minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    A grande aventura

questões cinematográficas

Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido (parte 3)

Não há registro, na documentação da UNESCO, da resposta de Reichenbach à carta, de março de 1962, em que é convidado para vir ao Brasil em “missão” para orientar “o trabalho de um grupo de jovens realizadores”. Mas, um mês e meio depois, o “especialista” continuava indefinido, como revela carta escrita por Henny de Jong, da Divisão de Técnicas de Comunicação de Massa, da UNESCO, no final de abril, perguntando a Arne Sucksdorff se ele poderia aceitar a “missão”. Ou seja, deduz-se que Reichenbach recusara e Sucksdorff estava sendo convidado, sem ter sido indicado inicialmente pelo governo brasileiro, nem considerado até esse momento.

| 01 nov 2012_16h19
A+ A- A

V – Azarão

Não há registro, na documentação da UNESCO, da resposta de Reichenbach à carta, de março de 1962, em que é convidado para vir ao Brasil em “missão” para orientar “o trabalho de um grupo de jovens realizadores”. Mas, um mês e meio depois, o “especialista” continuava indefinido, como revela carta escrita por Henny de Jong, da Divisão de Técnicas de Comunicação de Massa, da UNESCO, no final de abril, perguntando a Arne Sucksdorff se ele poderia aceitar a “missão”. Ou seja, deduz-se que Reichenbach recusara e Sucksdorff estava sendo convidado, sem ter sido indicado inicialmente pelo governo brasileiro, nem considerado até esse momento.

Por que Sucksdorff, e não Reisz ou outro da lista? Sabendo que a UNESCO é uma agência da ONU, teria pesado de alguma forma a proximidade dele com Dag Hammarskjold, secretário-geral das Nações Unidas, morto tragicamente em setembro do ano anterior?

Oito anos haviam passado desde as premiações de e os filmes de Sucksdorff continuavam conhecidos apenas em âmbito restrito. Escrevendo em 1957, Paulo Emílio os incluíra entre “os produzidos fora dos quadros industriais, por exemplo os primeiros Buñuel ou os Fischinger [Oskar Fischinger, diretor de filmes abstratos animados] ou os que não conseguem distribuição, como La Règle du Jeu, The Quiet One, […], que só poderão ser vistos pelos interessados através da ação da Cinemateca.”

Quando Siegfried Kracauer publicou, em 1960, Theory of Film – The Redemption of Physical Reality (New York: Oxford University Press), fez referências apenas a dois filmes de Sucksdorff, um de 1946, outro de 1951 – Sinfonia de uma cidade e O vento e o rio, filmado na Caxemira, deixando de mencionar . Citados na ilustre companhia de Rien que les heures, de Alberto Cavalcanti; Berlim – Sinfonia de uma grande cidade, de Walther Ruttmann; A propósito de Nice, de Jean Vigo, e Terra sem pão (Las Hurdes), de Luis Buñuel, todos feitos entre 1926 e 1932, quem não soubesse que Sucksdorff continuava ativo, fazendo filmes, poderia pensar que tivesse mudado de profissão ou até não estivesse vivo.

As referências feitas por Kracauer confirmam, porém, que passados quatorze anos o prestígio adquirido, a partir de 1946, com Sinfonia de uma cidade, não se diluíra. E a ausência de qualquer menção a , parece confirmar que os filmes de Sucksdorff eram pouco conhecidos.

Kracauer situa Sucksdorff na “tendência realista” do cinema, voltada para documentários entendidos como “relatos pictóricos que trariam para primeiro plano aspectos escondidos da natureza,” contando “‘histórias’ que quase não se destacam do fluxo de impressões circundantes”. Documentários “impressionistas” nos quais “o fluxo da vida  se materializa sem nenhuma outra intenção do que retratar alguma de suas manifestações.”

