. Em 1998, aos 14 anos, eu tinha começado a fazer longas caminhadas à noite. Costumava observar a transformação da paisagem urbana: quitandas modestas se transformavam em lojas de alimentos; restaurantes e cafés se erguiam onde antes havia padarias e lojas de tecidos. À noite, velas tremulavam nas mesas dos restaurantes dublês de enotecas, com suas amplas vitrines. Homens de sapatos coloridos e mulheres de botas saíam para a rua em meio ao nevoeiro. Uma lufada de conversas, perfume, cheiro de vinho e alho assado os acompanhava pelas portas abertas. Se houve alguma promessa feita a quem, como eu, começou a crescer nessa época, pensei, ela vinha da luz e da liberdade daquelas noites de época de boom.
“Fechem os olhos bem devagar”, disse Serge, “e se desliguem de tudo que existe ao redor, fiquem focados na tranquilidade reconfortante das minhas palavras.” Fez-se silêncio, e mais uma vez corri os olhos à minha volta no escuro. Em frente à cama, Hwin havia pendurado a camisa do time de basquete da escola em que tinha estudado. Serge fez uma pausa. Fechei os olhos. Era possível ouvir as respirações. Passei algum tempo sentado ali, tentando não pensar no meu passado e me perguntando se de fato estava prestes a chegar o reino com que tanto sonhamos.
[1] Sistema de financiamento coletivo por meio de múltiplas fontes de doação ou investimento, em geral proveniente de pessoas físicas e largamente operado via internet.
[2] David Ellison, 31, e Megan Ellison, 28, filhos do dono da Oracle, Larry Ellison. Os dois irmãos são grandes investidores de Hollywood, tendo produzido filmes como Missão Impossível 4,Guerra Mundial Z e A Hora Mais Escura.
[3]Venture capital, modalidade de investimento em que se compra participação acionária de empresas nascentes ou em fase inicial de expansão, com o objetivo de sair do negócio mais adiante. O investimento pode ser feito por uma só pessoa, o venture capitalist, ou por um fundo de investimento, a empresa de venture capital.
[4] Cidade a 62 quilômetros de São Francisco, onde estão as sedes de empresas como Google e Yahoo.
[5] Venture capitalist.
[6] Serviço semelhante ao Lyft, de transporte em veículos particulares.
[7] Site que oferece o serviço de armazenamento e partilha virtual de arquivos.
[8] Escola equivalente ao Ensino Médio, mas com residência.