ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Visita a um ex presidente que perdeu a alma
Desalentado, sem fervor patriótico, mas de lábios umedecidos
Daniela Pinheiro | Edição 13, Outubro 2007
Itamar Franco esperava na porta da sala, às 15h30 em ponto, conforme o combinado. Antes mesmo de alcançar a mesa de reuniões, avisou: “Me chame de Itamar e de você. Não sou mais presidente, não sou senador, não sou ministro”. Usava terno cinza, camisa de listas, gravata creme com estampas azuis e um broche com as bandeirinhas cruzadas de Minas Gerais e do Brasil. No pulso esquerdo, um lustroso relógio dourado. Mais magro que nos tempos da presidência, abandonou a armação estilo aviador e agora adota óculos ovalados pretos, da marca Giorgio Armani. O topete ainda se equilibra firme, mas dá a impressão de estar um pouco mais ralo.
Em seu escritório, no último andar do prédio do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, em Belo Horizonte, onde desde março ocupa o cargo de presidente do Conselho de Administração, Itamar havia separado uma pilha de papéis. Eram recortes de jornal, um livro, Xerox de documentos e cinco folhas digitadas por ele próprio, nas quais registrara seus pensamentos sobre temas atuais, como éticas e assistencialismo. Mal se sentou, apressou-se em sacar uma dessas folhas.
Era um trecho copiado de um artigo de frei Betto. As primeiras sete linhas estavam realçadas. “Isso é o resumo do que eu sinto hoje. Vou ler só um pedacinho.”
E começou: “Sofre-se, hoje, de utopia deteriorada, ceticismo, desencanto, que induzem muitos a se acomodarem tristes em seu canto“. Tirou os olhos do papel e comentou: “É isso mesmo. Eu estou no canto, eu estou sentado no canto”. Prosseguiu:
“O que resta da esperança quando já não cremos em líderes, partidos, doutrinas e ideologias? O que resta quando, à nossa volta, se fecham todas as portas e janelas?” Fez uma pausa, e finalizou: “Resta à amargura, o desalento, a repulsa ao poder“.
Há quinze anos, Itamar assumiu interinamente a presidência, em substituição a Fernando Collor, a quem se refere como “presidente Fernando”. Já o xará que o sucedeu é “Fernando Henrique”. Nos dois anos e dois meses de seu governo, diminuíram sensivelmente os escândalos e as denúncias de corrupção. Ao sair do Planalto, Itamar foi eleito governador de Minas Gerais, assumiu duas embaixadas – em Lisboa e Roma – e tentou, sem êxito, voltar ao poder. Com as mãos inquietas, pegando aqui e ali nos papéis, falou sobre a cena política: “Eu tinha certeza de que o Renan ia ser absolvido. Era tão óbvio. Um governo que vive de barganha, que emprega especialistas em barganhar, em vender promessas e favores… Isso tudo me desanima. Eu perdi o fervor político. Ainda tenho o patriótico, mas não sei até quando”.
A bronca com o governo Lula é evidente. Mencionou nomeações de ocasião, bandalhas administrativas, descasos institucionais, ministérios de ficção e politicagens variadas. Em sua opinião, o governo está acabado. “Espero que o professor Mangabeira Unger ainda possa melhorar alguma coisa”, disse. Para Itamar, a última inteligência do governo Lula foi José Dirceu, com quem ele conversa esporadicamente por telefone.
O amargor se acentuou quando fala do chanceler Celso Amorim, que esteve com Lula num comício em Juiz de Fora, depois de Itamar declarar apoio a Geraldo Alckmin. “Aquilo foi uma provocação”, diz. “Nunca tinha visto ministro das Relações Exteriores em palanque. Aí, o sujeito vem para a minha cidade. Ministro meu indicado por mim a pedido do José Aparecido… Deve ter esquecido a própria história.” Em seguida, criticou Lula: “Ele fica dizendo que só reconhece, como ex-presidente, o Sarney. Que conversa fiada é essa? Dizer que é o único ético do país! “Tudo dele começa com ‘pela primeira vez neste país”. Daqui a pouco, dirá que foi ele quem abriu os portos, e não dom João VI”.
