Diante dos monitores, no quarto de hotel em Nova York: no noticiário da NTV, tevê da estatal de energia, Elon Musk diz que “todas as notícias são propaganda. As pessoas têm que decidir por si mesmas”. A tevê estatal russa não diria melhor CRÉDITO: JEREMY LIEBMAN_2023
Uma overdose de tevê russa
Um relato, cheio de espanto e deboche, sobre cinco dias assistindo às emissoras estatais do país
Gary Shteyngart | Edição 203, Agosto 2023
Tradução de Isa Mara Lando
Na véspera do Réveillon de 2014, eu me tornei objeto de um experimento terrível realizado a convite da revista do jornal The New York Times. Durante sete dias, fui obrigado a ficar num quarto de hotel (do qual eu saía apenas uma vez por dia para dar umas braçadas na piscina), assistindo aos canais da tevê estatal russa. Havia três monitores enfileirados à minha frente, constantemente transmitindo em alto volume o Piervy Kanal (Canal Um) e o Rossiya-1 (Rússia-1), além do canal NTV, que pertence à empresa estatal de energia Gazprom. Ao final da minha estadia, eu havia sofrido uma transformação total: deixei de ser um romancista alegre e despreocupado, e me tornei um homem parecido com um rato de guinchos tímidos, psicologicamente desequilibrado e inseguro sobre o que constitui a realidade.
Oito anos depois, em maio deste ano, fui solicitado a replicar o experimento. Apesar de o tempo da minha pena ter sido reduzido de sete para cinco dias, agora, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a propaganda estatal ficou ainda mais estridente, arrogante e genocida, tornando qualquer exposição a ela psicologicamente problemática. As sementes do derramamento de sangue de ucranianos inocentes foram plantadas naquele ano de 2014, se não antes. Imagens dos ucranianos como um bando de nazistas ludibriados pelo Ocidente já estavam muito presentes na tevê russa. Naquela época, eu não acreditava que elas poderiam levar aos massacres de Bucha e Irpin. Agora, já estou escolado.
DIA 1
Chego ao hotel Public no Lower East Side, em Nova York, num dia frio de primavera. Do meu quarto, dependendo da posição, pode-se ver a linda silhueta de Manhattan, com seus arranha-céus delineados. Quando o Sol começa a se pôr, o horizonte se ilumina em flashes de lilás e cor-de-rosa. Mas não estou aqui para contemplar a torre do One World Trade Center, nem o New Museum, bem perto do hotel. Estou aqui para sofrer e aprender. Ligo os três monitores, em sequência: Piervy Kanal, Rossiya-1 (transmitido fora da Rússia como RTR-Planeta) e NTV. Trato de me acomodar na cama grande e confortável, peço ao serviço de quarto que me traga um pisco sour (o hotel tem um restaurante peruano) e esfrego os olhos, cheio de expectativa. Foi dada a partida.
A primeira coisa que se nota ao ligar uma tevê russa é a fascinação totêmica pela suástica, símbolo que aparece regularmente nas minhas telas – às vezes recortada de imagens da era nazista, às vezes de vídeos supostamente relacionados à extrema direita ucraniana. Por vezes aparece nas notícias, outras vezes em algum documentário ou drama feito para tevê. Depois da minha terceira ou quarta suástica no dia, começo a acreditar que, quando o símbolo nazista é mostrado com tanta frequência, isso não é feito apenas para difamá-lo, mas como um apelo inconsciente ao poder autoritário e ao fascismo do próprio Estado.
Muito tempo de transmissão nos três canais é dedicado a debates sobre notícias, em estúdios vistosos, ocupados por homens já idosos usando blazers, berrando frases sobre o Ocidente. Kto Protiv (Quem é contra), no Rossiya-1, é um desses programas. Muitas vezes o conteúdo é semelhante ao que se vê em canais de extrema direita nos Estados Unidos, cujo exemplo típico é a Fox News. Mas a tevê estatal russa está vários graus à direita da Fox e mesmo da sua concorrente mais lunática, a Newsmax, apesar de o apresentador Tucker Carlson (ex-âncora da Fox News), o rei da supremacia branca televisiva, também aparecer frequentemente nas emissoras russas. Nessa noite, Quem é Contra apresenta a Suécia e a Finlândia como países que foram coagidos a entrar na Otan. Uma pessoa no programa pronuncia incorretamente o termo LGBTQIA+, provocando a risada dos demais participantes (“Afinal, é mais ou é menos”, pergunta outro, sobre o termo). Em seguida, um “especialista em economia” diz que o corpo de várias pessoas transgênero começou a se desintegrar. Nenhuma prova é dada sobre todos esses casos, são apenas pessoas conversando ou, como dizem alguns, “levantando questões”.
