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No Portal da Eternidade – Van Gogh e a rejeição

Com fotografia exuberante, filme sobre o pintor tem a incompreensão como tema central

Eduardo Escorel | 20 fev 2019_13h09
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No Portal da Eternidade, de Julian Schnabel, é desigual – o prólogo promete, mas o filme desanda em seguida, alternando bons e maus momentos, até ganhar força no terço final.

Por melhor que seja a caracterização de Willem Dafoe como Vincent van Gogh (1853-90), o inglês peculiar de americano nascido e criado em Wisconsin, e seu francês com forte sotaque, não favorecem a verossimilhança do personagem. O inglês de Van Gogh deveria ser mais britânico, fruto do tempo que trabalhou na Inglaterra.

Prejudicial também é a discrepância entre um astro do porte de Dafoe, com os mais variados tipos de filmes no currículo, e o restante do elenco, formado por alguns excelentes atores e outros nem tanto, como Oscar Isaac, no papel de Paul Gauguin. Agravantes adicionais são a duração excessiva e as situações repetitivas que há no filme.

Os breves créditos de abertura de No Portal da Eternidade incluem apenas os nomes das empresas produtoras, acompanhados pela trilha musical de Tatiana Lisovskaya, feita com notas de piano esparsas e plangentes. Enquanto a tela é mantida preta, ouvimos uma voz não identificada em off:

“Eu só quero ser um deles. Eu gostaria de sentar com eles e tomar uma bebida e jogar conversa fora. Eu gostaria que eles me dessem algum tabaco, um copo de vinho, até me perguntassem apenas ‘como você está hoje’. E eu responderia, e nós conversaríamos. E, de vez em quando, eu faria o esboço de um deles, e daria de presente. Eles o aceitariam, talvez, e o guardariam em algum lugar. E uma mulher sorriria para mim e perguntaria: ‘Você está com fome?’ Ou ‘você gostaria de alguma coisa para comer? Um pedaço de presunto? Um pouco de queijo? Ou talvez uma fruta?’”

Fica claro tratar-se de um homem solitário, delicado, dependente de terceiros e que retribui afeto e gentilezas com seus desenhos.

Willem Dafoe como Van Gogh, em No Portal da Eternidade


Na cena seguinte, a câmera subjetiva (do ponto de vista do personagem), usada com frequência ao longo do filme, faz uma panorâmica. Mostra o campo semeado na luz da manhã, sem sol, com pequenas árvores esparsas no horizonte e nuvens esgarçadas brancas no céu azul. Sem corte, a câmera na mão – outro recurso adotado com regularidade adiante – enquadra a pastora (Lolita Chammah) e avança em sua direção, oscilando ligeiramente, como quem caminha. A mesma voz da abertura, também em off, primeiro manda, depois pede:

“Olhe para mim. Por favor.”

“O quê?”, responde a pastora, em francês.

A voz em off, também em francês, mas com forte sotaque americano, responde enquanto a câmera se aproxima até enquadrar a pastora em close.

“Não tenha medo. Não se mexa. Só isso.”

“Mas, não estou me mexendo. O que você quer?”

“Não se mexa! Eu lhe peço.”

“Por quê?”

“Eu vou fazer seu esboço.”

“Um esboço?”

“Sim. Um desenho. Eu quero fazer seu desenho.”

“Por quê?”

A câmera recua, um fade-out torna a tela preta de novo, e o título original, At Eternity’s Gate, com cada palavra em uma linha, superpõe-se ao fundo em grandes letras brancas. Decorridos apenas 2 minutos e 30 segundos, cerca de 2,5% dos 111 minutos da duração do filme, mesmo sem termos visto o dono da voz, sabemos que, além de solitário, delicado, dependente de terceiros e propenso a retribuir favores com desenhos, o personagem tem um viés abusivo e autoritário.

Desde o início de No Portal da Eternidade, fica estabelecido que a incompreensão é um tema central subjacente à vida de Van Gogh, conforme mostrada no filme. A pastora pergunta duas vezes “por quê”. Ela não entende o motivo de não poder se mexer, nem por que o homem que a abordou quer fazer seu desenho. A resposta de Van Gogh a essa mesma pergunta, feita mais adiante por outro personagem, é esclarecedora.

Concluído o prólogo, ainda com a tela preta, outra voz em off diz em francês: “Eu quero me ver livre dessa tralha toda já! […] Ninguém vem aqui para ver isso, ninguém. A ideia era conseguir mais clientes, não afugentá-los! Eu quero tudo isso fora e é para já!”

A diatribe do dono do bar é dirigida a Van Gogh que, sem ser nomeado, aparece pela primeira vez no filme sendo brutalmente rejeitado, primeiro de longe, depois de perto e de perfil.

“Do que você não gosta nisso?”, Van Gogh pergunta, ingenuamente, mostrando uma pequena tela pintada.

“Nada. Eu não gosto de nada disso. […] Fora com tudo isso. E já.”

