Maus presságios
Maus presságios (II)
Um cinema como o brasileiro, sustentado artificialmente por recursos provenientes de isenção fiscal, não deveria ter como pressuposto a meta de criar condições que permitam ao menos uma aproximação do ideário de Ettore Scola?
Para Scola, o cinema “partia da vontade de contar nosso país. De contar, através do cinema, a história contemporânea da Itália. Este País, em especial, nunca foi avaro com os autores.
Não sei se este blog conta com Walter Lima Jr. entre seus leitores. Ou se terá sido mera coincidência o fato dele ter mandado no dia seguinte à publicação do post Maus presságios, há 3 semanas (29/11/2012), o link para o curta-metragem ’43-‘97, dirigido por Ettore Scola, e a reprodução de um trecho da matéria de Luiz Carlos Merten, publicada no Estado de São Paulo, em agosto de 2011, sobre a decisão anunciada por Scola, aos 80 anos, de não fazer mais filmes.
Conhecendo o fino senso de humor do Walter, e sua capacidade de fazer observações tão argutas quanto sutis, arriscaria dizer que foi a maneira que ele encontrou de manifestar sua opinião sobre o post Maus presságios. Ou estarei enganado?
Se outros argumentos não bastarem, talvez o caso de Ettore Scola [foto ao lado] possa servir para ajudar o futuro secretário de Cultura do Rio de Janeiro a repensar seus planos. Afinal, Sérgio Sá Leitão insiste, por um lado, em promover ações cujo objetivo é atrair produções estrangeiras para a Cidade, como se isso representasse um benefício real para a economia do setor cinematográfico e do município, e por outro tem na cabeça um modelo de produção dicotômico que pretende diferenciar produções que “visem ao lucro” das “sem ambições comerciais”, para usar as palavras dele.
Sá Leitão deve conhecer a obra de Ettore Scola, mesmo sem poder se lembrar, por ser jovem demais para tanto, do sucesso que ele alcançou, em 1974, com Nós que nos amávamos tanto, ao qual se seguiram, entre mais de 20 filmes que lhe valeram reconhecimento crítico e sucesso comercial, Feios, sujos e malvados (1976), Um dia muito especial (1977), Casanova e a revolução (1982), O baile (1983), A família (1987), O jantar (1998).
Quem assistir a’43-‘97 (são apenas 8’54”), episódio do longa-metragem Os curtas italianos, verá a sala de cinema servindo de refúgio para um menino perseguido e a passagem do tempo ocorrendo através dos filmes projetados – de O grande ditador e Roma, cidade aberta, a Ladrões de bicicleta, Os eternos desconhecidos, Aquele que sabe viver, O leopardo, Amarcord, Cinema paradiso etc. – filmes do período áureo do cinema italiano, em suma. E no final, o reconhecimento de que a libertação dos campos de concentração foi fugaz, perseguidos do passado tendo sido substituídos por novas vítimas do racismo.
Há um viés nostálgico em ’43-’97, sem dúvida. Mas é um sentimento compreensível diante da grandeza do cinema italiano nas décadas seguintes à Segunda Guerra e da crise que se seguiu.
A produção de filmes nacionais, na Itália, por acaso se beneficiou da transformação do País em backlot do cinema americano? Os subsídios dados aos investimentos americanos feitos na Itália, principalmente a partir da década de 1970, teriam fortalecido de alguma forma o produção italiana de filmes? A resposta é um enfático não, muito pelo contrário – essas são justamente duas das causas que levaram à liquidação do cinema nacional italiano. Ainda assim, esses foram alguns dos termos que pautaram a atuação de Sá Leitão à frente da RioFilme. E agora ele anuncia que fará o mesmo ao acumular a Secretaria Municipal de Cultura. O cinema brasileiro estará condenado a seguir os passos que levaram à derrocada do italiano?
A situação em seis países europeus, descrita no relatório da Unesco, publicado em 1950, continua inalterada, se não agravada, e não difere essencialmente do que ocorre no Brasil: “O grande número de filmes americanos baratos disponíveis… além de agravar o déficit de dólares, é apenas um dos fatores prejudiciais ao desenvolvimento de indústrias nacionais produtoras de filmes. O crescimento dessas indústrias, incapazes de recuperarem os investimentos feitos nos filmes que produzem, é atrofiado e elas não conseguem atender a demanda do mercado nacional. Os exibidores são levados, portanto, a dependerem para sua existência de filmes estrangeiros, em grande parte americanos.”
