ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Uma cabana na floresta
Nenhuma daquelas fotos de grandes cidades vazias faria sentido aqui
Carol Bensimon | Edição 163, Abril 2020
De Mendocino
Quando tudo começou a ficar exponencialmente ruim, eu estava em Porto Alegre visitando meus pais. “O Mitchell e a Sharon vão fazer quarentena”, disse minha namorada ao telefone. Moramos numa cabana no meio da floresta, em Mendocino, Norte da Califórnia, um lugar com cerca de 1 mil habitantes. Era 7 de março, e ainda não havia um decreto local ou estadual mandando ficar em casa, mas Mitchell e Sharon, nossos vizinhos e donos da cabana onde vivemos, acharam melhor se precaver logo; estão com 84 e 75 anos, respectivamente. Somos amigos, fumamos maconha juntos. É a primeira vez que eu os enxergo como velhos.
Eu vinha dormindo mal no Brasil, enquanto acompanhava a escalada de notícias. Minha passagem estava marcada para o dia 19 de março, data que começou a parecer distante e imprevisível. Embora eu tenha um visto de residente permanente e a situação na América do Sul não fosse ainda tão grave, estava com medo de não conseguir voltar para casa. De Los Angeles, um amigo me contou sobre o caos dos supermercados: carrinhos trancados para evitar compras em grande quantidade, disputa por mercadorias, funcionários aos gritos.
Tentei adiantar meu retorno, mas o serviço de ajuda ao consumidor do site Decolar insistia que precisava de 72 horas para executá-lo, o que, no fim, jamais foi cumprido. Então acabei comprando uma nova passagem.
Antes de embarcar no trecho Porto Alegre-Cidade do Panamá, as aeromoças mediram a temperatura dos passageiros. Aquele foi o embarque mais rápido que já vi, grupos 1, 2, 3 e 4 sendo chamados pelo microfone em intervalos curtíssimos. Uma meia dúzia de pessoas parecia realmente estar indo passar as férias no Caribe, mas o resto, não mais de cinquenta, devia estar numa situação parecida com a minha, tentando voltar para casa e executando todos os rituais antissépticos recém-aprendidos para evitar uma contaminação.
No Panamá, na fila do embarque para São Francisco, uma senhora norte-americana puxou conversa comigo. Ela ia participar de um encontro de cinquenta anos da turma da faculdade em algum lugar da América Central e decidiu viajar uma semana antes da festa para aproveitar a estadia. O encontro foi cancelado, ela foi a única a ir para lá. Agora todos os hotéis iam fechar as portas. Naquela manhã, ela fora proibida de usar a piscina do hotel em que estava. Achei uma história triste, mas procurei não fazer perguntas, com medo de saliva, toques, qualquer aproximação. Uma pessoa passou por mim usando máscara, luvas cirúrgicas e óculos de mergulho. Dessa vez, ninguém da tripulação fez medições de temperatura.
Em São Francisco, eu estava preparada para um interrogatório médico na imigração, talvez um teste, mas as perguntas continuavam a ser sobre quanto dinheiro eu levava e se havia algum tipo de alimento na minha mala. Os saguões estavam desertos, um contraste brutal com a realidade de apenas doze dias antes. Fui até a locadora de carros. O atendente me fez segurar sua caneta enquanto ele acomodava minha bagagem, mas enfatizou que tinha testado negativo para a Covid-19.
Era 17 de março, terça-feira, quatro horas da tarde do primeiro dia do lock-down de São Francisco, de maneira que todos os serviços não essenciais estavam fechados. Parecia sete da manhã de um domingo. Nas ruas, um ou outro sem-teto falava sozinho e alguns corredores muito determinados passavam com roupas fluorescentes. Eu nunca tinha visto a Golden Gate sem ninguém.
O condado de Mendocino começou seu lockdown em 19 de março, mas o governador da Califórnia, Gavin Newsom, anunciou no dia seguinte que todo o estado estaria submetido às restrições que já vigoravam em cidades como São Francisco e Los Angeles. A Califórnia é o segundo estado norte-americano em número de contaminados, atrás apenas de Nova York.
Quando decidi “fugir para as montanhas”, em 2018, o medo de uma pandemia não estava em minha lista de motivos. Escolhi esse lugar porque queria desacelerar a vida e ficar mais próxima da natureza. Agora me sinto grata por ter tomado essa decisão. A região de Mendocino é um lugar onde o distanciamento social sempre foi, em certo sentido, parte do cotidiano: a maioria das pessoas vive em propriedades rurais de onde sequer se pode enxergar as casas dos vizinhos, o lazer não depende necessariamente de restaurantes, bares ou equipamentos culturais, e a densidade populacional é baixíssima, o que faz com que seja possível caminhar na costa ou na floresta sem que se veja um único ser humano. Nenhuma daquelas fotos de grandes cidades vazias devido à quarentena faria sentido aqui: o antes e o depois não apresentariam uma diferença tão dramática.
Desde que me mudei, aprendi a estocar comida e viver sem tele-entrega. Da casa onde vivo, vejo apenas árvores e o topo do telhado de um vizinho. Portanto, consegui manter boa parte da minha rotina desde o início do confinamento, embora às vezes seja impossível não ficar paralisada com as notícias: escrevo, leio, trabalho em meu curso online, sento ao sol, mexo no jardim, caminho em lugares desertos. Sinto falta dos encontros com os amigos e do movimento de turistas na cidadezinha, que costumava ter um fluxo constante, ainda que não massivo, de gente vinda de fora.
Todos os hotéis estão fechados, e as casas listadas no Airbnb, proibidas de receber hóspedes. Os eventos que movimentam a região, como o festival da baleia e o festival de cinema, foram cancelados. Casamentos à beira das falésias não acontecem mais. Grande parte da comunidade latina, moradores sobretudo da vizinha Fort Bragg, foi dispensada de seus empregos na indústria do turismo.
Mendocino tem uma expressiva população de idosos. Eles são a maioria aqui. Longos cabelos grisalhos no supermercado, rostos enrugados soprando saxofones no café local, pacifistas dos anos 1960 nos aparelhos de ginástica, gente com implantes de quadril andando na beira do oceano. Isso quando tínhamos uma vida normal. Mendocino me ensinou muito sobre a velhice. Torço, sem parar, para que fiquem todos bem.