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depoimento

‘Não há saúde mental se seus direitos são desrespeitados’

Moradora da Maré teve problemas físicos e psicológicos após carro do filho ser fuzilado por militares da Força de Pacificação

Irone Santiago | 23 ago 2021_11h00
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Foi numa quinta-feira, às vésperas do Carnaval de 2015, que Irone Santiago, de 56 anos, viu sua vida mudar para sempre. Seu filho Vitor Santiago, à época com 29, tinha se tornado pai havia apenas dois. O rapaz trabalhava numa empresa de próteses cirúrgicas e estudava segurança do trabalho. Junto a outros quatro amigos, resolveu assistir à partida entre Flamengo x Cabofriense, pelo Campeonato Carioca, em um bar de Bonsucesso. A goleada de 5×1 do rubro-negro fez o grupo voltar para casa em êxtase, ouvindo música alta. No caminho, Vitor planejava uma ida à praia com o irmão no dia seguinte. Não deu tempo. Chegando à favela Salsa e Merengue, no Complexo da Maré, para deixar um dos amigos em casa, Vitor teve o carro fuzilado por militares que atuavam na Força de Pacificação. Os tiros só cessaram quando um dos passageiros, também militar, jogou a carteira de identificação para fora do veículo.

Irone acordou sobressaltada com o barulho do telefone. Do outro lado da linha, veio a notícia de que seu filho havia sido baleado. A mãe presumiu que o caso fosse simples, mas a verdade é que o rapaz ficou entre a vida e a morte. Sobreviveu, porém com sequelas: Vitor ficou paraplégico. O cabo do Exército Diego Neitzke, que efetuou os disparos, foi absolvido no ano passado, cinco anos após o episódio. O Tribunal Militar julgou que o cabo agiu em “legítima defesa imaginária”. Já Irone sobreviveu a dois aneurismas e muitos danos psicológicos decorrentes dos traumas daquela violência. Hoje, ela atua como mobilizadora da organização Redes da Maré e ajudou a entrevistar os moradores para a pesquisa “Construindo Pontes”, que identificou os efeitos da violência na saúde mental dos moradores. A pesquisa também motivou a criação da Semana de Saúde Mental – Rema Maré, para conscientizar os moradores da comunidade sobre seu direito ao amparo psicológico.

(Em depoimento a Hellen Guimarães)

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Como ter saúde mental morando num lugar onde você não tem os seus direitos respeitados? Não tem como. Para mim, é difícil demais até falar sobre essas questões, porque passar pelo que eu passei… você está deitada dormindo e recebe um telefonema dizendo que seu filho levou um tiro. E, de repente, você descobre que o estado dele é muito grave. Num primeiro momento, achei: “ah, levou um tiro”. Para quem mora em comunidade, às vezes a gente banaliza, né? Mas fui para o hospital correndo e, chegando lá, vi que a coisa era muito pior do que eu imaginava. 

O próprio Estado não colabora para que esses moradores tenham saúde, muito menos saúde mental. O que o estado tem para você são psicotrópicos, como se você estivesse maluca. Eu demorei muito tempo para ver que a minha saúde mental estava muito abalada. Eu sentia muito ódio das pessoas, até que eu comecei a fazer um tratamento. Quando procurei esse atendimento terapêutico e psicológico, caí em mim e percebi o quanto eu estava adoecida. Mentalmente e fisicamente, porque tive dois aneurismas, precisei operar. Eu ia para a academia, malhava e eu achava que eu estava bem depois do que aconteceu ao meu filho. Até que eu levanto para ir à academia e já não consigo, começo a passar mal, vou ao hospital e descubro que estava doente, que o aneurisma era gigante, de três centímetros, por conta de tudo que vivi e da violação que meu filho sofreu.

Essa violência abalou muito a minha saúde e acredito que afete toda a comunidade. Quando faço as pesquisas, quando vou à casa das pessoas, eu percebo essas mulheres, com esses problemas todos, cerceadas. Elas não falam, têm medo, acham que isso é normal. Mas não foi assim comigo.

Quando eu me descubro, eu começo a ver, eu percebo que não é normal viver toda essa situação, adoecer dessa forma, e reconhecer o seu adoecimento é muito importante. Porque, se eu não reconhecesse o meu adoecimento, não teria procurado ajuda. Muitas vezes, essas mulheres não conseguem se ver. Já houve momentos em que eu estava em um espaço, me olhava no espelho e não conseguia me ver, de tão doente que eu estava mentalmente. E pensei “não, não posso permitir e preciso mudar isso”.

Hoje, o que eu levo para essas moradoras aqui da comunidade, quando vejo essas situações, é que elas também procurem uma terapia, um atendimento psicológico. Temos algumas iniciativas aqui, como o Maré Direitos, que encaminham as pessoas para esses profissionais. Após meu tratamento, tomei também uma decisão muito forte, muito bacana para mim, de me separar da pessoa com quem eu vivia há 33 anos, em prol dos meus direitos. Depois de ter acesso a isso, me sinto uma pessoa muito melhor. E desejo que todos tenham essa oportunidade.

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