Enquanto isso, na NTV, aparece outro prato forte da tevê russa: famílias disfuncionais. “Eles me espancaram, amarraram minhas mãos, me deixaram passar fome”, diz uma mulher de meia-idade de Volgogrado, em prantos. “Minha avó me batia na cara com uma vara metálica!” A mãe dessa mulher espancada rejeitou a maioria dos cinco filhos logo após dar à luz. “Pago 7 mil rublos [cerca de 380 reais] da minha pensão para morar num quarto com três crianças”, diz a mulher. Aparecem imagens do apartamento sujo e dilapidado e um gato infeliz. Ela pede dinheiro à irmã mais velha, que está sentada à sua frente em um belo sofá. “Eu também fui espancada com uma vara de metal!”, diz a irmã mais velha. Aparece então a mãe idosa que abandonou os filhos. Uma mulher da plateia, com um colar no pescoço parecendo uma corrente grossa, grita para ela: “Por que você deu à luz a tantos filhos se não tinha marido nem dinheiro? Para depois eles ficarem órfãos?”
Enquanto isso, no Piervy Kanal, um documentário em preto e branco mostra Nikita Kruschev (1894-1971) cumprimentando um grupo de cosmonautas. As glórias do passado soviético em uma tela contrastam com a realidade do presente em outra. Poderíamos perguntar por que um governo obcecado pela propaganda decide exibir programas sobre famílias desfeitas. Um dos motivos é que o público, como ocorre em todos os países, gosta de ver seus compatriotas sofrendo. Outra razão é lembrar às pessoas que a vida nos estratos mais baixos da sociedade segue uma tradição centenária. O programa é conduzido por dois homens elegantes, que se ajustam a um esquema bem conhecido na tevê russa: apresentadores estilosos da cidade entrevistam moradores do interior em dificuldades como se estes fossem camponeses saídos de um conto de Tchékhov e estivessem sendo julgados por um tribunal distrital nos tempos do czarismo. Inconscientemente, programas assim ensinam aos russos mais pobres e mais velhos (o típico público da tevê estatal) que eles devem se envergonhar diante dos seus superiores e não podem esperar muito da vida, nem de suas famílias.
“Meu marido bebia”, explica na NTV a tal mãe idosa negligente. Ela era motorista de bonde; o marido, operário de fábrica. “Ele ficou preso três anos porque roubou um casaco. E depois se divorciou de mim.” Enquanto o Piervy Kanal mostra o voo espacial tripulado como uma grande conquista, a NTV apresenta a Rússia eterna, aquela que permanecerá quando as glórias do passado forem relegadas aos livros de história.
A idosa rasteja pelo chão e grita para os filhos, chorando: “Me perdoem! Me perdoem!” Agora, saímos das páginas de Tchékhov e chegamos à terra de Dostoiévski. Parte da plateia está em lágrimas. “Meu destino foi tão duro!”, exclama a velha mãe para a plateia e para os seus muitos filhos abandonados.
No Rossiya-1, as discussões sobre a Finlândia e os transexuais americanos ainda não se esgotaram. Em uma tela, homens esbravejam sobre geopolítica; em outra, mulheres gritam sobre a destruição da sua vida pessoal.
Um comercial interrompe o programa sobre a família disfuncional. É a publicidade de uma cadeia de fastfood que substituiu o McDonald’s depois das sanções impostas à Rússia devido à invasão da Ucrânia. A imitação do McDonald’s está oferecendo um biiig special roast beef de aparência pouco convincente.
