Denard, um "Cão de Guerra" bem diferente dos almofadinhas da Blackwater FOTO: MONTAGEM LUIZ DACOSTA_FOTO FR3_GAMMA_OTHER IMAGES
Vai-se o corsário
Não restou ninguém da linhagem de mercenários que mostravam o rosto
| Edição 14, Novembro 2007
Não foi uma morte à altura do último grande “cão de guerra”. Longe de qualquer perigo, Bob Denard morreu, em 13 de outubro, no obscuro vilarejo de Grayan-et-l’Hôpital, na França, desarmado pela doença de Alzheimer. Há anos, embolsava burocraticamente a pensão de 200 euros (equivalente a menos de 520 reais) que lhe cabia por ter servido na Indochina francesa, ainda com seu nome de batismo, Gilbert Bourgeaud. Faleceu sem lembrar que fez tremer povos inteiros com o nome de guerra: “Diabo Branco”. Ele foi a pessoa em quem Frederick Forsythe se inspirou para escrever o romance Cães de Guerra.
Denard foi o protótipo do mercenário europeu que teve seu apogeu entre os anos 60 e 80, como agente desestabilizador em países recém-libertos das antigas metrópoles. Os “cães de guerra” ora estavam a soldo das grandes mineradoras belgas, dispostas a tudo para não perder seu butim africano, ora garantiam a sustentação de regimes fantoches instalados pela França, ora alugavam sua ferocidade a alguma banda podre da África do Sul do apartheid. Cada um a seu modo, compunham o figurino do ex-militar destemido que, à frente de um punhado de leais camaradas de armas, suja as mãos em missões de alto risco, orquestradas por mandantes ocultos.
Difícil separar, no currículo turbinado de Denard, o mitômano do encrenqueiro, o aventureiro amador do matador de elite, o falso do real – sequer o seu uniforme de coronel francês era verdadeiro. Ainda assim, para quem cruzasse seu caminho em Angola, Biafra, Benim, Katanga, Rodésia ou no Iêmen, ele era o “coronel Bob” ou “coronel Bako”. Denard preferia ser considerado um “corsário da República” (título de sua autobiografia), para deixar claro o tanto de vezes que atuou clandestinamente para servir o Estado francês.
O apogeu dessa cumplicidade subterrânea se deu no longínquo arquipélago das Comores. Ali, para desalento dos franceses, uma de suas últimas colônias proclamou unilateralmente a independência, em 1975, e estabeleceu a República Federal Islâmica das Comores. Bob Denard foi instruído a derrubar Ahmed Abdallah, o primeiro presidente eleito daquele punhado de ilhas na costa oriental africana, e o golpe se deu sem maiores sangrias. Três anos mais tarde, Denard foi novamente convocado – desta vez por empresários sul-africanos descontentes com o homem colocado no lugar de Abdallah. Por 6 milhões de dólares da época, 1978, Denard convocou 46 de seus homens de confiança e reinstalou Abdallah no poder.
Ao longo dos onze anos que se seguiram, Denard foi vice-rei nas ilhas Comores, espécime único de chefe tribal africano e branco. Convertido ao islamismo para casar pela sétima vez, adotou o nome de Said Mustapha Mahdjoub e formou uma guarda pretoriana de 600 homens, todos ex-oficiais europeus. A guarda servia tanto para emparedar como proteger o chefe de Estado do momento. Denard viveu nas Comores como se Rambo e o coronel Kutz de Apocalipse Now tivessem se fundido num mesmo personagem, até esgotar sua utilidade para o Estado francês. Voltou ainda duas vezes ao paraíso perdido, para destronar quem estava no poder, mas, ao final, tornou-se por demais incômodo a seus protetores habituais, e se aposentou.
Como todo mercenário da época, ganhou e perdeu montanhas de dinheiro. Só em honorários de advogados de defesa, nas três condenações de fachada encenadas pela justiça francesa contra ele, gastou um bom quinhão. Mas jamais teve de cumprir um só dia de prisão: a Repúplica não lhe faltou na hora em que seu corsário mais precisou dela.