No ano passado, Itamar anunciou que sairia candidato à presidência por seu partido, o PMDB, mas desistiu ao receber uma pesquisa que lhe dava apenas 6% das intenções de votos, menos da metade de Anthony Garotinho. Depois, manifestou o desejo de concorrer ao Senado.
O partido preteriu seu nome. No mês passado, sua última indicação política, o engenheiro José Pedro Rodrigues, perdeu a presidência de Furnas para o arquiteto Luiz Paulo Conde, que entende tanto de energia elétrica quanto de dietas.
Itamar abdicou de recuperar um papel de político de destaque: “Seria preciso ter força, ânimo, e acreditar”. Ilustra seu estado de espírito contando o encontro com um poeta mineiro. “O Roberto Medeiros me perguntou: ‘Itamar, cadê a sua alma? ‘ Eu fiquei pensando. E vi que a minha alma está perdida por aí. Eu ainda não a encontrei”, concluiu pesaroso.
Entrou na sala o ex-ministro Henrique Hargreaves, seu escudeiro desde tempos imemoriais. “Isso são horas?”, perguntou o ex-presidente, batendo o indicador no mostrador do relógio. Durante o governo Itamar, estourou no Congresso o caso dos anões do Orçamento. A certa altura, Hargreaves, então chefe da Casa Civil, teve seu nome envolvido. Itamar o afastou imediatamente. Hargreaves reassumiu somente quando toda suspeita havia sido dissipada.
Lembraram-se de que foi Itamar Franco o primeiro governador de oposição a apoiar a candidatura de Lula à presidência. “A pessoa que eu conheci, tinha uma coisa bonita nele, uma simplicidade, era um ser humano afável. Agora ele perdeu toda a humildade, avançou socialmente, e, tristemente, virou um arrogante”, disse Itamar.
Apesar de ter direito a vencimentos como ex-prefeito e ex-governador, Itamar os dispensou. Seus ganhos se resumem a uma aposentadoria proporcional como senador e ao salário de dez mil reais do BDMG. Antes de assumir o cargo de conselheiro no banco, Itamar vivia nas profundezas do ostracismo.
Passava as horas cuidando da organização do Instituto Itamar Franco, em Juiz de Fora, duas salas alugadas – pagas do seu bolso – que abrigam um pequeno acervo de vídeos, discursos e fotos sobre sua trajetória política. “Eu não sou o Fernando Henrique, que consegue doações.” Os visitantes, bastante eventuais, são geralmente alunos de alguma escola da cidade.
No âmbito conjugal, a vida fluía (e flui) em águas tranqüilas. Há seis anos está casado com a major da Polícia Militar Doralice Lorentz, de 42 anos. Conheceram-se quando ela trabalhava como sua ajudante-de-ordens no Palácio da Liberdade, à época em que foi governador de Minas, entre 1999 e 2003. Como ex-presidente, Itamar, hoje com 77 anos, tem direito a ajudante-de-ordens e motorista. Doralice continua a desempenhar a primeira tarefa, pela qual é paga mesmo depois da união, comemorada com um jantar para amigos íntimos e familiares no apartamento de Belo Horizonte.
O casal mantém apartamento também em Juiz de Fora. Quase todo fim de semana, Itamar e Doralice voam para o Rio, onde se hospedam no Leme, num três-quartos emprestado. No balneário, relaxam e passeiam de mãos dadas pelos shoppings centers. “O Itamar adora shopping, né, Itamar?”, perguntou Hargreaves. “É, gosto, sim. Tem muita livraria, a gente passeia. Gosto muito”, confirma o ex-presidente. Também costuma sair com o irmão, que é médico, e almoçar na churrascaria Porcão. Ultimamente, anda pensando em visitar a filha nos Estados Unidos (a outra mora no Espírito Santo). A última vez em que saiu de férias já faz quase dois anos. Ele e a mulher passaram duas semanas em Cabo Frio.
