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Um judas da política
Celso Pitta chegou a prefeito de São Paulo embalado pelo jingle “Coração na boca, peito aberto, vou sangrando”. Às vésperas da morte, sua reputação valia 7 625 reais
Marcos Sá Corrêa | Edição 39, Dezembro 2009
O país não esperou nem a missa de sétimo dia para sentir a falta de Celso Pitta, um carioca que foi prefeito de São Paulo. Ele morreu no dia 20 do mês passado, faltando pouco para a meia-noite. Quatro dias depois, o juiz Wanderley Sebastião Fernandes, da 6ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, condenou sete réus a devolver aos cofres da prefeitura o dinheiro desviado nas obras do Ayrton Senna, o túnel de 2 quilômetros que atravessou a década de 1990 e várias administrações da cidade. Se não tivesse morrido a tempo, Pitta teria sido o condenado número oito.
Esse era o tipo de notícia em que Pitta jamais faltava. Saía uma sentença qualquer sobre as contas da metrópole? Pitta voltava aos jornais. Inquérito da Polícia Federal? Mais Pitta. Pendengas na Vara de Família por atrasos da pensão para a ex-mulher? Pitta, disparado.
Sua vida privada nunca foi tão pública quanto nesses últimos dez anos, quando já não ocupava qualquer posto político. Só após encerrar duplamente seu primeiro e último mandato – foi cassado pela Justiça em 26 de maio de 2000 por dezoito dias, e saiu da prefeitura em 31 de dezembro, porque seu tempo regulamentar havia acabado – é que ele encontrou a chave acidental da vitaliciedade.
Treze ações populares por improbidade administrativa o esperavam na saída do gabinete. Outras viriam na onda. No bota-fora, 83% dos paulistanos tacharam sua gestão de ruim para baixo. Apesar do aviso, ele tentaria duas vezes um mandato de deputado, em 2002 e 2006. Sem eleitorado próprio (por baixo) e sem padrinhos fortes (por cima), faltaram-lhe votos.
Pitta bem que poderia ter sido esquecido ali. Mas calhou de começar, naquela época, a era das celebridades – a era que tem um palanque reservado ao puro e simples exercício da notoriedade, venha ela da fama ou da infâmia. Nem era mais preciso que o ex-prefeito corresse atrás da fama. Policiais, promotores e repórteres correriam atrás dele onde estivesse, mesmo foragido dos mandados de prisão, para cobri-lo de infâmia
Num desses sumiços, no ano passado, o programa humorístico CQC entrevistou, ao vivo, o interfone de sua casa. Foi ao ar a voz da empregada, indagada se o patrão pagava “direitinho” os salários domésticos quando devia mais de 100 mil reais em pensões para a ex-mulher. “Tá meio atrasadinho, mas quando ele chegar ele paga”, respondeu a voz do outro lado.
Sem vida pública, Pitta perdeu as regalias da vida privada. Nada resume melhor a confusão de sua existência do que a entrevista coletiva sobre sua morte. Do tumor maligno no intestino, com metástase, não falaram os médicos Raul Cutait e Paulo Hoff, como seria de praxe. Quem atendeu os jornalistas foi o advogado Remo Battaglia, que aproveitou a oportunidade para incriminar a intoxicação de processos pela debilitação física de seu cliente. Pitta fora operado em janeiro, para a extração do tumor, e vivia, na ocasião, em regime de prisão preventiva. Somente três meses depois da cirurgia o mandado foi alterado para prisão domiciliar.
“A doença é a mágoa”, comentou o especulador Naji Nahas, cuja amizade valeu a Pitta uma vaga no arrastão de banqueiros do delegado Protógenes Queiroz. A Operação Satiagraha teria farejado 92 milhões de reais trocando de mãos, em remessas ilegais para o exterior – e as mãos de Pitta estariam no meio do rolo.
No dia D da Satiagraha, em julho do ano passado, o país acordou com 24 ordens de prisão e 56 ordens de busca por formação de quadrilha, gestão fraudulenta, evasão de divisas, sonegação fiscal – tudo coisa de gente grande. E Pitta, cada vez mais estranho no ninho de autoridades, empresários ou banqueiros, foi naquela manhã o único suspeito flagrado em casa de pijama pelos policiais e repórteres de tevê. Era típico dele andar metido com uma turma que não era bem a sua.
Celso Pitta foi tirado do nada, na campanha municipal de 1996, pelo publicitário Duda Mendonça. Seu papel era encarnar, na tevê, “um negro com envergadura de jogador de basquete e aparência de galã”. Sua vitória no segundo turno, contra a ex-prefeita Luiza Erundina, com mais de 60% dos votos, é um exemplo de marqueteiro que cisma em conseguir também eleger poste.
Duda Mendonça catou Celso Pitta, um ilustre desconhecido, na Secretaria de Finanças do prefeito Paulo Maluf, seu tutor e padrinho político. E estreou com ele um estilo que tornaria inesquecível na eleição de Lula em 2003 – o filme de propaganda política com mais povo que candidato. Ouvia-se, ao fundo, um jingle agradável, que na época provavelmente não queria dizer nada e o tempo tornou premonitório: “Coração na boca, peito aberto, vou sangrando.”
Veio pronta também da cabeça do marqueteiro a frase que nunca mais saiu dos débitos de Maluf: “Vote no Pitta e, se ele não for grande prefeito, nunca mais vote em mim.” O que Duda Mendonça não conseguiu foi fazer os dois se abraçarem para as câmeras com naturalidade. Ambos deixavam patente que nunca tinham feito aquilo antes. E muito menos fariam depois.
Em outros tempos, Pitta podia ser o modelo clássico do brasileiro negro de classe média que sobe na vida. Estudou economia em universidade pública, fez mestrado na Inglaterra e se especializou em administração em Harvard. Voltou ao Brasil para ser executivo. Mudou-se para São Paulo porque ali estavam os melhores empregos. Acabou assumindo, em 1987, a direção financeira da Eucatex, o gigante dos compensados industriais da família Maluf. Estava com a carreira feita quando Maluf precisou dele, primeiro na Secretaria de Finanças e depois como sucessor na prefeitura.
A política reduziu-o a ex-marido de uma mulher, Nicéia, que, ao fim de dez anos chamando-o de corrupto em público, no mês passado foi condenada na Justiça a lhe pagar uma indenização de
7 625 reais. Era quanto valia, às vésperas da morte, a reputação de Pitta. Ele deixou a viúva Rony Golabek, com quem viveu os últimos cinco anos, comprometida a desagravar sua memória. No momento, Rony escreve um livro no qual tenta provar que o marido foi “um Judas da política”. Ela se refere, certamente, ao Judas que se malha em sábados de Aleluia.
Judas não é, em todo caso, um nome que se costuma ouvir em elogios fúnebres.
Do mesmo modo, é rara, e talvez inédita, a necessidade de uma vaquinha para a publicação do anúncio da missa de sétimo dia de um ex-prefeito paulistano. A ação entre amigos teria arrecadado 8 mil reais. Moral da história: não basta ser desonesto, é preciso, também, saber sê-lo para sair bem da vida.
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