Arne Sucksdorff e Arnaldo Jabor, intérprete do curso, de costas. Ao fundo, Shauli Isaac, Alberto Salva e um aluno não identificado.
Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido (parte 7)
Na volta do feriado de finados de 1962, as aulas continuaram no auditório do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), no prédio da Rádio Ministério da Educação, na praça da República, centro do Rio de Janeiro.
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XII – O curso: parte teórica
Na volta do feriado de finados de 1962, as aulas continuaram no auditório do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), no prédio da Rádio Ministério da Educação, na praça da República, centro do Rio de Janeiro.
Nas primeiras semanas, até meados de dezembro, sem os filmes do Sucksdorff ou dos outros diretores escolhidos por ele que pudessem ser analisados, sem mesa de montagem e sem equipamento de filmagem.
Entre a propostada Unesco, a do Sucksdorff, e o que efetivamente era possível fazer, havia uma distância enorme.
Todo fim de tarde, o grupo de 40 a 50 alunos se reunia para assistir projeções de filmes, comentados em seguida por Sucksdorff no seu inglês claudicante. Seguia-se um debate.
As cópias eram obtidas por empréstimo, pelo Departamento Cultural do Itamaraty, das distribuidoras estrangeiras, dos produtores brasileiros e, depois de algumas semanas, da Cinemateca Brasileira. Paulo Emílio teria dito a Sucksdorff, porém, que o acervo disponível na Cinemateca era reduzido em função do incêndio ocorrido anos antes.
De fato, em janeiro de 1957, o fogo destruiu “um terço dos seus filmes, além das coleções de aparelhos, discos, livros, placas e documentos”, conforme Paulo Emílio escrevera na ocasião. Mas no mesmo artigo, ele assegura que as coleções da Cinemateca Brasileira continuavam a ser, “apesar de tudo, as melhores da América Latina”. Seriam mais do que suficientes, portanto, para as necessidades do curso.
Havia apenas duas mulheres na turma – sinal dos tempos: Lucila Ribeiro, vinda de São Paulo, onde trabalhava na Cinemateca Brasileira, depois de ter estudado literatura, e se aproximado do cinema, em Paris; e Gilberta Noronha, filha do pesquisador e diretor Jurandyr Noronha, na época funcionário do INCE. Recebendo apoio financeiro do Itamaraty, alguns alunos vieram de Recife, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo. A maioria, porém, morava mesmo do Rio.
Como um todo, o grupo era heterogêneo. Incluía tanto alunos ligados ao Centro de Cultura Popular (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE) e ao Movimento de Cultura Popular (MCP), de Recife, quanto dois militares de baixa patente que chegaram a assistir às aulas uniformizados, depois do expediente no quartel. Nelson Pompéia, cineclubista precocemente falecido, espírito fraterno, raro cristão entre descrentes, sempre alegre, era dos que mais conheciam cinema. Flávio Migliaccio, talvez o veterano da turma, já tinha experiência como ator no Teatro de Arena de São Paulo, e estava finalizando Os mendigos, primeiro filme que dirigiu. Nelson Xavier atuara no Teatro de Arena, e também em alguns filmes. Graduado em filosofia pela Universidade de São Paulo, Vladimir Herzog era dos que tinha melhor preparo intelectual. A maioria, sem experiência prática anterior, apenas sonhava se tornar diretor de cinema.
Entre os filmes exibidos, a memória reteve poucos títulos – Matar ou morrer, Rocco e seus irmãos, Yojimbo,Porto das caixas, Cinco vezes favela, Tocaia no asfalto, e O menino das calças brancas. Talvez Ganga Bruta. Há quem lembre de Acossado.Da maioria, porém, não ficou registro.
Na carta a Henny de Jong, de 7 de novembro, logo depois do feriado em Búzios, Sucksdorff escreve que “não sabe, em geral, que filmes estarão disponíveis quando vai para as palestras, o que o obriga a improvisar, o que nem sempre é a melhor maneira de ensinar”.
A falta da mesa de montagem, por sua vez, teria levado os “alunos mais talentosos”, logo na primeira palestra, a tentarem interromper a projeção para rever certas sequências, o que, “evidentemente, não é possível fazer” [sem o grave risco de danificar a cópia], escreve Sucksdorff.
A sala ao lado do auditório ainda era frequentada por Humberto Mauro, funcionário aposentado do INCE desde o ano anterior. Mas não houve maior contato dos alunos com ele, a não ser no dia em que assistiu Rocco com a turma. Convidar Humberto Mauro para falar da sua experiência, dar um depoimento ou mesmo uma simples conversa, não ocorreu a ninguém
Em filmagem no Rio, na época, estavam A nave do mosteiro, documentário sobre o mosteiro de São Bento, dirigido por Mario Carneiro; Gimba, dirigido por Flávio Rangel, e Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro, todos três fotografados pelo Mario (na foto ao lado, Mario conversa com Paulo Cezar Saraceni). Acompanhado de um ou dois alunos, Sucksdorff fez visitas protocolares ao mosteiro e ao morro da Mangueira, onde os exteriores de Gimba estavam sendo filmados.
