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    Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Declaração à imprensa na Inglaterra. | Foto: Ricardo Stuckert/PR Foto: Ricardo Stuckert/PR

anais da comunicação

Menos Lula na TV Brasil

Emissora acaba com aparições surpresa do presidente, mas ainda tem dificuldades para se livrar do legado bolsonarista

Luigi Mazza | 15 jun 2023_17h40
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No dia 5 de junho, os telespectadores que assistiam ao seriado Segredos da Vida de um Centenário, na TV Brasil, não conseguiram concluir, afinal, qual é a receita da longevidade. Isso porque, quando estava na metade, o programa foi interrompido para dar lugar a um discurso de Lula transmitido ao vivo do Palácio do Planalto, por ocasião do Dia do Meio Ambiente. Encerrada a fala presidencial, o episódio não foi retomado e ficou por isso mesmo. No dia seguinte, repetiu-se a dose: as crianças que assistiam a Tem Criança na Cozinha, programa infantil veiculado pela emissora pública, subitamente se depararam com Lula discursando para empresários do agronegócio no Bahia Farm Show, em Luís Eduardo Magalhães (BA).

Mas, ao menos desde segunda-feira (12), a situação mudou. “Hoje olhei e o Lula já não estava mais”, disse Hélio Doyle, presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), apontando para um dos monitores de tevê pendurados na parede de seu escritório, onde recebeu a piauí, em Brasília. Depois de quase seis meses de governo Lula, a TV Brasil começou a se livrar de uma das heranças deixadas pela gestão Bolsonaro: a mistura entre comunicação pública e governamental, que pôs a emissora de tevê a serviço do Planalto.

O problema data de 2019, quando o governo federal fundiu EBC – empresa pública à qual pertence a TV Brasil – e NBR – canal de tevê que fazia divulgação do governo. O que antes era NBR passou a se chamar TV Brasil 2. Os dois canais continuaram existindo separadamente, mas, na prática, viraram uma coisa só: quase diariamente, Bolsonaro (e, nos tempos mais recentes, Lula) aparecia para interromper a programação da TV Brasil, canal que deveria representar os interesses da sociedade civil, e não dos governantes.

As interrupções, quase nunca justificáveis do ponto de vista jornalístico, eram o lado mais visível do aparelhamento que Bolsonaro promoveu na EBC. Nos bastidores, havia problemas mais graves. Criada em 2007 com a ambição de ser uma empresa pública e independente do governo – nos moldes do que é a BBC para os ingleses e a RAI para os italianos –, a EBC passou a conviver com casos de censura e perseguição a repórteres.

“O que senti quando cheguei foi um ambiente traumatizado”, disse Doyle, de 72 anos. O presidente da EBC, nomeado em fevereiro, fez carreira como jornalista e, nos últimos anos, ocupou cargos políticos no governo do Distrito Federal. Além de inúmeras denúncias de assédio moral e do clima de desconfiança entre chefes e servidores, Doyle encontrou uma empresa em situação frágil. Falta mão de obra (o último concurso público para a EBC foi feito em 2012) e equipamento. O orçamento prevê 30 milhões de reais para investir este ano – quantia que, segundo Doyle, é pequena para uma instituição com 1,8 mil funcionários e quatro praças, que administra dois canais de tevê, emissoras de rádio e um portal de notícias.

O presidente da EBC diz que essa precariedade explica a demora em fazer mudanças na empresa. As aparições surpresa de Lula na TV Brasil aconteciam desde janeiro. No começo, até posses de ministros (com ou sem a presença de Lula) eram transmitidas pela emissora. Depois se decidiu que somente eventos com Lula seriam televisionados. Em maio, o funil apertou um pouco mais: uma circular interna avisou que programas jornalísticos não seriam mais interrompidos pelo Planalto. Demorou mais um mês até que, enfim, Doyle aplicasse a mudança sobre toda a grade de programação.

A nova gestão pretendia reformular a grade da TV Brasil e da TV Brasil 2 até maio. Quando isso fosse feito, aproveitaria para separar de vez os dois canais e acabar com as interrupções da programação. A ideia era matar dois problemas de uma só vez. Mas, como confessa Doyle, “alguns dos planos que tínhamos eram irrealistas”. A nova grade de programação não ficou pronta em maio. A previsão é de que só saia no final de julho.