A ventania da história não poupou um diretor da estatura de Scola e o levou a encerrar sua carreira por vontade própria. É verdade que uma das razões foi Silvio Berlusconi. Enquanto ele estivesse no poder, Scola declarou que não faria mais filmes. Mas mesmo depois dele ter deixado de ser primeiro-ministro, Scola manteve sua decisão, conforme declarou aos jornalistas no Festival de Torino, no qual foi homenageado há dias. (“Ettore Scola, carpinteiro da imagem”, Cintia Bertolino, O Estado de S.Paulo, 5 de dezembro de 2012 Caderno2 | D3). Talvez estivesse pressentindo a possibilidade de Berlusconi voltar ao poder que vem de ser anunciada.
Além dessa razão política “há requisitos de produção e distribuição com os quais não posso mais me identificar”, declarou Scola. “Para mim, é crucial preservar a liberdade de escolha, a liberdade de desistir. Eu estava começando a jogar obedecendo as regras que não permitiam mais que eu me sentisse livre. Hoje em dia é o mercado que escolhe por você. Sempre foi um fator importante, mas havia mais espaço para autonomia. Produtores tinham mais disposição para experimentar e correr riscos.”
Não será por um cinema pautado por valores semelhantes a esses que valerá a pena trabalhar? O mercado existe e é um “fator importante”. Mas a “liberdade de escolha” do autor não pode ser descartada e é essencial preservar a “disposição para experimentar e correr riscos”.
Ou queremos um cinema pasteurizado, repetindo fórmulas tão consagradas quanto gastas, em que predominam “requisitos de produção e distribuição”, sem “autonomia”, obediente a “regras” e aos ditames do mercado?
Um cinema como o brasileiro, sustentado artificialmente por recursos provenientes de isenção fiscal, não deveria ter como pressuposto a meta de criar condições que permitam ao menos uma aproximação do ideário de Ettore Scola?
Para Scola, o cinema “partia da vontade de contar nosso país. De contar, através do cinema, a história contemporânea da Itália. Este País, em especial, nunca foi avaro com os autores. Sempre forneceu inspiração, histórias, assuntos. Por que não é uma sociedade banal, não é neutra, é repleta de defeitos, repleta de falta de valor. Mas de qualquer modo creio que hoje eu teria feito um filme sobre a crise; e também sobre os terremotos, que não são apenas eventos naturais, mas são eventos desejados e devidos a má administração, a má consciência de construtores. Portanto, são todos temas muito interessantes para fazer um filme.”
Com meus agradecimentos a Walter Lima Jr., segue uma pequena seleta Ettore Scola que talvez sirva de inspiração para o próximo secretário de Cultura:
“Com certeza, o cinema pode fazer – e essa é uma grande arma do cinema – pode interferir na mente das pessoas que veem o filme. Isto é, o filme pode colocar perguntas ao público que de outro modo não seriam feitas, pode criar dúvidas que de outro modo não teria; e com certeza essa função do cinema, na qual me reconheço totalmente, creio que nesse sentido modifique, possa modificiar a mentalidade.”
“Filmes ruins sempre prestam um péssimo serviço ao cinema. Desafeição que os diretores mais jovens tiveram para contar o próprio País, também. Se dedicavam mais à autobiografia, ou à imitação de outras culturas ou de outras linguagens. E procuravam fazer, então, filmes que depois iam bem também na televisão, inclusive por que a televisão ajudava a realizá-los, a produzir os filmes. Mas é preciso reconhecer que nas últimas temporadas há uma certa inversão. No que diz respeito ao cinema italiano, me parece que os diretores redescobriram o gosto, o prazer de contar a Itália. Daí um filme como Il divo [Paolo Sorrentino, 2008], ou Gomorra [Matteo Garrone, 2008], ou outros que foram lançados, nos quais há de novo a face da Itália através do cinema.”
“A globalização podia inclusive ter fins nobres e úteis, de igualdade, de melhor distribuição da riqueza e das responsabilidades. E em vez disso, frequentemente assistimos ao achatamento, à permanência de certas diferenças de distribuição de riqueza, um País diferente do outro. É difícil dizer que Quem quer ser um milionário [Danny Boyle, 2008] é um filme indiano. É um filme que conta uma história indiana, de personagens indianos, mas com uma cultura europeia, anglo-saxã. Donde também vão bem essas operações. Não creio, porém, que sejam o espelho de uma determinada cultura.”
“Não sou tão presunçoso a ponto de achar que minha voz deve continuar a gritar, por que é necessária, indispensável. Não. Existem os jovens que devem fazê-lo, o fazem, começam, ou recomeçam a fazê-lo.”
A entrevista completa de Scola pode ser vista abaixo
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Após uma pausa de 4 semanas, o blog voltará à ativa em 24 de janeiro de 2013.
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