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    Helena Macêdo com uma de suas selas - Foto: Maryane Martins

depoimento

Montada na sela do impossível

Mulher seleira no agreste pernambucano conta como sobreviveu numa profissão marcada pelo machismo

Helena Macêdo | 24 ago 2022_11h09
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Espora, breque, sela, rabicho, cabeçada, cilha, cabresto, luva… são palavras que fazem parte do cotidiano dos moradores do Agreste pernambucano, região entre a Zona da Mata e o Sertão. Mais ainda em Cachoeirinha, a cidade do Couro e do Aço, cuja economia é pautada na fabricação e na venda de artigos feitos desses materiais. Às quintas-feiras, Cachoeirinha acorda muito cedo. Ganha ar de urgência, mais cor, calor e história. É o dia em que acontecem as feiras de roupas e frutas, gado, queijo, couro e aço, com visitantes de todo o Brasil. Nos outros dias da semana, a efervescência acontece nas tendas, locais de produção das selas e de outros artigos. Lá trabalham os artesãos, inclusive os seleiros, fabricantes de selas, numa profissão que exige força e habilidade. Tradicionalmente, é um reduto de muitos homens e poucas mulheres. Em Cachoeirinha, esse machismo é subvertido graças a mulheres como Helena Macêdo. Ela é uma mulher seleira e se orgulha de, há 32 anos, fazer selas que montam cavalos de todo o Brasil. 

Em depoimento a Maryane Martins

Comecei trabalhando desde os 15 anos. Aos 13, aprendi a costurar. A minha mãe é costureira, e eu com essa idade já ajudava a fazer roupas. Assim começou. Na maioria dos meses, não tinha tanto serviço. Eu queria ganhar dinheiro, comprar minhas coisas, ajudar em casa. Eu e meus irmãos sempre trabalhamos, desde cedo. Eles carregavam frete. Rogério, com 11 anos, trabalhava com aço, fazendo espora. Faz 21 anos que ele foi assassinado. Hoje, só tenho 6 irmãos vivos. 

Um dia, conversando com Ritinha, minha vizinha, disse que queria um emprego pra ganhar dinheiro e trabalhar o tempo todo. E ela, vendo aquela menina, disse: “Vamos pra tenda que eu arrumo um emprego pra você.” Lá eram ela, outra mulher e vários homens. Não tinha nenhuma criança, só adultos. Eu trabalhava à tarde, às vezes à noite. Estudava de manhã. Nunca parei os estudos. 

Primeiro, fui ajudante. Fazia mandado, comprava mercadoria, varria a tenda, essas coisas simples. Depois, ainda com 15 anos, me tornei artesã. Tive a oportunidade de aprender. Ritinha é uma pessoa que eu considero muito, a seleira pioneira de Cachoeirinha e que ensinou a tantos, e também foi minha professora. Agradeço pela oportunidade que ela me deu. Trabalhei com ela por uns 3 ou 4 meses. Depois, com o tempo, fui trabalhar com um irmão meu. E meu pai criou uma tenda. 

Fazia mais de um ano que eu estava trabalhando com couro, mas ainda não fazia sela. Fazia as peças, e meu irmão montava a sela, até que um dia ele levou uma queda de cavalo. Meu pai falou que eu teria que dar um jeito pra terminar o trabalho do meu irmão. Eu disse que não sabia, e ele mandou eu me virar. Ele sempre foi um homem muito rude, bruto. Falou que eu tinha que fazer, que montar. Eu aprendi quase na marra. E assim comecei a fazer selas. 

Meu pai sempre olhava todas as selas que eu montava e ficava tentando arrancar as coisas, pra ver se tava boa ou se tava ruim. Hoje eu entendo que foi uma maneira de ele me ensinar. Mas tem formas mais fáceis de fazer isso. Os homens trabalhavam para ele e faziam a sela por 100 reais. A minha só era 50, metade do preço. Era porque eu era mulher, filha dele e ainda morava em casa. Ser mulher é sofrer preconceito o tempo todo, não só na minha profissão. 

O negócio ficou tão difícil que um dia eu e meu pai brigamos e vim trabalhar no quartinho no fundo da casa da minha mãe. Não queria trabalhar na tenda porque tinha muito homem e isso me incomodava. Em casa, poderia fazer sela pra quem eu quisesse. Meu pai quando me viu trabalhando em casa falou que eu tinha que fazer sela pra ele. Bati o pé e falei que não fazia nem queria o serviço mais barato. Meu pai disse: “Já que você não quer fazer sela pra mim, ou você sobe ou desce, mas na minha casa você não mora mais.” Nessa discussão, minha mãe entrou no meio e disse que eu nem subia nem descia, que eu iria ficar em casa. Nem saí de casa nem fiz mais sela pra ele. Agradeço até hoje por minha mãe ter me defendido.

Montava a sela durante a semana e às quintas levava pra feira. Às vezes vendia, outras não. Era um sofrimento que se fosse pra escrever dava um livro. Deixei de ser humilhada pelo meu pai, mas quando chegava na feira, cansada depois de trabalhar a noite toda, os homens ficavam perguntando quanto era a sela, pedindo desconto. Diziam: “Ali tem uma do mesmo jeito só que mais barata.” Aí eu dizia: “Compre, vá comprar. Eu levo de volta pra casa.” Desde pequena eu aprendi a me defender, aprendi que a vida é difícil. O mundo é difícil, e você tem que lutar pelo que você quer. Já trabalhei para selarias em que precisava trabalhar 20 horas por dia. Acordava às cinco da manhã e ia até meia-noite trabalhando. Não conseguia dividir meu tempo, trabalhava muito.

Helena, entre sua mãe e a seleira Ritinha, pioneira na região – Foto: Maryane Martins 

 

Hoje, eu faço o que eu gosto e para quem me valoriza. Trabalho para duas lojas, uma em Cachoeirinha-PE e outra em Santa Luzia-PB. Uma sela minha custa 1000 reais. Meus clientes brigam pelas minhas selas. Digo que se você achar o encontro das costuras em uma delas, eu lhe dou uma de volta. Ninguém encontra. Sou muito perfeccionista. Porque se eu vir qualquer probleminha, desmancho e faço tudo de novo. Só consigo fazer duas selas por semana. Quando mando para as selarias, vai do Brasil e pro mundo. O céu é o limite. 

Minha tenda fica no primeiro andar da minha casa, que divido com uma amiga. Prefiro chamar amiga porque é fofo, mas ela é minha companheira. Eu a conheci em 1999. Se você perguntasse para mim se eu faria tudo de novo, eu diria que sim. Encontraria ela do mesmo jeito, passaria os mesmos perrengues. Foi difícil, mas eu não desisto do que eu quero.

Se eu ganhasse na Mega-Sena e ficasse milionária, eu ainda falaria de onde eu saí. Toda cidade tem alguma coisa, Cachoeirinha tem o couro e o aço. Tudo que eu tenho, todos sonhos que eu já realizei e os que eu vou realizar, são só por conta da minha arte. Eu poderia até fazer outra coisa, mas eu amo o que faço. A vida toda trabalhei. Nunca tive férias. Tenho 47 anos. Daqui pra frente o que ganhar é lucro. Quero comprar um carro, viajar, conhecer Foz do Iguaçu, Fernando de Noronha, a Europa. O que a gente não pode é deixar de sonhar. Sonhar e trabalhar para realizar.

Meu nome é Helena Macêdo. Sou fabricante de sela de vaquejada e tenho essa profissão há 32 anos. É uma coisa que eu gosto, que eu amo de paixão. Não trabalho só pelo dinheiro. Gosto das coisas impossíveis. 

 

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