A rigor, a EBC poderia ter acabado com as aparições de Lula ainda em janeiro. Mas havia, segundo Doyle, outro problema. “Essa compreensão da divisão [entre comunicação pública e governamental] não é universal nem mesmo no governo.” Ele conta que, no começo do ano, ouviu uma reclamação de um aliado de Lula: “O presidente tá aparecendo na GloboNews, na CNN, na Record News, e a TV Brasil tá passando desenho animado?” Segundo Doyle – que exibe em seu escritório fotos ao lado de Lula e Geraldo Alckmin –, o governo nunca soube separar bem as coisas. “A gente ficou meio amarrado.” 

 

Até agora, as mudanças da gestão Lula na EBC foram superficiais. No primeiro mês de governo, quando a presidência da empresa era temporariamente exercida por uma jornalista da casa, Kariane Costa, bolsonaristas que ocupavam cargos de confiança foram demitidos. A TV Brasil tirou do ar o programa Soldados de Caxias, que explicava o funcionamento do Exército Brasileiro. Entendeu-se que o seriado, que tinha estreado havia apenas um mês, era uma marca da militarização da EBC no governo Bolsonaro. Recentemente, uma equipe da comunicação do Exército foi à EBC pedir a Doyle que retomasse a exibição do programa. Ele respondeu que analisaria a proposta.

A novela A Terra Prometida, terceira a ser comprada da Record pela gestão Bolsonaro, continuou sendo exibida na TV Brasil até fevereiro, em respeito aos telespectadores e, claro, à audiência que ela trazia para a emissora. A dramaturgia e os programas infantis sempre foram os carros-chefe da programação. Outra novela entrou no lugar: Os Imigrantes, produzida pela Band nos anos 1980. Como ela já havia sido exibida pela TV Brasil anos atrás e o contrato ainda não tinha expirado, a operação saiu de graça.

Jornalistas da EBC ouvidos pela piauí criticam a demora da nova gestão em fazer mudanças na estrutura da empresa. Cobram, entre outras coisas, a recriação do Conselho Curador, um colegiado formado por representantes da sociedade civil cuja função é avaliar a programação dos veículos da EBC e propor mudanças, seguindo o critério do interesse público. Uma espécie de ombudsman empoderado: nas gestões Lula e Dilma, o conselho tinha o poder de afastar diretores da empresa. Assim que virou presidente, Michel Temer acabou com o colegiado por meio de uma medida provisória. Hoje, para recriá-lo, seria preciso aprovar um novo texto no Congresso. O governo até agora não priorizou o assunto.

O Conselho Curador é uma ferramenta que, ao menos em tese, permite conter o nível de governismo da EBC. Um problema que persiste hoje, mesmo com o fim das interrupções de Lula na programação. A live que o presidente fez nessa terça-feira (14), por exemplo, embora não tenha sido transmitida pela TV Brasil, foi compartilhada no Facebook da emissora no canal público.

Mas a grita maior entre os funcionários aconteceu em abril, quando a empresa promoveu uma dança de cadeiras que resultou em perda de cargos para o jornalismo. A redação da EBC em São Paulo, que antes tinha cinco chefes coordenando os repórteres, hoje tem um. Em Brasília, a maior das praças, a TV Brasil tinha cinco chefes e agora tem dois. “Isso trouxe muito caos. Parece que só vai mudar quando der problema e algum programa não for ao ar”, lamenta uma repórter da emissora em Brasília. Os jornalistas têm tido dificuldade até na hora de agendar férias.

A perda de cargos teve impacto, sobretudo porque já faltavam até mesmo repórteres. Com a mistura da TV Brasil 1 – o canal público – e da TV Brasil 2 – a comunicação oficial – é comum que, para dar conta do dia a dia, um mesmo jornalista faça as duas coisas. “O repórter acaba tendo uma crise de identidade. Não sabe se o papel dele é questionar, ter senso crítico, ou se é só prestação de serviço”, diz um jornalista da TV Brasil em São Paulo. “A pauta governamental acaba preponderando.”

Sindicalistas da EBC conseguiram uma reunião no começo de maio com o secretário executivo da Secom, Ricardo Zamora, e Doyle. A pauta era a extinção de cargos do jornalismo, mas os servidores aproveitaram a ocasião para reclamar que ainda havia bolsonaristas ocupando cargos de confiança na empresa. Queriam que Doyle os afastasse. Seguiu-se uma discussão exasperada e Zamora pediu então que os sindicalistas enviassem uma lista de quem eram os tais bolsonaristas.