No Rossiya-1, o ministro russo das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, está fazendo um dos seus habituais discursos bombásticos: “Eles querem ‘cancelar’ o nosso país, como dizem. Estão tentando cancelar o nosso país porque estamos seguindo a nossa própria política. Há muito tempo o Ocidente vem preparando a Ucrânia… Assim como a Alemanha invadiu a Rússia.” A tevê mostra outro desfile nazista, um longo mar de suásticas e slogans bradados em alemão.
Enquanto isso, a NTV passou da família disfuncional para um programa chamado Lições em Russo, no qual um escritor do país, com uniforme militar, fala sobre sua fé cristã ortodoxa, diante de um cartaz que diz: “Não à paz, sim à espada.” O escritor pode não ser um Tolstói, mas se expressa diretamente sobre o tema “guerra e paz”. “Um padre certa vez me disse que o cristianismo significa virar a outra face. Não significa virar a outra bunda.” Ele balança um pouco, para frente e para trás, enquanto despeja mais insights sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia. “A morte é permitida no caso de assassinato… e homossexualismo… Deus incentivou os israelitas a fazerem guerras.”
No Rossiya-1, vemos imagens de Putin atravessando a passos largos os salões dourados do Kremlin, enquanto Joe Biden aparece tropeçando na escada do avião presidencial Air Force One. É a chamada para um programa intitulado Moscou, Kremlin, Putin.
São apenas nove da noite, mas já estou exausto. Bebi dois copos de pisco sour, comi meu ceviche do restaurante peruano do hotel e estou assistindo, sem prestar muita atenção, a um filme chamado Razplata (Revanche), que, parece, é sobre um beberrão que bate na mulher. Minha visão começa a ficar turva, e meus olhos mal conseguem distinguir o que está passando nos três monitores, mas percebo que eles formam o tríptico de uma nação que não tem ideia do que deveria ser.
DIA 2
“Não é meu rei!” As notícias do dia começam com manifestações contra a monarquia no Reino Unido. “Pelo menos ninguém está jogando ovos nele, como da última vez”, diz o locutor da NTV, enquanto o rei Charles III é vaiado. Além das constantes imagens de manifestações antiguerra e pró-Rússia na Alemanha, a tevê russa está obcecada com a perfídia dos “anglo-saxões”. A família real é criticada pelos mais diversos pecados, desde o colonialismo na África até os 3 milhões de libras que Charles supostamente recebeu de um xeique do Catar. Embora a propaganda russa normalmente se incline para a extrema direita, seus produtores são capazes de mudar de rumo rapidamente – em um momento fingem ter horror de transexuais e logo em seguida promovem uma espécie de anticolonialismo de tempero soviético. Com certeza algo irá atrair um dos mais de 100 milhões de telespectadores que passam quase quatro horas por dia, em média, consumindo essa sopa rala e picante.
Após as vaias ao rei Charles, a previsão do tempo para o país mostra as temperaturas em Donetsk, Melitopol e Yalta – três cidades roubadas da Ucrânia. Observo que Kherson, uma capital regional recentemente libertada pelo Exército ucraniano, não aparece no programa.
Estamos no fim de semana, e o Piervy Kanal está exibindo uma sequência interminável de antigos filmes soviéticos e corais militares entoando loas. Mas a NTV está de olho em um público mais jovem, com um programa sobre mulheres perseguidas por ex-companheiros. “Ele é boxeador profissional e me batia aos socos várias vezes”, diz uma mulher. “Ele tem uma natureza muito agressiva.” Uma modelo está sendo chantageada pelo seu ex, que ameaça vazar vídeos de sexo dela. “Os smartphones facilitaram esse tipo de perseguição”, diz o apresentador. “Ele ameaçou quebrar meus dentes”, conta outra mulher, e o programa nos serve de bandeja uma série de hematomas horríveis. O locutor observa que a perseguição a mulheres por seus ex-namorados também é um problema nos Estados Unidos e na Alemanha.
