Pela tela do computador, a cientista da computação Ana Carolina da Hora conferiu as participantes do curso que começaria a ministrar naquela tarde de abril, sobre acesso à tecnologia. Eram mais de cem alunas, mulheres de comunidades pobres do Rio. A oficina tinha um tema específico: como acessar o Caixa Tem, aplicativo criado pela Caixa para fazer o pagamento do auxílio emergencial mínimo de 600 reais durante a pandemia de Covid-19. A professora perguntou às alunas qual a dificuldade delas. “Não tenho computador, esse é de uma amiga”, disse uma. “Não entendo uma palavra do que está escrito aqui”, completou outra. “Emprestei o CPF pra minha vizinha se cadastrar e agora não posso me inscrever”, explicou uma terceira. “Não tenho documento, perdi todos”, avisou uma quarta.
Acostumada a dar aulas para públicos pouco digitais, a professora de 25 anos viu que o curso precisaria ser diferente. Ao desconhecimento de ferramentas básicas somavam-se a exclusão continuada – escola, emprego, documento – e uma urgência – dominar a tecnologia para receber dinheiro e pagar contas. Aquelas mulheres, lideranças em suas comunidades, seriam multiplicadoras para explicar a outras pessoas como usar o aplicativo. As aulas começaram do básico.
A pandemia foi só mais uma oportunidade para Ana Carolina fazer o que tem feito desde que escolheu estudar Ciência da Computação: trabalhar pela inclusão digital, principalmente de negros e mulheres. Negra, criada pela mãe, pelas tias e pela avó em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense, desde criança gostava de computadores. Conseguiu entrar, como aluna bolsista, no curso de Ciência da Computação na PUC. De Caxias até a Gávea eram três horas no transporte público. Um dia o irmão lhe trouxe um livro que achara no ônibus, “dessas coisas aí que você gosta”. Era um livro sobre banco de dados, que seria usado no curso. “Foi o primeiro livro que eu tive pra faculdade. Nunca poderia comprar, hoje deve custar uns 400 reais.” A mãe temia que ela, que nunca saíra de Caxias, não se adaptasse a uma universidade privada.
Na faculdade, durante dois anos participou do programa de estágio Apple Developer Academy PUC-Rio. Criou um aplicativo chamado Mulheres na Tecnologia e com ele foi selecionada para acompanhar, em 2018, a conferência anual de desenvolvedores da Apple. Na volta do evento, o Mulheres foi aprimorado e se transformou no Sami, um aplicativo em forma de jogo, para ensinar programação e conectar meninas que, em diferentes lugares do Brasil, se interessam pelo assunto. Foi um projeto atrás do outro, mostrando que a mãe de Ana Carolina estava errada na previsão sobre sua adaptação à faculdade. Ela não só está se formando como, no mundo da tecnologia, se transformou em Nina da Hora, cientista, palestrante, programadora, desenvolvedora e professora.
Divide-se entre cursos, aulas, criação de aplicativos e projetos voltados para o combate ao racismo e à exclusão digital. Criou um modelo de negócio que faz com que seja chamada para desenvolver projetos variados, propostos por ela ou em parceria com outras organizações. Um deles, o Computação sem Caô, realizado para a organização Olabi, traduz em vídeos no YouTube conceitos da computação no dia a dia. Outro projeto é um podcast sobre cientistas africanos, o Ogunhê, já com dezesseis episódios, que ela grava no ônibus. Esta semana, lançou, junto com as amigas Taynara Cabral e Izabelle Simplicio, o Sankofa, um jogo da memória digital com os rostos de doze mulheres negras.
O curso sobre o aplicativo Caixa Tem é parte do projeto Agora é a Hora, para apoio a mulheres negras durante a pandemia com participação de quatro organizações: Criola, Perifaconnection, Movimenta Caxias e Instituto Marielle Franco. Além da distribuição de cestas básicas para famílias pobres, investiu na capacitação das líderes comunitárias para que elas pudessem solicitar o auxílio emergencial. “Sem entender como funciona a internet, os sites, os aplicativos, sem wifi, essas pessoas ficavam meio invisíveis. Não conheciam as ferramentas para se conectar. O trabalho da Nina foi fundamental para permitir que elas pudessem pelo menos começar a entender esse mundo”, diz a coordenadora do Criola, Lúcia Xavier.