Dito e feito. Depois da reunião, o grupo montou e enviou para Zamora e Doyle, num documento Word, uma lista com 32 nomes de servidores supostamente alinhados a Bolsonaro. Ao lado dos nomes, uma lista de acusações. Foram relatados casos de assédio moral, mas as denúncias, em sua maioria, eram vagas. Um gerente da TV Brasil foi apontado apenas como “adesista do bolsonarismo”; uma coordenadora da tevê supostamente “assumiu publicamente ser a favor do movimento antivacina”; uma outra “vestia camiseta do Brasil na redação e comemorava as datas” como o Sete de Setembro.

Doyle diz ter achado a lista “subjetiva e pouco fundamentada”. “Tinha inclusive pessoas que sei que não são bolsonaristas”, afirma o presidente da EBC. Quando vazou a notícia de que havia uma lista, um grupo de dez funcionários procurou Doyle, preocupados com a possibilidade de serem demitidos. Ele diz que os tranquilizou. “Os bolsonaristas que estavam aqui por indicação política, pessoas de fora do quadro, já saíram – ou porque quiseram, ou porque foram demitidos. Hoje, quem continua em cargos de confiança são empregados da empresa. E qual é nossa posição? O empregado público trabalha pra qualquer governo, não tem que escolher. Eles estão fazendo o trabalho normalmente.”

 

A diretoria da EBC marcou para 24 de julho, uma segunda-feira, a separação definitiva entre comunicação pública e governamental. A antiga NBR, hoje chamada de TV Brasil 2 – nome que produz uma confusão natural nos telespectadores –, será rebatizada. Passará a se chamar Canal Gov e terá uma identidade visual diferente da TV Brasil. Na mesma data, serão anunciadas as novas programações dos dois canais (hoje, o canal governista, quando não está mostrando Lula, está reproduzindo o que passa na TV Brasil).

A principal mudança na TV Brasil será a extinção de todos os telejornais, exceto o da noite – que, em vez de trinta minutos, passará a ter noventa. Muitos jornalistas da EBC leem essa mudança como um sinal de que a empresa está mais preocupada em fazer comunicação do governo do que uma cobertura crítica. Hoje, a TV Brasil tem telejornais locais em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, além de um telejornal nacional (Repórter Brasil) com edições à tarde e à noite. O programa noturno tem sua melhor audiência no Distrito Federal, onde vem marcando 0,43 ponto no Ibope – o equivalente a cerca de 4,2 mil domicílios.

“O jornalismo pra nós é importante, é fundamental, mas a carência [de funcionários] no jornalismo aparece mais do que em outras áreas”, justifica Doyle. “Nossa ideia é concentrar esforços num único telejornal. Ou seja: em vez de fazer três ou quatro telejornais mais ou menos, vamos fazer um bom. Não é a melhor solução, mas não havia outra.”

Para amenizar a perda, a nova grade horária deve incluir um programa em que serão comentadas as manchetes do dia. Também se discute a criação de um programa de checagem de informações, para desmentir fake news de forma didática. O Sem Censura, que até há pouco tempo era um programa semanal de exaltação do governo Bolsonaro, passará a ser diário, apresentado pela atriz Cissa Guimarães. A responsável pela nova grade é Antonia Pellegrino, roteirista que assumiu, em fevereiro, a diretoria de Conteúdo e Programação da EBC.

Quanto às novelas, ninguém sabe ainda o que fazer. O último episódio de Os Imigrantes vai ao ar em novembro. “Estamos discutindo ainda o que botar no lugar. A gente não disputa audiência do ponto de vista comercial. Não vai ter Big Brother. Mas a gente quer audiência. E novela é um ponto alto de audiência aqui”, reconhece Doyle. O difícil é que, para tudo, faltam dinheiro e profissionais. “Nós temos propostas de coprodução de seriados, novelas, filmes, mas não temos como entrar com a nossa parte no acordo”, explica o presidente da EBC. “Hoje, se a gente quiser comprar um programa, não tem orçamento. E se a gente quiser produzir, temos carência de pessoal e equipamento.”

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