A fama adicional adquirida com , por um lado, e de outro o desconhecimento da obra mais recente de Sucksdorff, talvez expliquem que a UNESCO e o Departamento Cultural do Itamaraty não tenham detectado a provável falta de sintonia de um naturalista romântico, sem nenhuma experiência anterior de ensino, com as expectativas dos que sonhavam fazer cinema no Brasil lendo a Cahiers du Cinéma, participando do Centro Popular de Cultura, admirando os primeiros filmes do Cinema novo e os documentários de Fernando Birri, vendo Hiroshima meu amor, Acossado, Primárias, Crônica de um verão etc.

Ou então, ao contrário, terá sido justamente o fato dele ser alheio à renovação da linguagem em curso no início da década de 1960, e dos seus filmes serem filiados à tradição idealista de Robert Flaherty, que levou Sucksdorff a ser escolhido? Terá pesado a face conservadora das instituições responsáveis?

A rápida resposta manuscrita de Sucksdorff à consulta de Henny de Jong, escrita apenas seis dias depois de Alghero, pequena cidade turística, na Sardenha, onde morava à beira do Mediterrâneo, indica que não devia estar muito ocupado, nem tinha projetos imediatos. “Tentar ajudar um grupo de jovens diretores brasileiros deve ser tarefa muito estimulante”, escreve Sucksdorff, consolidando o parti-pris, paternalista e equivocado, quanto ao perfil do grupo a ser “ajudado”.

Na segunda frase da carta, porém, Sucksdorff introduz a questão que iria permear seus entendimentos com a UNESCO nos meses seguintes: o valor da remuneração. Dizendo ter necessidade de trabalhar [e ter um rendimento, portanto] com o “moderno equipamento de filmagem” no qual fizera um grande investimento, informa que teria dificuldade de receber quantia que, segundo se informara, mal daria para cobrir o custo de vida no Rio. Argumenta que “o risco econômico da proposta é tão alto que, por mais econômico que fosse, sobraria muito pouco para minha família (ou, de fato, minhas famílias uma vez que são duas) e absolutamente nada para cobrir minhas despesas de trabalho relacionadas ao meu equipamento de filmagem.

A ambivalência da carta é coroada com a insinuação de que se “pudesse alugar o equipamento de filmagem durante os cinco meses, não hesitaria em aceitar” a gentil proposta.

O que estava insinuando é que a UNESCO incluísse o aluguel do equipamento dele na negociação.

Na semana seguinte, agora em carta datilografada datada de 12 de maio, na qual dá sinais de ansiedade com a falta de resposta imediata da UNESCO, Sucksdorff “sublinha” que está “muito interessado” e propõe uma terceira fonte de remuneração.

“Não seria possível”, pergunta, “conseguir autorização do governo brasileiro para que pudesse “fazer um documentário sobre o Rio de Janeiro”. Ou seja, além da “ajuda a um grupo de jovens realizadores brasileiros” e do aluguel do seu equipamento, propunha fazer um documentário. E segue dizendo que “poderia viajar de navio para o Rio e levar o equipamento de filmagem […]. Se eu fosse orientar um grupo de jovens diretores de documentários brasileiros, isso poderia então ser feito junto com meu trabalho nessa direção [do documentário]. É claro que há muitos outros assuntos no Brasil, e o fato que eu chegue lá sem quaisquer preconceitos e conhecimento demais, considero benéfico, por que veria tudo com olhos frescos. No momento, estou trabalhando em planos para fazer um filme sobre a unificação da África e ficaria muito contente, portanto, em poder me decidir num ou noutro sentido o mais rapidamente possível.”

Sucksdorff parece se referir a outro projeto como forma de pressão, aparentemente bem sucedida, para obter resposta rápida da UNESCO. Suas demandas, porém, não cessariam nos meses seguintes.

Quatro dias depois, Jean Christianne, do Departamento de Pessoal, comunica a Suckdorff que a UNESCO estava considerando nomeá-lo “membro pleno da Organização” em vez de “consultor”, esclarecendo que por “razões orçamentárias” a “missão” teria que começar no mais tardar até 1º de agosto. Ou seja, em dois meses e meio.