Um político do PSDB mineiro lembra como foi a indicação do ex-presidente para o BDMG: “O Itamar pediu que lhe arrumassem alguma coisa, estava se sentindo desprestigiado, esquecido lá em Juiz de Fora. O Aécio foi muito pragmático. É melhor ter o Itamar perto e satisfeito do que distante e falando mal da gente”. A função exige a presença dele em pelo menos uma reunião por mês. “Eu venho mais vezes porque trabalho em vários projetos diretamente com o presidente do banco”, explicou.
Uma secretária veio trazer uma bandeja com suco de pêssego light, café e pasteizinhos fritos. Só Hargreaves come. O assunto nessa hora tinha rumado para Fernando Henrique. “O sucesso é solidário e o fracasso é solitário”, sentenciou Itamar, insistindo em que é preciso provar aquele pastelzinho. Enumerou conquistas de seu governo que acredita terem sido faturadas por outros políticos. Citou o caso dos medicamentos genéricos – “Quem começou isso foi o meu ministro da Saúde, o Jamil Haddad” -, que caiu na conta de José Serra. Lembra também o que chama de “distorção da CPMF”; a “contribuição provisória”, inventada em sua gestão, deveria durar apenas até 1994. Mas nada se compara ao que houve com o Plano Real. Ele reclamou: “Falam assim: ‘Esse Itamar é um bobo’. Vai ver que eu sou mesmo. Eu deixei o Fernando Henrique criar essa mística toda em torno dele”. Limpou a garganta e seguiu em frente: “Quem fez tudo no Real foi o Ricupero”. (Rubens Ricupero foi seu ministro da Fazenda entre março e setembro de 1994.)
O ex-presidente diz que lê pouco jornal, mas acompanha o noticiário pela Globo News. Também gosta de programas do History Channel. Novelas, seriados não são com ele. “Outro dia, veio um ex-ministro meu aqui e me perguntou se eu sabia quem tinha matado a Taís. E eu sei lá quem é Taís? Depois fui ver que é a moça de uma novelinha. Esse meu ministro falou que estava mais interessado em saber quem matou a Taís do que em saber do Renan”, se espantou.
Há quem diga que lhe sobraram os estereótipos: o Fusca, o pão de queijo e o suposto desdém pela vida em Roma. Ele retruca. “Um dia, vi um sujeito falar: Ai, que saudade de pão de queijo…’ Eu perguntei: ‘Cê tá com saudade de mim ou é da comida?'” Quanto ao Fusca, sua visão é mais do que pragmática. Referindo- se ao atual ministro do Desenvolvimento e ex-executivo da Volkswagen, diz: “Pergunta ao Miguel Jorge o que ele acha do Fusca. A indústria automobilística brasileira estava no fundo do poço. A idéia do carro popular reviveu a indústria no Brasil”. A respeito da embaixada na Itália, Hargreaves tomou a frente para responder: “Sabe o que foram todas aquelas críticas? Esse pessoal do Itamaraty ficou com bronca do Itamar porque ele não oferecia jantar, recepção, esses rapapés”. O ex-presidente acompanha de soslaio: “Olha para mim: você acha que tem alguém no mundo que não ia gostar de Roma? Agora, essa coisa de jantar, isso eu não dava mesmo, não”.
É o final da conversa, mas ele ainda quer esclarecer um ponto: “Falam que eu guardo o ódio na geladeira. Eu não tenho ódio, mágoa, nada, de ninguém. Nos últimos anos, aprendi a umedeceros lábios”. É enigmático. “Está na Bíblia. Você umedece os lábios, mas não fala.” Na porta, Itamar se despede com dois beijinhos. Sente-se, de leve, um cheiro de lavanda masculina que remete a alguma década distante: “Pode escrever mal de mim. Eu não ligo, não”.