ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Uma visita a Cesare Battisti
Fred Vargas e Eduardo Suplicy na cadeia
Mario Sergio Conti | Edição 34, Julho 2009
Na sua nona viagem ao Brasil, e a primeira depois da queda do avião da Air France no meio do Atlântico, a escritora francesa Fred Vargas viu seu celular ser bombardeado por mensagens de texto. Uns cinquenta amigos queriam saber, antes mesmo que ela chegasse, se a viagem tinha sido boa. Ao desembarcar, em Brasília, ela respondeu a todos com uma mensagem coletiva que dizia, simplesmente: Ufa!
Se Fred Vargas é sintética e expressiva nas mensagens de celular, criativa e nuançada em seus romances policiais, ao falar ela se expressa de maneira cartesiana e, paradoxalmente, engraçadíssima. Historiadora e arqueozoóloga de formação, com especialização em animais domésticos da Idade Média, ela não se contenta em explicar minuciosamente – usando termos da biologia, da medicina e de breviários medievais – como a pulga passou a peste para os humanos, enquanto esses pensavam que a transmissão era feita pelos ratos, e botavam os gatos para caçá-los. Ela é capaz de se levantar e, brandindo o cigarro como uma batuta, imitar a pulga, o rato, o gato e os homens.
Como nas oito vezes anteriores, Fred Vargas veio visitar Cesare Battisti, também ele autor de livros policiais, que está encarcerado no presídio da Papuda. Ela o conhecia tão somente de obas e olás, trocados em festivais de roman noir, quando lhe apresentaram uma petição em defesa do colega italiano. Meticulosa, estudou o dossiê judicial que o levou a ser condenado – à revelia – à prisão perpétua na Itália, acusado que foi de ter participado de quatro assassinatos quando militava na extrema-esquerda italiana. Concluiu que Battisti foi vítima de uma sucessão de erros judiciários, inclusive falsificação de documentos, e pressões políticas. Deixou seus afazeres de lado e, há mais de cinco anos, tenta evitar que o erro se perpetue.
Em Brasília, ela monta seu quartel-general num restaurante ao ar livre, o Bamboo, onde espalha sobre uma mesa o laptop, dois celulares, alguns cadernos, documentos – e procura políticos e juristas dispostos a ouvi-la explicar por que Battisti é inocente. Está sempre acompanhada de sua irmã gêmea, a artista plástica Jo Vargas, e, às vezes, de seu filho Baptiste. Foi ali que, na última terça-feira de junho, ela ficou até as três da manhã, empunhando valentemente uma taça de vinho nacional, destrinchando a peste negra, a gripe espanhola de 1918 e a epidemia de gripe suína.
No dia seguinte, às 7h30, ela tomava café da manhã com Eduardo Suplicy como se viesse de beber Château Pétrus e dormir dez horas. Mais meia hora e lá estava ela, junto com o senador, Jo e um repórter, rumo ao presídio da Papuda, que fica na estrada para Goiânia. Viajaram espremidos porque Suplicy abriu mão, desde que tomou posse, em 1991, do direito de usar um carro do Senado. Dirige ele mesmo um Chevrolet Kadett fora de linha, de uma safra perdida no tempo, sem ar-condicionado. Pilota-o ao estilo Suplicy: velocidade moderadíssima, algo vacilante, escutando a rádio do Senado no volume máximo, falando sobre o Renda Mínima e fazendo longuíssimas pausas para indagar o caminho a pedestres atônitos e, pelo celular, à secretária.
Na visita anterior a Battisti, ao chegar à Papuda, um amigo que o acompanhava anunciou aos carcereiros que lhe abriram a porta: “O senador Suplicy veio se entregar.” Todo mundo riu. Menos ele, que, sem perceber a piada, informou: “Não é verdade, ele está brincando.”
Depois de abraçar Battisti, Fred Vargas instou o preso a sentar de frente para uma ampla janela, para que pudesse contemplar o cerrado, árvores, pássaros. Battisti não quis. “Vocês são os belos pássaros que quero admirar”, disse, referindo-se a Jo e à romancista.
Cesare Battisti quis saber detalhes do seu processo, da situação de suas duas filhas, que Jo Vargas visita com frequência, e da possibilidade de usar um computador para terminar o livro que escrevia quando foi preso, no Rio. Ele fica sozinho numa célula das quatro da tarde às oito da manhã. Durante o dia, pode caminhar num corredor. E se distrai, quando a angústia dá uma trégua, lendo e fazendo exercícios.
O escritor está aflito com a demora do Supremo Tribunal Federal em marcar a data do seu julgamento. “Estou preso no Brasil há dois anos e três meses”, disse ele. “É mais do que fiquei na cadeia na Itália. Já paguei pelos meus erros e não matei ninguém.” Seu advogado Luis Roberto Barroso explica: “Não é razoável que, desde janeiro, quando o ministro Tarso Genro lhe concedeu refúgio político, Battisti continue preso.”
Fred Vargas explicou ao preso o que fazer para se proteger da gripe suína se uma epidemia se espalhar pelo presídio. E, como fez com outros parlamentares, pediu a Suplicy que lhe apresentasse alguém do Ministério da Saúde para discutir o assunto. Em Paris, ela integra um comitê de autoridades sanitárias que estuda medidas preventivas e, no caso de uma mutação do vírus, a adoção de um plano de emergência para evitar uma catástrofe como a gripe espanhola, que vitimou 150 milhões de pessoas.
Dias depois, já de volta a Paris, a escritora leu uma reportagem na Carta Capital sobre o escândalo do Senado. “Suplicy admite ter doado passagens (quem sabe para Freddy Vargas, a escritora que sustenta a inocência de Cesare Battisti)”, escreveu a revista, que faz campanha em defesa da posição do governo de Silvio Berlusconi: o escritor deve ser extraditado e cumprir a pena de prisão perpétua na Itália.
“É uma afirmação imunda, infamante e caluniosa”, reagiu Fred Vargas. “Como tenho todos os recibos das passagens que paguei para viajar ao Brasil, falei com meu advogado para abrir um processo contra a revista.” A insinuação também revela ignorância: a romancista, que não se chama “Freddy”, vendeu centenas de milhares de livros em toda a Europa, mora numa bela casa nas imediações do cemitério de Montparnasse (e não num quarto e sala na periferia) e tem outra casa, do século XVII, na Normandia. Não precisa de passagens do Senado para defender uma causa na qual acredita.