Isso pode ser verdade, mas depois de assistir à tevê russa por quase 24 horas, começo a enxergar um assunto comum aos programas: a presença constante da violência, em geral cometida contra mulheres e crianças. O verbo “espancar” surge frequentemente, o que faz sentido em um país onde os homens enfrentam humilhações horríveis ao entrar no Exército e o sistema penal é cruel e violento. Estudos mostram que 1 em cada 5 mulheres russas sofre abuso doméstico; em 2017, a Duma, a Câmara Baixa do Parlamento, aprovou uma lei descriminalizando a violência doméstica que não resulte na hospitalização da vítima. Um subtexto talvez seja que uma cultura impregnada de violência interna pode ser capaz de propagar a violência no exterior – daí a guerra na Ucrânia e, com o tempo, em outros lugares.
Há uma pausa para o comercial de um medicamento contra a impotência masculina, chamado O Segredo do Imperador, supostamente fabricado na China a partir de diversos tipos de cogumelos. “O Segredo do Imperador pode ser misturado com álcool”, avisa o anunciante, prestativo, aos homens do país.
Em seguida a NTV apresenta um americano chamado John McIntyre, que lutou junto aos ucranianos, mas depois fugiu para a Rússia. O ex-militar foi descrito como mentalmente instável por outros soldados e comandantes; supostamente, foi expulso do Exército ucraniano por incompetência, mas na Rússia ele é um ativo valioso, usando com orgulho sua camiseta e seu boné de Che Guevara. O programa insinua que foi um batalhão ucraniano de extrema direita que cometeu no ano passado os massacres em Bucha e Irpin, e não os soldados russos – cuja campanha de estupros, execuções e terror foi, porém, bem documentada. Essa é a nova versão russa da Grande Mentira, um contraponto sangrento à Grande Mentira (Big Lie) dos republicanos, nos Estados Unidos, segundo a qual Donald Trump venceu a última eleição.
“Há mais pessoas como você nos Estados Unidos?”, pergunta o entrevistador a McIntyre. “Sim, há muitos americanos a favor dos russos”, responde o jovem. “Os serviços de inteligência americanos são donos da mídia. A maioria das pessoas assiste à CNN, mas a Fox tem posições mais objetivas”, ele completa.
“As vozes estão soando cada vez mais altas!”, diz o apresentador de um noticiário da Rossiya-1, enquanto a imagem mostra uma manifestação de alemães idosos a favor da Rússia. “Otan fora da Ucrânia!”, gritam eles. “Estados Unidos e CIA fora da Ucrânia!” Em seguida, uma moça atraente, correspondente de guerra, leva doces para os soldados russos na linha de frente. A guerra pode ser brutal, mas também pode ser sexy e emocionante.
DIA 3
O Piervy Kanal está intensificando seu jogo nessa olimpíada da propaganda, com uma série “documental” chamada A Era da URSS, que mescla animação e imagens antigas. Na língua russa, diz o locutor, não há uma palavra para “perdedor”, mas há a palavra neudachnik, que significa literalmente uma pessoa sem sorte. “O perdedor é culpado pelo que ele não conseguiu realizar”, explica o locutor. “O neudachnik não é culpado por ter deixado de realizar o que almejou, mas apenas por sua falta de sorte, e merece compaixão.” Assim, a Rússia, um país de estradas ruins, casas em ruínas e uma expectativa de vida estarrecedora, não é uma nação de perdedores sem realizações, mas simplesmente de pessoas para as quais a sorte não sorriu. Em outras palavras: não culpe Putin pela baderna em que vivemos.
O programa então se volta para a Ucrânia. “A história da Ucrânia começa com os eslavos”, diz o locutor. “O território da Ucrânia mudou de mãos, passando dos católicos para os ortodoxos. Ukraina significa ‘beirada’. A palavra aparece pela primeira vez no século XII.” O programa adota a visão, segundo o “trabalho acadêmico” de Putin sobre o assunto, de que a Ucrânia não tem história própria, apenas compartilha a história comum dos eslavos. “Seu caráter nacional é russo, exceto no Sul [ou seja, na Ucrânia], onde esse caráter se manifesta com mais agressividade… capacidade de traição e infantilismo.”
Nesse momento a retórica genocida se intensifica, com uma animação mostrando um ucraniano seminu, bêbado, dentro de um chiqueiro (o porco está grunhindo ali perto). Do topo da cabeça do homem, desliza uma longa mecha de cabelo, um simbolismo capilar relacionado ao khokhol, insulto usado pelos russos contra os ucranianos. É equivalente ao pior tipo de ofensa antissemita e racista. A imagem do ucraniano bêbado com seu corte khokhol é tão aviltante quanto aquela, propagada pelo Terceiro Reich, do judeu de nariz adunco que controla o mundo.