Passados 3 minutos e 19 segundos, a rejeição surge como outro tema central de No Portal da Eternidade – nome também da pintura a óleo, feita em 1890, de “um velho com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça nas mãos”, conforme van Gogh escreveu a seu irmão Theo. Para ele, “a indizível qualidade emocional da expressão de um velho como esse […] é uma das provas mais fortes da existência de ‘algo superior’ […], a saber, da existência de Deus e de uma eternidade”.

Ao lado de locações e fotografia exuberantes que tiram bom partido do sol em contraluz, algumas sequências destoam por efeito de diálogos meramente informativos, mais parecendo palestras ginasianas sobre história da arte.

Não é à toa que Schnabel também é pintor e até fez, junto com Edith Baudrand e Dafoe, as pinturas de Van Gogh que aparecem no filme. Por outro lado, é estranho que diálogos tão deficientes estejam em um roteiro de Jean-Claude Carrière, Schnabel e Louise Kugelberg, que montou o filme com o diretor. Diálogos que o próprio Schnabel pretende ironizar ao fazer Gauguin criticar o impressionismo, diante de uma bela paisagem, enquanto ele e Van Gogh urinam.

Mas, no todo, No Portal da Eternidade se recupera a tempo e o balanço final acaba sendo positivo.

O sequência do encontro com a pastora, vista no prólogo, é repetida 1 hora e 10 minutos adiante, em versão mais longa e reveladora. Nessa altura, sabemos com certeza que a voz em off é de Van Gogh, que disse antes, duas vezes, achar que está enlouquecendo – ele teria cortado fora um pedaço da sua própria orelha esquerda (embora haja quem conteste essa versão) e foi internado no asilo psiquiátrico Saint Paul de Mausole, em Saint-Rémy-de-Provence, de onde chegou a fugir.

Na continuação antes omitida da sequência, Van Gogh manda a pastora se deitar no chão. Alega querer vê-la nessa posição, “com a cabeça apoiada no braço”. Insatisfeito com a pose, tenta ajustá-la à força, machucando-a. Ela protesta, grita, pede que ele a largue. O desfecho da cena não é mostrado, mas fica claro que Van Gogh, usando termo atual, está molestando a pastora. Em seguida, após outro corte para a tela preta e um trecho da trilha musical, ele é visto de perfil, sendo levado de volta ao asilo.

É no monastério de Saint Paul de Mausole que a conversa de Van Gogh com o padre (Mads Mikkelsen) explicita o drama da incompreensão absoluta do qual o pintor é vítima. A sequência dura cerca de dez minutos, e a encenação não poderia ser mais simples – os dois personagens estão sentados, lado a lado, em um banco na lateral do pátio, e o diálogo é mostrado numa alternância de closes.

[…]

“Você diz aos outros que é um pintor?”, pergunta o padre.

“Sim, é isso que eu sou”, responde Van Gogh.

“Por que você diz isso? Você tem o dom da pintura?”

“Sim.”

“De onde vem esse dom? Você diria que Deus lhe deu o dom da pintura?”

“Sim, ele deu. É o único dom que ele me deu.”

O padre pega uma pequena tela e pergunta:

“Você pintou isso?”

“Sim, pintei.”

“E você chama isso de pintura?”

“Sim, é claro.”

“Me diga com franqueza porque eu gostaria de entender. Por que você se diz um pintor?”

“Porque eu pinto. Eu amo pintar. Eu preciso pintar. Eu sempre fui um pintor. Isso eu sei.”

“Um bom pintor?”

“Sim.”

“Como você sabe?”

“Porque não posso fazer mais nada. Acredite. Eu tentei.”

[…]

“Você não vê? Olhe com cuidado, por favor. Eu não quero ofendê-lo, mas… você não vê que essa pintura é… como posso dizer… desagradável… É feia.”

“Por que Deus me daria um dom se fosse para pintar coisas feias e desagradáveis? Às vezes, eu me sinto tão distante de tudo. […] Talvez ele escolheu a época errada…Talvez Deus me fez um pintor para pessoas que não nasceram ainda. […] Eu pinto com minhas qualidades e meus defeitos. Eu me sinto como um exilado. Um peregrino nesta terra. Jesus disse: afaste seu coração de coisas visíveis, e se volte para coisas invisíveis.”

Velho homem triste, de Van Gogh


No final da sequência, depois de dizer ao pintor que ele estava livre para partir, o padre, antes de ir embora, deixa a pequena tela de Van Gogh virada contra a parede.

Van Gogh morreu três meses depois de sair do asilo em Saint-Rémy, vítima dos ferimentos causados por um tiro no estômago. Considerado, em geral, suicídio, em No Portal da Eternidade os roteiristas e o diretor optaram por endossar a controvertida tese de que ele foi vítima da maldade de terceiros, defendida por Steven Naifeh e Gregory White Smith, no livro Van Gogh: A Vida (Companhia das Letras), lançado no Brasil em 2012.

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