Homenageado por rappers franceses de origem africana com músicas como Código de Honra e Hardcore 2005, Robert Denard e sua geração atua-vam de forma localizada, indivi-dual e sem estrutura. Foram varridos pelas megacorporações militares privadas de hoje, sem as quais a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos já teria acabado – ou sequer começado. A guarda presidencial de Denard nas Comores, nesse sentido, foi uma espécie de embrião da situação atual. Não que a atuação de exércitos paralelos seja novidade. Trata-se, apenas, de uma nova idade de ouro para esse que é o segundo ofício mais antigo do mundo. O ex-paraquedista e hoje magistrado francês Jean-Marie Vignolles, autor da obra De Carthage à Bagdad: Le nouvel âge d’or des mercenaires [De Cartago a Bagdá: a Nova Idade de Ouro dos Mercenários], analisa essa marcha que começa no Egito dos séculos VII e VI a.C, com os mercenários constituindo a base militar da dinastia reinante. Atenas recrutou arqueiros de Creta, os persas contrataram soldados vindos de fora, e várias foram as monarquias européias da Idade Média que recorreram a guerreiros estrangeiros para contornar as limitações em vigor – os vassalos não eram obrigados a combater fora de suas fronteiras indefinidamente. Sem falar nos condottieri italianos da Renascença, que vendiam sua expertise em troca de dinheiro, títulos ou terras.
A contratação de mercenários só entrou em declínio na Europa, no século XIX, quando os Estados nacionais começaram a exercer o monopólio da força com plenitude absoluta. Assim, a atual irrupção no cenário mundial de potências militares privadas, como a DynCorp, Blackwater ou Kellogg Brown and Root, KBR, apenas retoma o ciclo histórico interrompido. A novidade é a dimensão pantagruélica desses exércitos paralelos. Enquanto na primeira guerra do Golfo havia um agente privado para cada grupo de cinqüenta soldados americanos, hoje as forças se equivalem. Sao mais de 150 mil os prestadores de serviços privados que operam no Iraque e fazem funcionar a máquina de guerra americana. Nem todos atuam com armas na mão – uma parte se ocupa com a construção de hospitais, outra com a abertura de linhas de suprimento, uma terceira com o trabalho burocrático. Mas todos precisam de segurança armada, fazendo com que 177 empresas do ramo estejam em atividade na região.
Com imunidade total plena. “Todos os consultores estrangeiros estarão imunes do processo legal iraquiano”, diz o decreto de número 17, de junho de 2004, emitido pelo homem-forte da ocupação americana, Paul Bremer, antes de deixar Bagdá. Como as empresas também são inimputáveis perante os tribunais americanos por atos cometidos no Iraque, a porta giratória da impunidade começou a ser usada e abusada. Segundo um relatório publicado, em outubro, pelo Congresso americano, a Blackwater, sozinha, já tem no prontuário 196 envolvimentos em incidentes de “escalada do uso de força” no Iraque.
Em suas brochuras publicitárias, a Blackwater se apresenta como a mais avançada em treinamento militar “e outras habilidades”. Policiais de vários estados americanos e do Canadá freqüentam regularmente seu centro de treinamento. Países como a Espanha e o Brasil também já se interessaram em contratar agentes da Blackwater para a segurança de candidatos presidenciais ou, no nosso caso, para ações de combate a seqüestros. A DynCorp, por sua vez, também com vários escândalos no prontuário, já olha para o resto do mundo com apetite. Um de seus agentes no Iraque, Patrick Mahaney, disse que já está aprendendo espanhol, na esperança de integrar a equipe que deverá atuar numa Cuba pós-Fidel Castro.
A diferença de estilo entre um Bob Denard e os mercadores das guerras de hoje é gritante. A começar por Eric Prince, o homem que responde pela Blackwater. Ambos são filhos do exército de seus países (o americano foi membro das Forças Especiais da Marinha), mas nada no visual de Prince sugere vínculos com o métier. Herdeiro de uma das grandes indústrias de autopeças dos Estados Unidos e cunhado da família proprietária da Amway, o empresário de 38 anos circula de terno, camisa branca, gravata sóbria e tem sempre uma Bíblia por perto – é evangélico de primeira linha.
É no gosto pela aventura e pelo perigo que as duas biografias mais se distanciam. Bob Denard deixou sua marca por onde passou – o rastro da violência lhe servia de cartão de visita para a operação seguinte. Já Eric Prince não vai ao front. Atua em reuniões de acionistas e sessões de planejamento estratégico. Cabe aos funcionários da Blackwater matar, ou morrer, por salários que variam de 9 mil a 15 mil dólares mensais. Seus caixões não retornam ao país embrulhados na bandeira americana nem são computados como baixas da guerra do Iraque. O que, para o governo de George W. Bush, que já contabiliza quase 4 000 mortos na guerra, é um refresco.
Bob Denard acharia sem graça esse mundo de mercenários almofadinhas.
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