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A necessidade da inteligência

Fragilizado pela dependência financeira do Estado, audiovisual carece de meios para resistir à ação destruidora do desgoverno federal

Eduardo Escorel | 07 jul 2021_09h02
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O fato de ter escrito o artigo Desnecessidade da inteligência não impediu Paulo Emílio Sales Gomes de publicar outro, na semana seguinte, intitulado Gosto pela inteligência no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, em março de 1963. A contradição aparente não deixou de surpreender na época, mas, na verdade, era apenas um paradoxo típico do raciocínio e da personalidade esfuziante de Paulo Emílio. Sinto-me autorizado, pois, a seguir seus passos ao abordar questões tratadas nas duas colunas anteriores, matutando sobre a relevância de ideias e entretenimento na produção cinematográfica brasileira.

Desnecessidade da inteligência começa assim: “Ser crítico é melancólico. Crítico de cinema então é desolador […]” Parágrafos adiante, Paulo Emílio escreve: “O fenômeno global da pouca inteligência na criação cinematográfica durante tantas décadas era expressão de desnecessidade e não de mediocridade. Não influiu na qualidade artística dos filmes […]” 

Paulo Emílio – Foto: Divulgação

 

Já em Gosto pela inteligência, ele rememora: “Quando há 25 anos em Paris me interessei, tardiamente, por cinema, esse terreno oferecia parca nutrição para o consumidor de inteligência […] Durante muito tempo apreciei Bazin como fato isolado e só mais tarde percebi que a sua atividade era, além das virtudes intrínsecas que possuía, sintoma do acontecimento muito mais geral, o da infiltração da inteligência na criação e na crítica cinematográfica. A constatação desse fato não implica necessariamente em julgamentos de valor. Tornando-se inteligente não significou que o cinema tenha automaticamente melhorado. É outra a forma de colocar a questão. A inteligência nunca foi suficiente para tornar um filme bom, mas, hoje ela é necessária e antigamente não o era sequer […]”

Paulo Emílio registra também, em Gosto pela inteligência, a presença, no Brasil, do documentarista sueco Arne Sucksdorff, além da chegada prevista do francês François Reichenbach, e comenta: “O autor de A Grande Aventura se situa certamente em nível artístico mais alto do que o realizador de L’Amérique Insolite. Se a juventude brasileira interessada pelas coisas do cinema anuncia sua preferência pelo segundo é porque Reichenbach impregna mais abertamente suas obras dessa quota de inteligência que se torna cada vez mais indispensável […]”

Sendo um dos ex-alunos de Sucksdorff na época que se julgavam muito inteligentes, eu admirava mais Reichenbach e tomei o comentário de Paulo Emílio como uma reprimenda dirigida a mim da qual custei a me recuperar.

Para concluir a extensa citação feita acima de Gosto pela inteligência, reproduzo mais dois trechos do final do artigo: “[…], quando em suma tendeu a ser realmente moderno, o cinema foi compelido a exercer a inteligência […]. Em cinema de forma muito mais direta do que nos outros modos de expressão, a realidade soberana é o público. Precisaríamos pois fazer deste o nosso campo de observação […]. O cinema não era inteligente e agora o é, varia muito a qualidade dos filmes e das salas de espetáculo, mas nós, público cinematográfico, somos sempre uma entidade fascinante […]. Por ora o que desejaria enxergar bem é como se desenrola nas condições peculiares de subdesenvolvimento o fenômeno mundial da invasão pela inteligência.”

Paulo Emílio não levou adiante esse projeto, tampouco menciona, mas é razoável supor que tivesse lido O Processo Cinema, artigo de Glauber Rocha publicado dois anos antes no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Entre a erupção de ideias, por vezes confusas, contidas nesse longo artigo, há a proposta que alguns membros da “juventude brasileira interessada pelas coisas do cinema” tomariam naquele momento como diretriz: “[…] não poderíamos nós, pobres cineastas brasileiros, expurgar os pecados de nossas ambições? Não poderíamos voltar àquela antiga condição de artesão obscuro e procurar, com nossas miseráveis câmeras e os poucos metros de filme de que dispomos, aquela escrita misteriosa e fascinante do verdadeiro cinema que permanece esquecido? Não saberia mesmo dizer que cinema é este, que verdade é esta […]. Creio, no entanto, que o cinema só será quando o cineasta se reduzir à condição de poeta e, purificado, exercer o seu ofício com a seriedade e o sacrifício. Mas, por outro lado, o cinema se eleva como o maior instrumento de ideias do universo. Seria justa a deserção dos cineastas se eles, mesmo escravos, falam por vezes tão alto?”

Glauber Rocha – Foto: Divulgação

 

Antes de ter concluído Barravento, seu primeiro longa-metragem, o jovem Glauber, de 22 anos, não faz por menos – anuncia que o cinema “se eleva como o maior instrumento de ideias do universo”, enquanto Paulo Emílio viria a reconhecer “a invasão pela inteligência” e a declarar que o público “é a realidade soberana”.