No dia da visita ao mosteiro de São Bento, quando Sucksdorff chegou, Mario estava ensaiando um travelling, em cima de um praticável. A câmera se aproximava da imagem de Cristo crucificado, até enquadrar, em primeiro plano, seu tronco com as costelas salientes. Fazendo ar de reprovação, Sucksdorff comentou que o movimento deveria ser feito do outro lado, de modo a terminar em close do rosto de Cristo, não do tórax. Mesmo não tendo gostado muito, Mario ouviu o comentário sem reagir. Nunca esqueceu o episódio, porém, que gostava de contar com um sorriso de ironia.
Embora não tivesse experiência de ensino anterior, nem qualquer pendor didático especial, Sucksdorff fez um esforço sincero para lidar com a dificuldade da situação. Na carta de 7 de novembro, assegura a de Jong gostar “muito do trabalho”, estar fazendo “seu melhor” e que não há motivo para preocupação com os “resultados do seminário!” “Às vezes é muito estimulante tentar tornar o impossível possível”, ele escreve.
É a primeira vez, salvo engano, que surge a expressão “seminário”, embora “missão” continue a ser usada na correspondência entre Sucksdorff e a Unesco. No Brasil, o “seminário” costumava ser chamado, mais modestamente, de curso.
Na carta a de Jong de início de novembro, com o curso em andamento, Sucksdorff escreve: “Se, por exemplo, nem o Itamaraty ou a Unesco têm qualquer dinheiro para algumas das despesas desta missão, quem, então, pagará?” Na frase seguinte, conclui que “uma parte do dinheiro terá que sair do meu próprio bolso”.
No morro da Mangueira, durante a filmagem de Gimba, o diretor Flávio Rangel e, à esquerda, Arne Sucksdorff. (crédito: Fernando Duarte)
Mais uma vez, sem a documentação brasileira do Itamaraty, não é possível saber com certeza até que ponto as reiteradas reclamações de Sucksdorff tinham ou não fundamento. Adiante, na mesma carta, ele informa ter sido comunicado pelo Departamento Cultural que os recursos necessários para os gastos de laboratório estariam disponíveis.
Declarando-se constrangido por não poder retribuir a hospitalidade dos brasileiros, dada sua falta de dinheiro, Sucksdorff declara que “a única saída é recusar todos os convites para jantar”. Lembrando que “seu salário estava reservado para pagar o equipamento de filmagem que comprara”, Sucksdorff dá a entender que não podia fazer frente aos gastos diários, inclusive de transporte, necessários para a “missão”. Essa situação teria levado o “seminário a ser suspenso por uma semana dada a total falta de dinheiro”, escreve Sucksdorff, depois que ele gastara “70000 cruzeiros do seu próprio dinheiro e teve que enfrentar o problema de não ter dinheiro suficiente para comer”. A quantia mencionada equivaleria hoje a cerca de R$ 5.300,00. Graças a 500 dólares (equivalentes, hoje, a 3700 dólares ou R$ 7.500,00), fornecidos pelo Itamaraty, o “seminário” teria podido recomeçar.
A carta de 7 de novembro, escrita para de Jong, termina contando vantagem: “Quando partir do Brasil, estou decidido a deixar um grupo de realizadores bem treinados, não importa as dificuldades que eu esteja criando – não só para os outros como para mim mesmo.”
Aos poucos, porém, o entusiasmo que Sucksdorff procura transmitir nas cartas de outubro e novembro iria arrefecendo. No final do mês, a mesa de montagem não havia chegado, e seu equipamento de filmagem, pesando 1650 quilos, continuava na Itália, enquanto a UNESCO procurava acertar com o sr. Marongui, ao que tudo indica um despachante, o custo da remessa para o Brasil. A conta apresentada, segundo o próprio Sucksdorff, era “muito, ‘muito’ italiana”.
Nessa altura, Sucksdorff havia desistido de “fazer cópias de trechos de filmes”, tanto por não dispor da mesa de montagem na qual seriam remontados, quanto por “estar meio sem tempo para lidar com as complicadas providências que seriam necessárias”, dando preferência a que os recursos previstos para esse fim fossem gastos comprando filme virgem.
À medida que Sucksdorff tomava conhecimento da precariedade técnica existente no Brasil, novas dificuldades surgiam. A falta de equipamento para transcrever em sincronismo fitas de áudio de ¼ de polegada para fitas magnéticas de 17 ½ mm, era um “problema insolúvel” que o obrigaria a importar um aparelho de sincronização para poder trabalhar com seu gravador Nagra, “pagando mais 1100 dólares do seu próprio bolso”.
Na final da carta escrita à senhora A. Caillois, assistente do Programa da Unesco, em 26 de novembro, Sucksdorff comenta que “do ponto de vista econômico, as coisas começam a me parecer muito graves. E, por outro lado, não ajudará muito o fato de Astrid ter partido para trabalhar na Europa” – menos de dois meses de Brasil haviam sido suficientes para acabar com o casamento de onze anos.
Deixando claro que não poderia se permitir fazer “desta missão um fracasso [mais um fracasso, talvez quisesse dizer], precisava aproveitar toda oportunidade para realizá-la de maneira bem sucedida”. (cont.)
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