Na manhã do último dia 23 de agosto, Larissa Franchini passou uma tarefa inusitada para o caminhoneiro Aparecido Soares da Cunha, seu funcionário. A empresária do ramo de terraplanagem pediu que ele entrasse no carro dela e a acompanhasse até o centrinho de Parisi, pequena cidade no interior de São Paulo. Durante o trajeto, Franchini não informou para onde estavam indo nem o que iriam fazer. Depois de alguns minutos, ela estacionou o carro em frente a um posto de saúde, o único no município de 2,1 mil habitantes. “Por que a gente veio aqui?”, perguntou Cunha, um tanto confuso. “Trouxe o senhor para tomar a vacina da Covid”, respondeu a empresária. O caminhoneiro de 59 anos protestou. Ele não acreditava na doença, nunca usava máscara, tinha dúvidas sobre a segurança do imunizante e não queria tomá-lo de jeito nenhum. “Minha patroa conversou comigo por um tempão. Falou que era perigoso trabalhar sem vacina, que eu poderia cair doente. Também disse que, se eu a tomasse, teria a chance de viver mais. Isso ficou no meu pensamento”, relembra Cunha. Enfermeiras que trabalhavam no posto fizeram coro aos apelos de Franchini, e o caminhoneiro finalmente cedeu. Naquela segunda-feira, mesmo com atraso, tomou a primeira dose da CoronaVac.
Na data marcada para receber a segunda dose e completar o esquema vacinal, Cunha não quis voltar ao posto de saúde. Apesar das constantes demandas da esposa, que já estava totalmente imunizada, ele ainda mantinha o discurso negacionista. Mais uma vez, Franchini interveio e fez com que o caminhoneiro acompanhasse o carro dela até o postinho. De moto, uma amiga da empresária seguiu o caminhão para evitar que Cunha fugisse. “Se a moça não estivesse ali, eu dava meia volta e fugia mesmo”, admite o motorista, sem embaraço. “Por bem ou por mal, acabei me vacinando. Para falar a verdade, ainda custo a acreditar que essa doença é isso tudo que falam. Mas até que me sinto mais protegido agora, porque a vacina foi boa para mim, não tive nenhuma reação e não peguei Covid.”
Entre 2020 e 2021, a patroa do caminhoneiro perdeu o pai, um tio e a bisavó, além de conhecidos e amigos, todos vítimas do coronavírus. A mãe dela, também infectada, até hoje carrega sequelas da doença. Daí o empenho da empresária em garantir a imunização do funcionário. No ano passado, Parisi chegou a ter a maior taxa de óbitos por Covid-19 no Brasil, um morticínio sem precedentes na cidadezinha. O desrespeito às medidas de prevenção e o negacionismo de boa parte da população levaram aos números elevados. Muitos afirmavam que o alarde em torno do vírus era uma jogada política, uma mentira global. Outros não acreditavam que estivessem contaminados, mesmo depois de receberem o teste positivo. No início de 2021, quando a segunda onda da pandemia eclodiu, Parisi registrava onze mortes pela doença. Parece pouco, mas em termos proporcionais é uma tragédia: caso se mostrasse tão letal no Brasil como um todo, a Covid-19 teria matado mais de 1 milhão de pessoas até aquele momento (atualmente, o número de mortos no país se aproxima dos 621 mil). A calamidade ganhou contornos ainda mais dramáticos depois que pessoas morreram dentro do acanhado posto de saúde, bem no coração do município, por não conseguirem vaga em hospitais da região.
Hoje, no entanto, o cenário é outro. Graças ao esforço empregado para imunizar todos os habitantes acima dos 11 anos – inclusive os negacionistas que tentam escapar –, Parisi figura entre as seis cidades mais vacinadas do estado de São Paulo. Até dezembro de 2021, segundo a Fiocruz, apenas 16% dos municípios brasileiros tinham concluído o ciclo vacinal em pelo menos 80% da população. Parisi fazia parte deles. Dados estaduais indicam que 2.222 parisianos receberam as duas doses do imunizante até a segunda semana de janeiro. Isso significa que 102% da população já foi completamente protegida. O absurdo estatístico se deve ao fato de, em 2020, não ter havido o censo demográfico. Assim, sob a ótica oficial, o município soma 2,1 mil habitantes, conforme aponta a projeção de população calculada pelo IBGE com base no censo anterior, de 2010.
“A maioria de nós ficou com medo. A gente conhecia todas as vítimas da Covid. Eram pessoas muito queridas, que nasceram e cresceram na cidade”, lamenta a aposentada Maria Aparecida Vieira. “Por causa das mortes, o povo entrou em pânico e se apressou para receber a vacina.” Ela própria viajou até São José do Rio Preto, a 97 km de Parisi, com o intuito de se imunizar. Por ter contraído o vírus no começo de 2021 e infartado, a aposentada precisava se vacinar o quanto antes, como orientou sua médica. Mas, quando foi ao posto da cidadezinha, descobriu que não havia doses para todo mundo e que outras pessoas estavam à frente na fila de prioridade. “Meu filho ficou indignado e me levou de carro até Rio Preto, onde finalmente consegui a vacina.”
Outros conterrâneos de Vieira, sobretudo os mais jovens, também recorreram aos municípios vizinhos, que estavam com a imunização mais adiantada. Parisi recebeu as primeiras 33 doses em 21 de janeiro de 2021, quatro dias depois de a vacinação se iniciar no país. A secretária municipal de Saúde, Marli Donizeti, e o prefeito Oclair Barão Bento (PSDB) as buscaram pessoalmente e entraram na cidade com estardalhaço, escoltados por policiais militares.
Nos meses seguintes, a vacina continuou sendo entregue a conta-gotas – em média, cinquenta doses a cada quinze dias. Assim que os imunizantes chegavam, a notícia se espalhava e dezenas de pessoas apareciam no postinho. “A população fazia filas enormes e pedia pelo amor de Deus para tomar a vacina. Todos estavam em pânico”, recorda a assistente social Giane Estela, vereadora pelo PSD. Alguns moradores iam ao posto “armados para assustar a equipe de saúde” e exigiam uma dose. Outros acreditavam que qualquer problema de saúde lhes dava prioridade e solicitavam a vereadores que facilitassem o acesso ao fármaco.
Como as autoridades sanitárias não divulgaram o calendário de vacinação no site da prefeitura, os parisianos precisavam descobrir no boca a boca qual a faixa etária da vez. Faziam isso observando quem se imunizava no posto ou consultando uma lista com o nome dos recém-vacinados, distribuída pelo município. Eles também trocavam informações sobre o assunto em grupos de WhatsApp. “A gente teve que se unir e lutar para ser vacinado”, resume a costureira Dulce Franchini, mãe da empresária Larissa Franchini. Impaciente com tanta demora e confusão, ela buscou a medicação fora da cidade. Acabou tomando as duas doses em Monte Aprazível, a cerca de uma hora de Parisi. “Por tudo que aconteceu na minha família, eu tinha o direito de me salvar logo.” As perdas do marido e dos demais parentes em virtude da doença a impactaram de tal maneira que a costureira chegou a ficar quatro dias acamada. “Eu pedia forças a Deus porque não aguentava mais.”
O trauma coletivo, que gerou muita ansiedade e depressão entre os moradores, fez colapsar o diminuto serviço público de apoio emocional. No começo de 2020, por meio de uma nota técnica, o governo federal praticamente extinguiu a atuação do Núcleo de Atenção à Saúde da Família (Nasf), que oferecia ajuda psicológica em cidades como Parisi. “Restou só uma psicóloga, já que até o psiquiatra foi desligado”, relata a vereadora Giane Estela. Para a parlamentar, a boa notícia é que o negacionismo que dominava a cidade no princípio da pandemia caiu por terra graças ao efeito positivo da vacinação. “As pessoas veem que a Covid não causa mais aquele número assustador de mortes.” Entre novembro de 2021 e janeiro deste ano, a cidade registrou 49 novos casos da doença, mas não contabiliza nenhum óbito desde setembro. Ao todo, Parisi totaliza 17 mortes por Covid-19.
Ainda restam alguns céticos na cidade, como o caminhoneiro Aparecido da Cunha: “Eu soube de conhecidos que tomaram a vacina e morreram mesmo assim. Então continuo com o pé atrás…” Todos os imunizantes aprovados pela Anvisa são comprovadamente eficazes contra o agravamento da enfermidade. Dados da plataforma Info Tracker, da Universidade de São Paulo, mostram que, de março a novembro de 2021, 79,7% das pessoas que morreram por Covid-19 no Brasil e 81,7% dos internados por causa da doença não estavam vacinados. “O pessoal do postinho de saúde já falou que vai me caçar até em casa para eu tomar a terceira dose”, diz Cunha, que deve receber o reforço no fim deste mês. “Se não vierem, minha patroa certamente vai me levar de novo. Eu estou só esperando.” A piauí questionou a Secretaria de Saúde de Parisi sobre a atuação da prefeitura durante a campanha de vacinação, mas não obteve retorno.