VI – Equipamento

Em meio a esses entendimentos com Sucksdorff, ainda em maio de 1962, Paulo Carneiro, o delegado permanente do Brasil, encaminha outra solicitação à UNESCO, ao que parece sem conhecimento de Sucksdorff.

Em resposta, Henny de Jong pede a Paulo Carneiro que sejam indicadas as prioridades da lista de equipamento enviada, incluindo câmera e refletores, orçada em cerca de 8000 dólares, equivalentes hoje a 61000 dólares, uma vez que só havia disponibilidade de 3000 dólares, incluindo gastos com filme virgem e laboratório.

Entre os equipamentos que teriam sido “pedidos pelos cineastas brasileiros” havia uma câmera marca Cameflex  16/35 mm (imagem à esquerda), menos apreciada, segundo Henny de Jong, do que o modelo apenas 35mm. O “manejo” do modelo 16/35  “é muito delicado e a qualidade da imagem em 16mm é nitidamente inferior à em 35mm, sendo preferível usar câmeras de bitolas diferentes para cada formato.” A alternativa seria “a câmera Arriflex [que] nos foi especialmente recomendada”, completa Henny de Jong, “sendo apreciada sobretudo por sua estabilidade.”

O impasse orçamentário, porém, já estaria superado pois “o Brasil teria recebido o equipamento de outras fontes, depois de ter encaminhado a lista à UNESCO,” e “a questão está equacionada”, conclui de Jong.

Quem seriam esses “cineastas brasileiros” que teriam encaminhado a lista de equipamento? Terá sido, mais uma vez, Joaquim Pedro? Tudo indica que sim, pois há um depoimento dele, dado em 1983 a Alex Vianny (O processo cinema novo. Rio: Aeroplano Editora, 1999. pp.257-269), no qual afirma que conseguiu “com a [Fundação] Rockefeller a doação de um equipamento mínimo para o Brasil, que foi para o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional […] Era uma câmera Arriflex 35mm e um gravador Nagra (imagem à direita).”

Esse equipamento foi, de fato, doado. Sem ter qualquer vinculação com a UNESCO, chegou ao Brasil depois de concluída a “missão” Sucksdorff. Os primeiros filmes nos quais  foi usado foram os curta-metragens Maioria absoluta, Integração racial, Em busca do ouro, Lima Barreto: trajetória, Heitor dos Prazeres, Memória do cangaço, Humberto Mauro eO circo, todos feitos entre 1963 e 1965.

Referindo-se a alguns desses documentários em Brasil em tempo de cinema (Rio: Civilização Brasileira, 1967. Reedição da Companhia das Letras, 2007), Jean-Claude Bernardet perguntava se seriam “o prenúncio de um cinema fascista” – hipérbole que lhes atribuía dimensão bem maior do que seu verdadeiro alcance. (cont.)

 

Alghero 6.5.1962

Caro Sr. de Jong,

Tentar ajudar um grupo de jovens diretores de cinema brasileiros deve ser uma tarefa muito estimulante. Minha situação, porém, é um tanto complicada neste momento pois investi muito dinheiro em um moderno equipamento de filmagem. Para ter condições de manter esse equipamento, eu preciso trabalhar com ele: no momento não há mais qualquer margem nas minhas finanças para fazer apenas o que quero […]

[ final ]

[…]

Mas você é muito bem-vindo aqui: de avião são apenas algumas horas de Paris, via Milão, para Alghero. Ficaria muito feliz se pudessemos, tão logo possível, encontrar uma solução juntos.

Sinceramente seu,
Arne Sucksdorff

Residência:
Co Generale Rafael Catardi
Lungomare Dante

Alghero Sardegna
Italia

Leia também

Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido (parte 4)

Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido (parte 2)

Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí