A eleição de um novo governo traz a natural expectativa de mudanças e de uma nova forma de condução das políticas públicas no país. No campo da mobilidade urbana, há desafios gigantes à espera dos novos dirigentes da nação.
Entre os diversos componentes dos sistemas de mobilidade urbana – transporte público, mobilidade ativa, logística urbana, trânsito e segurança viária –, o que mais recebeu atenção acurada da esfera federal foi a segurança viária, fruto do Código de Trânsito Brasileiro, de 1997. O governo Bolsonaro cumpriu uma promessa da campanha de 2018, a de acabar com a “indústria da multa”, eliminando radares controladores de velocidades. De fato, em seu primeiro ano de gestão, o Ministério da Infraestrutura determinou a eliminação do uso de radares estáticos, móveis e portáteis, das rodovias federais.
Logo depois, o Conselho Nacional de Trânsito, órgão composto por membros representantes do governo federal, editou uma sequência de normas no sentido de limitar a fiscalização de trânsito. Em setembro de 2020, o executivo editou a Resolução 798, que criou novos obstáculos para a fiscalização no tráfego. A instalação de radares passou a ser proibida em árvores, marquises, passarelas, postes de energia elétrica ou qualquer outra obra de engenharia. Radares portáteis ou móveis foram proibidos em vias com velocidade inferior a 60 km/h. Ou seja, em ruas onde há escolas, hospitais, creches – que em geral têm velocidade limitada a 40 km/h – não se pode fiscalizar atos imprudentes de motoristas. Em outras palavras, nos locais em que mais se precisa, a fiscalização foi proibida.
Afora isso, o Congresso Nacional converteu em lei texto de uma Medida Provisória que aumentou o número de pontos para a suspensão do direito de dirigir e ampliou a validade da Carteira Nacional de Habilitação. De outro lado, houve flexibilização na fiscalização do peso de veículo de carga, fator contribuinte para sinistros de trânsito e comprometimento do pavimento asfáltico.
Esse rol de alterações confirma a visão que o atual ocupante da Presidência da República tem do sistema de fiscalização de trânsito. Disse ele em 2019: “Há uma quantidade enorme de lombadas eletrônicas no Brasil. É quase impossível você viajar sem receber uma multa.” Também afirmou: “A gente sabe que, no fundo – ou desconfia –, o objetivo não é diminuir acidentes. Não é porque hoje se está muito mais preocupado em se olhar para o lado, para o barranco, para ver se tem uma lombada eletrônica, do que para ver a sinuosidade das pistas.”
Essa é uma visão bastante comum entre os motoristas – especialmente os infratores. Se existisse um álbum de figurinhas de multas de trânsito, o presidente e sua família já o teriam completado. Em 2019, o jornal Folha de S.Paulo publicou que o clã recebera mais de 44 multas entre 2014 e aquele ano.
É curioso que boa parte dos recordistas de multa, que chegam a recriminar a fiscalização existente no Brasil, quando regressam de viagem ao Hemisfério Norte costumam tecer elogios à ordem e à disciplina do tráfego que lá encontram. E, naqueles países, tratam de andar na linha, temerosos do rigor da lei.
Toda indústria, para existir, precisa de insumos. O mesmo se dá com a chamada “indústria da multa”, e seu insumo é a infração de trânsito. Pois bem: o que existe, realmente, é uma indústria gigantesca de infrações de trânsito. Um estudo da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), relizado em 2015, indica que são cometidas, na cidade de São Paulo, 10 milhões de infrações por hora. Agora, preste atenção: a capital paulista aplica a mesma quantidade de multas, 10 milhões, só que por ano! Quer dizer, há uma quantidade estúpida de infrações que não são punidas.
A primeira grande tarefa do novo governo, portanto, em termos de segurança viária, é revogar todas as atuais medidas restritivas à fiscalização e controle, bem como a revogação da flexibilização das normas que levam à suspensão e à cassação do direito de dirigir.
Ao fazer isso, o executivo federal retomará a política pública baseada em dados e evidências: o Brasil continua sendo um dos campeões mundiais em mortes no tráfego. O país segue com escandalosas 19,7 mortes no trânsito por 100 mil habitantes. Enquanto isso, outras nações alcançam patamares muito inferiores: Argentina (14), Afeganistão (15,1) Canadá (5,8), Chile (12,5), México (13,1), Estados Unidos (12,4), Portugal (7,4), Espanha (4,1) e Suécia (2,8). Ganhamos de poucos países, como a Índia, por exemplo, que tem 22,6 mortes.
Também competirá ao novo governo retomar o diálogo e a participação da sociedade civil na articulação de políticas públicas voltadas à segurança viária, assim como a coordenação das atividades dos estados e municípios.
Espera-se a volta do Ministério das Cidades, para funcionar como articulador das políticas públicas urbanas do Brasil. As cidades são protagonistas da vida, do desenvolvimento e da geração de riqueza. Se a agropecuária responde por boa parte da nossa economia, é nas cidades que estão os bancos, as indústrias, os serviços, o emprego e as oportunidades da imensa maioria da população nacional – e nunca é demais lembrar que algo em torno de 85% dos brasileiros vivem em territórios urbanos.
A tarefa de organizar, financiar e subsidiar os investimentos e o custeio da mobilidade nas cidades não pode recair apenas sobre os ombros de estados e municípios. O governo federal deve exercer o papel de líder, indutor e financiador de muitas das facetas dos sistemas de mobilidade urbana.
Também nessa direção o novo governo deveria recriar a Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana, dedicada exclusivamente à mobilidade.. A ela seriam devolvidas as atribuições que já teve no passado: concentrar todas as ações federais em favor do transporte público e da mobilidade ativa, assim como subsidiar as outras pastas acerca de políticas que podem impactar a mobilidade de pessoas e bens nas cidades.
O primeiro passo em tal sentido seria a atualização da Política Nacional de Mobilidade Urbana, verificando-se os avanços dos últimos anos e ajustando o rumo para acelerar as ações que reduzam as emissões nos sistemas de transporte, ampliem o acesso ao emprego, renda e oportunidade, bem como a eliminação das mortes e ferimentos graves no tráfego. O governo federal precisa exigir, definitivamente, que os municípios elaborem e executem os seus planos de mobilidade urbana.
Essa atualização precisará ser implementada garantindo a ampla participação dos estados e municípios e, especialmente, da sociedade civil organizada e da academia nas diversas etapas de sua execução.
Ao mesmo tempo, o governo federal precisa preparar uma abrangente política de descarbonização do transporte. O tema ganhou destaque na COP27, pois não resta dúvida da urgência que devemos ter no rumo da eliminação das emissões de carbono, a fim de assegurarmos um aumento de temperatura do planeta não superior a 1,5° Celsius.
Para isso, o setor de transporte precisa modificar sua matriz energética. O executivo federal pode não só financiar como também engajar as cidades em planos para favorecer a mobilidade ativa, dar prioridade ao transporte público, gerenciar a demanda do transporte individual motorizado e a substituição de veículos movidos a combustíveis fósseis para outras matrizes, limpas, especialmente a elétrica, que é a tecnologia que se afirma em todo o mundo.
Quanto à matriz energética, o governo precisa dialogar com a indústria, os operadores de ônibus e os agentes financeiros para construir uma política nacional de descarbonização do transporte que deve, simultaneamente, envolver: incentivos fiscais para a adoção de veículos limpos, linhas de crédito que reduzam os custos financeiros para substituição das frotas, incentivo à indústria nacional com o desenvolvimento de tecnologia e soluções locais, visando manter o Brasil como plataforma exportadora de veículos (agora limpos) e subsídio às cidades que adotarem alternativas mais limpas nas suas frotas.
Outra frente na qual o executivo federal deverá atuar é a Companhia Brasileira de Trens Urbanos, que sofre há décadas com gestões erráticas e desconectadas de suas reais necessidades. Além disso, há muito que os sistemas de trens de Belo Horizonte, Recife, Natal, João Pessoa e Maceió clamam por investimentos. Não podemos assistir, mais uma vez, à falência de linhas ferroviárias. É fundamental garantir à CBTU uma gestão técnica e eficiente, recursos e meios para a retomada da qualidade do transporte de passageiros por ferrovias nas áreas onde ela atua.
O novo governo também deve priorizar a integração dos sistemas de transporte nas regiões metropolitanas. Nessas regiões, as pessoas vivem como se todo o tecido urbano fosse uma única cidade: muitas vezes moram em um município, trabalham em outro e estudam em um terceiro. Não há divisas físicas perceptíveis. Apesar disso, cada cidade tem sua própria gestão dos sistemas de mobilidade, criando dificuldades e obstáculos para os usuários. São diversas as tarifas e os meios de pagamentos para uma mesma viagem, encarecendo e dificultando o acesso. A falta de planejamento faz com que rotas de ônibus concorram entre si, ou com os sistemas sobre trilhos, criando ineficiência e dificuldades adicionais para os usuários. O executivo federal pode conduzir o processo de implantação de autoridades metropolitanas de transporte capazes de unificar o planejamento, a operação e a gestão dos sistemas de mobilidade.
Por último, mas não menos importante, é preciso atentar para a equação do financiamento dos sistemas de transporte público. O modelo vigente no Brasil – qual seja, a divisão dos custos entre os usuários – não responde mais às necessidades de custeio, investimento e justiça social. É essencial colocar em prática uma nova modalidade, na qual o usuário do transporte não seja mais penalizado em seu orçamento com os custos do sistema. As externalidades positivas dos sistemas de transporte público justificam um novo modelo de financiamento, em que todos os entes federativos se coordenem para alocar recursos, encontrar novas fontes e garantir às cidades um acesso democrático e amplo a eles. Diversos municípios nacionais passaram a subsidiar os usuários do transporte público depois da pandemia. É preciso uma articulação federativa para sustentar e ampliar os subsídios em favor de tarifas cada vez mais baratas e um uso crescente do transporte mais seguro, inclusivo e sustentável que existe: o coletivo.