Enquanto isso, na NTV, mais vovós alemãs entoam cantos “pela paz” numa manifestação pró-Rússia, participando, inconscientemente, de uma marcha equivalente às dos Comícios de Nuremberg, durante o nazismo.
O dia passa e a ntv apresenta um documentário intitulado Eu Era a Escória de Zelensky. Uma moça é presa, acusada de tentar bombardear a Prefeitura de Mariupol, na Ucrânia, depois que essa cidade devastada realizou uma eleição fraudulenta a favor da adesão à Rússia. “Mariupol é um lugar de glória para as forças russas e de vergonha para o Führer de Kiev”, declara o locutor. Esse Führer, claro, não é outro senão Zelensky, um judeu cujos parentes pereceram no Holocausto. O programa visita o apartamento da suposta terrorista, decorado de maneira hilária com uma bandeira americana e antigos objetos nazistas. Será que algum telespectador russo consegue acreditar nesses absurdos? Como mencionei antes, a tevê estatal russa vem construindo essa narrativa há muitos anos. Para os idosos e solitários do país, a voz do locutor pode ser a mais familiar que eles dispõem. E a audácia da linha de ação faz parte da estratégia. Talvez a bandeira americana tenha sido plantada no apartamento da jovem, talvez não. Talvez não exista apartamento algum. Talvez não exista isso que é chamado “verdade”.
O programa faz uma pausa para um comercial do Prostatricum 100, outro suplemento para disfunção erétil. No frasco há um desenho que parece representar a próstata. Enquanto isso, no noticiário da Rossiya-1, ficamos sabendo que o premiê alemão Olaf Scholz “se comprometeu totalmente com a América. A Alemanha não consegue enfrentar o aumento do preço da energia. Os culpados são os Verdes. Em breve, a Alemanha vai se transformar num Quênia.”
A geopolítica ocupa uma quantidade de tempo desproporcional na tevê russa. Os telespectadores russos provavelmente são expostos a mais imagens de Antony Blinken, secretário de Estado dos Estados Unidos, e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, do que o próprio público americano ou europeu. A raiva em relação ao Ocidente é palpável e, como tudo na Rússia, profundamente misógina. Um apresentador da NTV chama Ursula von der Leyen de “namorada de Macron” e observa que ela tem a pele seca. Enquanto isso, o novo Melhor Amigo da Rússia é o presidente chinês Xi Jinping, apresentado como um líder mundial viril e bem armado. Muitos programas mostram jatos chineses aparentemente se dirigindo para Taiwan. Talvez para compensar a crescente situação de vassalagem da Rússia em relação à China, o ditador de Belarus, Aleksandr Lukashenko, é mostrado como vassalo da Rússia, o engraçado ajudante de Putin. “Belarus nos procura tanto”, brinca o apresentador, “que já pintaram um tapete vermelho na pista do aeroporto, para não precisar estendê-lo a cada vez.”
No episódio de hoje do programa Moscou, Kremlin, Putin, do canal Rossiya-1, o presidente russo visita uma fábrica de trens. Os operários aparecem perdendo a fala na presença do seu líder, literalmente tremendo diante do “chefe”, como Putin é chamado pelos apresentadores. “Não tenha pressa”, diz o presidente, de maneira gentil, a um operário que parece ter acabado de sujar as calças. “Estamos apenas conversando.”
DIA 4
Baixa uma tristeza quando se assiste tantas horas de tevê russa. Dei para começar a beber mais cedo e troquei os pisco sours por vodca martínis. Há uma parte de mim que quer morrer.
Mas não antes de assistir ao novo programa de Maria Butina no Piervy Kanal. Ela ficou famosa depois de ter sido presa nos Estados Unidos, acusada de espionagem. Deportada, tornou-se membro do Parlamento russo e, naturalmente, apresentadora do seu próprio programa de tevê. (“O programa de hoje é apresentado pelo Erecton Activ. Toda mulher deseja estar perto de um homem forte, forte em todos os sentidos. Apenas 2 999 rublos [cerca de 160 reais].”)