Durante um breve período, acreditou-se na possibilidade de conciliar ideias e entretenimento, utopia da qual Macunaíma (1969) foi a tentativa mais bem-sucedida na década de 1960. A contradição entre os dois vetores se agravaria, porém, com o progressivo divórcio do público, cada vez mais voltado para o espetáculo cinematográfico como atividade de lazer. A quota de inteligência diminuiu à medida que o entretenimento de massa prevaleceu. Tendência fortalecida e consolidada ao longo das décadas seguintes, vindo a se tornar dominante.

Fragilizado pela dependência financeira total do Estado, o setor produtivo carece, na atualidade, de meios para resistir à deliberada ação destruidora do desgoverno federal. Semiparalisada, a irrelevância da atividade acabou se acentuando.

O cinema como instrumento universal de ideias, imaginado pelo jovem Glauber, chegou em pouco tempo, no Brasil, ao impasse crônico que persiste, mas sem chegar nunca a desaparecer de todo, oferecendo de tempos em tempos alguns filmes de valor. Destaco alguns títulos recentes entre os a que assisti, apenas como exemplo, sem pretender que seja uma lista completa: América Armada, Sertânia, A Febre, Segredos do Putumayo, Dois Tempos, A Última Floresta etc.

Filmes como esses, mesmo sem terem acesso amplo ao mercado, nem espectadores suficientes para ao menos cobrir seus custos de produção, não permitem considerar o cinema brasileiro desimportante.

Embora seja imprevisível, há sinais de certos produtos culturais, feitos com inteligência e portadores de ideias, serem perenes, enquanto governos autoritários e ineptos podem até durar mais do que o previsto, mas sempre são transitórios.

Um desses sinais de permanência é Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha, recebido com restrições por Paulo Emílio e outros quando foi publicado, em 1963. Após a reedição primorosa da Cosac Naify, em 2003, graças ao empenho e à tradução de Sylvie Debs, o livro vem de ser publicado no final de maio, na França, pela editora L’Harmattan, com prefácio de Paulo Antonio Paranaguá. “Como um personagem de A Regra do Jogo de Jean Renoir”, escreve Paranaguá, “é melhor dizer a si mesmo que o importante não é saber quem tem razão, mas entender que todos têm seus motivos. Devemos ler pois os escritos de Glauber Rocha com o distanciamento e empatia necessários e, acima de tudo, descobrir e assistir novamente aos seus filmes. Esta é a melhor forma de homenagear sua memória […].”

No prefácio da edição de 2003, Ismail Xavier havia escrito na mesma toada de Paranaguá: “É fundamental manter seus filmes acessíveis ao olhar das novas gerações, e o mesmo se dá com os seus textos, notadamente este [Revisão Crítica do Cinema Brasileiro], tão visceral na afirmação dos valores por ele assumidos.”

Estão aí filmes e ideias que, passados mais de cinquenta anos, permanecem vivos. Serão um caso inusual? Creio que sim, mas isso é da natureza do cinema – nem tudo que se faz resiste ao tempo.

Enfim, o que nos cabe é retomar o caminho que Glauber e Paulo Emílio indicaram, procurando fazer um cinema que se eleve “como o maior instrumento de ideias do universo”, invadido pela inteligência e que considere o público “a realidade soberana”.

O próprio Glauber não chegou a atingir esse ideal. “A história, em seguida, faria a sua parte”, escreveu Xavier em seu prefácio, “para nos dizer dos entraves e dos sucessos do que foi a história do cinema moderno no Brasil e seu legado para as futuras gerações, questão que se renova neste nosso momento em que as perguntas se repõem no debate sobre os caminhos do cinema brasileiro, embora seja outra a conjuntura, outras as gerações e outro o quadro técnico que estabelece a moldura das práticas possíveis. O essencial é termos este diálogo com Glauber em nossa reflexão, extraindo o melhor do seu exemplo e do desafio colocado pela envergadura de sua mirada crítica, de consequências tão fundamentais na história do cinema brasileiro.” O que resta aos sucessores de Glauber, veteranos e novatos, é seguir a trilha que ele indicou, conscientes de que, apesar de nossa desimportância, o cinema brasileiro tem sua importância, merece respeito, tem uma história e filmes a serem preservados, além do direito de exercer sua atividade com independência.

*

Antena da Raça – o filme (2020), de Paloma Rocha e Luís Abramo, tem estreia nacional sábado, 10 de julho, às 21h30. O documentário resgata a participação provocadora de Glauber Rocha no Programa Abertura, da TV Tupi, entre 1979 e 1980, período da chamada Lei da Anistia. Selecionado para o Festival de Cannes 2020, Antena da Raça – o filme estreia na faixa Filme do Mês, no CINEBRASILTV.

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