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    Coutinho e seu duplo, Enrique Diaz

questões cinematográficas

Moscou de outro ângulo

O número de agosto da Teorema, revista semestral de crítica de cinema editada em Porto Alegre há 12 anos, entre diversas colaborações traz artigo que se propõe indicar a “visão de cinema” de Eduardo Coutinho. Ao abordar Moscou (2009), o autor – Enéas de Souza – faz análise fértil que oferece oportunidade de reconsiderar o entendimento de um aspecto, em especial, da motivação desse documentário comentado pelo próprio Coutinho e por outros críticos.

| 06 out 2014_17h39
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O número de agosto da Teorema*, revista semestral de crítica de cinema editada em Porto Alegre há 12 anos, entre diversas colaborações traz artigo que se propõe indicar a “visão de cinema” de Eduardo Coutinho. Ao abordar Moscou (2009), o autor – Enéas de Souza – faz análise fértil que oferece oportunidade de reconsiderar o entendimento de um aspecto, em especial, da motivação desse documentário comentado pelo próprio Coutinho e por outros críticos.

“[…] O que ele [Coutinho] visa é fazer do filme [Moscou] algo tão fluente, tão vivo, tão improvisado, tão inacabado, tão surpreendente, tão caótico como a vida,” escreve Enéas de Souza.

Atraído pela ideia do filme inacabado, em agosto de 2013 Coutinho declarou à revista digital Portfólio #3 que “o ideal, quando você morrer, que infelizmente a gente morre, eu queria que fosse no meio de um filme. E que o filme fosse exibido…inacabado. O meu sonho é fazer filmes inacabados. Se eu morrer é perfeito. Espero que demore, não é?”

A esperança de que o fim demorasse acabou sendo frustrada. Supreendido seis meses depois, por ironia cruel Coutinho deixou, de fato, um filme literalmente não concluído – já gravado mas ainda por editar e finalizar.

Tendo procurado, em vida, realizar esse ideal, é estranho que para Coutinho a realização do seu sonho dependesse da sua própria morte.

No lançamento de Moscou, em 2009, ele assinalara sua atração pelo que considerava inacabado: “O importante na obra de Tchékhov é que ela é inacabada, incompleta, fragmentada, precária… São peças sem trama e sem final… Foi isso que me interessou na peça […]”. (O Globo, Segundo Caderno, 21/07/2009)

Segundo Enéas de Souza, através da “figura de um diretor de teatro para dirigir a peça As três irmãs”, [Coutinho] combina em Moscou “tanto o inacabamento da peça de Tchékhov, como o ‘contrato’ feito com Kike (Enrique Diaz), já que o diretor que dirige a peça tem um tempo exíguo, limitado, para fazê-lo, o que torna impossível sua encenação. O que fica acentuado é o inacabamento da direção teatral”.

Embora, na verdade, não seja por causa do “tempo exíguo, limitado” que a encenação da peça deixa de se realizar, uma vez que o pressuposto do evento propiciado para a gravação era justamente que a série de ensaios não tivesse o objetivo de resultar em uma estreia, Enéas de Souza está correto no essencial – trata-se do registro de um processo inconcluso.

Ilana Feldman indicara que “em Moscou, Coutinho não quer […] a peça encenada como totalidade, mas a encenação de fragmentos engajados em um projeto de programado inacabamento. […] todas as cenas são dispostas soltas e unidas, isoladas e solidárias, instáveis e equilibradas, sem nunca chegarem a formar uma imagem matricial, a íntegra da peça As três irmãs, estável e unificada; […] A montagem, trabalhando assim não na concentração, mas na expansão e dispersão narrativas, realiza o caráter incompleto, inacabado de Moscou, tão requerido por Coutinho, ao mesmo tempo que organiza a incompletude e o inacabamento do filme.” (“O filme que não acabou”, Eduardo Coutinho. Milton Ohata, org. pp.638-41)

Para Enéas de Souza, a possibilidade de um filme inacabado está vinculada à renúncia da posição onipotente ocupada pelo diretor. É preciso, segundo ele, “que o diretor não tenha a vocação do Criador, como se fosse uma figura divina como Deus. E o seu [do Coutinho] trabalho é sensacional. Primeiro, faz uma divisão na posição do diretor. De um lado temos aquele que concebe o filme (no caso, Coutinho). E ele concebe um filme onde o diretor não assume, nem conserva essa posição ‘divina’, a posição do sujeito Absoluto.”

Para Enéas de Souza, Moscou é“uma criação que não faz do diretor um Criador, que traz na maestria de sua direção a reverência à desordem fragilmente reordenada do mundo pelo cineasta, pelo homem. Ordem que escapa como um filme e uma vida escapam. […]”.

A bem da verdade, o diretor que preserva o poder de decidir o quê e como filmar, aquilo que será incluído ou não na montagem, o instante inicial e final de cada plano etc., como é o caso de Coutinho em Moscou, mantém a posição de Criador. Ele pode não ter interferido “em nada” durante a gravação, conforme declarou: “Não dei nenhuma instrução aos atores, […] inclusive na adaptação que Enrique fez de Tchékhov […] eu me meti o mínimo. Estive praticamente ausente” (El otro cine de Eduardo Coutinho, Maria Campaña Ramia e Cláudia Mesquita, orgs.) – ainda assim, exerceu seu poder absoluto, inclusive ao dirigir a montagem e dar forma final ao filme.

Mateus Araújo (“Eduardo Coutinho, Pierre Perrault e as prosódias do mundo”, Eduardo Coutinho. Milton Ohata, org., pp. 432-49) foi dos poucos a negar a “ausência” e a “dissolução” da figura do cineasta, em Moscou. Para Araújo, “além de duplicar os atores em personagens (de Tchékhov e de si mesmos), o filme também parece duplicar a figura de Coutinho na de Enrique Diaz. […] Diaz parece reencenar agora em Moscou o papel de Coutinho, que ele até então interpretara sozinho em seus documentários.”

Além da imprecisão quanto à preservação do poder do diretor, Enéas de Souza deixa sem registro aspecto contraditório, que pode ser considerado autodestrutivo, da suposta opção pela recusa da onipotência que Coutinho teria feito em Moscou, lembrando que pelo menos desde Santa Marta, Duas semanas no morro (1987), com pontos altos em Edifício Master (2002) e Jogo de cena (2007), a força dos seus documentários, nas palavras do próprio Enéas de Souza, “é uma conversa” na qual ele “se filma ou deixa a sua voz ser ouvida, para que fique clara a dimensão de diálogo do diretor com a figura filmada […].”

Em Moscou, Coutinho parece ter tentado inaugurar nova vertente em uma obra que já se transformara mais de uma vez. Tentativa de não continuar baseando os filmes na mudança da “relação da filmagem numa relação de conversa”, estabelecendo “uma relação de sujeito a sujeito.” Mas essa experiência acabou frustrada e, nos filmes seguintes, Coutinho retomou a interação entre seus personagens e ele como princípio definidor do seu cinema.


* A revista Teorema, prova de dedicação ao cinema dada por seus editores (Enéas de Souza, Fabiano de Souza, Flávio Guirland, Ivonete Pinto, Marcus Mello e Milton do Prado), com tiragem de 1000 exemplares, não é vinculada a nenhuma instituição ou empresa, podendo ser encontrada através da rede de livrarias Cultura.

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