Hoje, a ruiva Butina, vestindo calça e blusa igualmente vermelhas, decide falar sobre Hillary Clinton. Ei, espera aí – quem ainda se importa com Hillary Clinton? Aparentemente, Butina ainda se importa.
Começa uma música tensa. Segundo o programa, Hillary riu “histericamente” quando lhe mostraram fotos da morte de Muammar Kadafi. “Qual é o monstro que reage dessa maneira à morte de uma pessoa?”, pergunta Butina. Aparece um “psiquiatra” e diz: “Sim, ela é um monstro. Mas é porque teve que competir contra os homens.” Trump, que é adorado pela tevê russa, aparece chamando-a de “instável”. “Que mulher terrível!”, exclama o ex-presidente americano.
“Hillary Clinton”, diz o letreiro. “Um tubarão acabado?”
Chega então um suposto especialista em Estados Unidos para comentar sobre a juventude de Hillary: “Ela usava uns óculos enormes e tinha dentes horríveis, então se jogou em cima de Bill Clinton.” Mas Hillary é apenas o aperitivo para o prato principal – a força do mal que controla, de fato, as rédeas do governo mundial. Esse homem é, evidentemente, o bilionário George Soros. “Ele ajudou a Gestapo a prender seus próprios correligionários e confiscar suas posses”, diz um apresentador, ao som de uma música de fundo de gelar a espinha (esse é um argumento da extrema direita neonazista, que não tem prova alguma a respeito). “George Soros – a aranha.”
É claro que a imagem do judeu como um verme ou uma aranha prendendo o mundo na sua teia é uma propaganda antissemita típica e, francamente, não muito imaginativa. Enquanto assisto ao programa de Butina, lembro que meu próprio avô, judeu nascido na Ucrânia, morreu lutando contra o Exército nazista durante o cerco a Leningrado (hoje São Petersburgo). Uma década depois, um fascista chamado Vladimir Vladimirovich Putin nasceu nessa mesma cidade que meu avô defendeu até a morte. O programa de Butina, com seu antissemitismo banal e rasteiro, representa para mim uma terrível profanação da memória de meu avô.
Enquanto isso, no noticiário da NTV, Elon Musk declara: “Todas as notícias são propaganda. As pessoas têm que decidir por si mesmas.” A tevê estatal russa não teria dito melhor.
DIA 5
Quase consigo sentir o gosto da minha liberdade. O tempo está melhorando, a primavera finalmente chegou e parece que a cidade de Nova York inteira me convida a escapar da minha luxuosa cela de prisão. Mas também sinto um asco avassalador, como se uma grossa camada de sujeira cobrisse o colarinho da minha camisa.
Assisto a um programa chamado Para Homens/Para Mulheres. Uma mulher é atacada na rua pelo ex-marido que, auxiliado por seus parentes, também sequestra o filho pequeno. “Caí no asfalto e ele ficou me segurando e me espancando”, diz a mulher. “Perdi meu leite materno. Fui à polícia. A polícia não fez nada.”
“Nikolai bebia muito e continua bebendo muito”, continua a mulher. “Ele fica agressivo e desconta nas pessoas. Eu era sua vítima e tinha que obedecê-lo.”
O lamento da pobre mulher me faz lembrar o programa ao qual assisti alguns dias atrás (agora parece que já se passou uma vida), sobre mulheres sendo perseguidas e espancadas pelos ex-namorados. “Ele tem uma natureza muito agressiva”, disse uma delas sobre o ex-companheiro, um boxeador profissional – assim como a Rússia em 2023. Nos últimos cinco dias, assisti a tantos programas obcecados pelo Ocidente, por Clintons, Soros e Von der Leyens. A Rússia é o amante desprezado, de “natureza muito agressiva”, que desconta sua desumanidade na inocente vizinha ao lado. É isso que a tevê russa, apesar de toda a sua pose e linguagem dúplice, anuncia ao mundo. Como disse a poeta americana Maya Angelou: “Quando as pessoas te mostram quem elas são, acredite.” Seja nas ondas televisivas, ou talvez um dia no Tribunal de Haia, as provas já foram claramente apresentadas.
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