Um em cada quatro brasileiros não tem acesso à internet. São 47 milhões de pessoas longe da rede, mostram os dados da TIC Domicílios 2019, levantamento sobre acesso a tecnologias da informação realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, vinculado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil. Entre os que não acessam internet, 26% disseram achar o serviço muito caro e 20%, que não sabiam de que forma usar. Relatos como os das alunas do curso do Criola confirmam que o acesso à rede não garante a compreensão, e muitas ferramentas digitais são ininteligíveis. O trabalho com as líderes comunitárias segue em frente, e Nina da Hora é responsável pela criação de uma plataforma com os dados dessas mulheres, a fim de mapear necessidades e conquistas. “Esses avanços que a gente vê sobre internet não chegam para a população toda. Tem gente que não tem computador, não tem internet. É uma equação que tem variáveis como salário, trabalho. E a população negra é a mais excluída disso tudo”, afirma.
A Olabi, criada em 2014, é uma das organizações voltadas para a ampliação do acesso da população negra à tecnologia, tanto como usuária quanto como produtora de conteúdo. Um de seus projetos, o Pretalab, identificou 570 mulheres negras e indígenas que trabalham com tecnologia. Outro, o ProtegeBR, fez um mapeamento de iniciativas solidárias de distribuição de equipamentos de proteção individual durante a pandemia. “A quarentena fez a gente usar mais a internet para aula, consulta, tudo. Ao mesmo tempo, mostrou que as conquistas da rede não estão disponíveis para todo mundo. Tecnologia não é fim, é meio. Não adianta ter uma tecnologia maravilhosa, um mundo de nerds, se isso não se transforma em ganhos concretos para as pessoas. E isso só vem com política pública”, diz a pesquisadora Silvana Bahia, criadora da Olabi.
Iniciativas como as da Olabi, para aumentar a presença de negros como produtores de tecnologia, aos poucos se espalham. Reportagem da piauí mostrou que, segundo o Ministério da Economia, no Brasil, em 2018, apenas 4% dos profissionais de tecnologia da informação eram negros. Entre eles está a desenvolvedora e webdesigner Jéssica Valeriano, de 29 anos, que trabalha como freelancer para várias empresas. Nascida e criada na periferia de São Bernardo do Campo, município do ABC paulista, filha de um operário e uma dona de casa, ela é a primeira de sua família a fazer faculdade. “Na minha turma da escola, fui a última a ter computador, lá pelos 14, 15 anos. Pegava emprestado ou ia para a casa dos amigos quando precisava fazer um trabalho de escola. Quando ganhei, resolvi saber como funcionava e não parei mais”, lembra.
Na escola, na faculdade, nos lugares que frequenta, Jéssica se acostumou a ser minoria. Sua turma na graduação em Análise e Desenvolvimento de Sistemas só tinha um negro e, além dela, uma outra mulher, que desistiu do curso. Sobre a presença de negros na área de tecnologia, acha que o setor tem muitas oportunidades e é até mais aberto que outros, como medicina – mas o racismo está lá, sempre presente. “Às vezes me pediam currículo para estágio e, depois, trabalho. Eu mandava, a pessoa elogiava, se interessava, pedia urgência, eu ia correndo pra entrevista. Durante a entrevista elogiavam o currículo, agradeciam e, com muita educação, diziam que a vaga tinha sido ocupada. Só hoje entendo que era racismo”, conta. A quem quer seguir na área de tecnologia, dá dois conselhos: ter foco e nunca parar de estudar.
Estudar, sozinho ou acompanhado, de dia, de noite, a qualquer hora, foi também o caminho para desenvolvedor e programador Rodrigo Ribeiro, de 33 anos. Cria da Cohab de Realengo, Zona Oeste do Rio, filho de uma doméstica e um auxiliar de serviços gerais, ele começou como estagiário numa empresa de informática. Nunca parou de aprender, trocou a graduação em publicidade pela de Ciência de Dados e trabalha como programador em uma gráfica digital. Montou o Tecnogueto, um projeto para oferecer formação em tecnologia a jovens que se interessam pelo tema, mas não podem pagar. “Sou o primeiro da minha família a cursar faculdade, a ter carro. Muitas vezes o jovem negro acha que a tecnologia não é para ele, e me sinto na obrigação de tentar mudar isso”, diz.
Além do interesse pela tecnologia, Rodrigo Ribeiro, Jéssica Valeriano e Nina da Hora têm em comum o convívio com um estranhamento constante. “Na primeira empresa em que fiz estágio, eu era o único preto numa equipe de setenta pessoas. E só tinha uma mulher”, lembra ele. Jéssica menciona a solidão de ser sempre ou quase sempre a única mulher negra nos ambientes. Nina fala dos olhares enviesados quando descobrem que ela trabalha na área de tecnologia. “Acham que eu poderia estar falando de história, cultura negra, de racismo… Mas estranham quando digo que sou cientista da computação. É um mundo pensado para a gente desistir dele.” Nenhum deles desistiu.