Há quem diga que toda pessoa é o seu universo vocabular. Se for assim, o presidente Michel Temer se tornou outro ao trocar os vocábulos “reforma” e “Previdência” por “segurança” e “Rio”, praticamente inexistentes em 300 tuítes anteriores, de 2 de dezembro de 2017 a 19 de fevereiro de 2018. Exceto durante o recesso parlamentar, os dois primeiros termos marcavam o tom nas declarações de Temer, com entrevistas e aparições na tevê para divulgar sua reforma. A intervenção na segurança pública do Rio, em 16 de fevereiro, porém, representou um update lexical na presença do presidente na rede. A Previdência foi esquecida e segurança se tornou trending topic no Twitter de Temer. É o que aponta a análise que fizemos ao separar dez blocos de 30 tuítes para averiguar o que mudou na retórica do presidente.
Entre a sexta-feira em que houve a intervenção e a segunda seguinte, o perfil de Temer publicou 12 tuítes sobre segurança pública. Antes disso, em 87 dias, ele havia tuitado apenas três vezes acerca do tema. Em um deles, tratava de defesa cibernética no Mercosul, em outro falou de uma reunião com o secretário do Conselho de Segurança da Rússia e, por fim, de um acordo com a Bolívia. Não havia menção a qualquer programa de segurança pública, senão com parceiros estrangeiros. Já o tema da reforma da Previdência, que ocupou a agenda presidencial com 73 de 288 tuítes antes de 16 de fevereiro, virou poeira de bits. Depois da intervenção, não recebeu mais nenhuma menção.
A metamorfose vocabular de Temer no Twitter – constatada usando o software Ford/Labic, uma plataforma de extração e mineração de tuítes em tempo real – foi logo viralizada pela imprensa, por meio de imagens com o sinal de “Urgente”, uma espécie de “Extra! Extra!” destes tempos. Ao embarcar na cobertura da violência urbana, a imprensa televisiva logo se engajou nas medidas do Planalto. Não é à toa que no grafo (mapa de interações entre perfis no Twitter), parte da imprensa esteja tão próxima de @micheltemer, por mencioná-lo continuamente (veja mais abaixo a figura com as hashtags).
Tudo poderia ir bem na estratégia de capturar a agenda da segurança pública, não fosse um detalhe: as redes sociais são um terreno intenso de disputas. Nelas, Temer é passível de chacotas, desdém, trolagens e desconfiança. Entre os dias 12 e 23 de fevereiro, o presidente foi mencionado em 970.971 postagens. E sua imagem esteve associada a três acontecimentos: o desfile da Tuiuti, a intervenção no Rio e o episódio da faixa presidencial do personagem “Vampiro neoliberalista”, como mostra o gráfico abaixo.
Os termos “intervenção”, “Rio”, “segurança” e “militar” aparecem junto a Temer 182.708 vezes no Twitter. Já os vocábulos “Tuiuti”, “faixa [presidencial]”, “vampirão”, “vampiro” e “desfile” somaram 230.486 coassociações. O impacto do desfile da Escola de Samba foi 26% maior do que a da intervenção para a imagem de Temer.
Aesperança para Temer poderia vir do Facebook. Mas não veio. Nas 130 páginas de notícias políticas do Facebook que monitoramos, os assuntos Temer e intervenção estiveram sempre presentes entre as cinco notícias mais compartilhadas entre os dias 16 e 20 de fevereiro. Em geral, com mais tom de crítica do que de elogio.
Nos últimos cinco dias, o Laboratório de Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo, o Labic, por meio do Multifeeds, software de coleta de dados no Facebook, fez um ranking dos cinco posts mais compartilhados em 146 páginas de notícias no Facebook.
Quando Temer anunciou a intervenção, em 16 de fevereiro, o post que mais circulou foi sobre a carta branca para comandar a Polícia Militar, obtida pelo interventor, general Braga Netto. Este foi o único post mais favorável ao governo após a intervenção, com 12 mil compartilhamentos. Já no dia seguinte, 17 de fevereiro, a capa de um jornal pedindo intervenção social (e não militar) se multiplicou por mais de 40 mil compartilhamentos diretos. A difusão do vídeo da professora Jaqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense, na GloboNews, também ajudou a compor uma imagem crítica da intervenção no Facebook.
No dia seguinte, 18 de fevereiro, um domingo, mais 40 mil shares atacavam Temer, por causa do episódio do personagem Vampirão da Tuiuti, que apareceu sem a faixa presidencial no desfile das escolas campeãs. E a segunda-feira, 19 de fevereiro, amanheceu com o post #IntervençãoÉFarsa, como o mais compartilhado no dia, com mais 5 mil compartilhamentos. Para terminar, mais uma capa do Meia Hora, no dia seguinte, com a manchete “Mandado de busca coletivo na casa dos outros é refresco”, postagem que mais viralizou no primeiro dia útil pós-intervenção, com mais de 5 mil compartilhamentos.
O troco veio nos comentários: em postagens na imprensa tradicional, a incidência de comentários de pessoas contrárias à intervenção é sempre menor do que as favoráveis.
Já no Twitter, a situação não é de todo ruim para Michel Temer. No entanto, ainda está longe de estar boa. Os termos ligados à intervenção federal no Rio são mencionados em 1.193.157 posts, difundidos por 200.176 usuários, entre 15 e 20 de fevereiro de 2018. A novidade: o debate sobre a presença dos militares nas ruas do Rio rompeu o predomínio de coxinhas e mortadelas como atores predominantes nas discussões na rede social. Sobre a intervenção, quem decidiu opinar e ganhou muitas curtidas foram pessoas comuns, perfis que não estão no centro das bolhas partidárias do país.
Apesar de uma maior participação dessas figuras, a polarização entre petistas e antipetistas prossegue, como mostra o mapa de interações acima. Houve, porém, uma multiplicação de novos centros no interior dessa bipolarização, com vantagem para as redes de opinião de oposição à intervenção de Temer.
No polo conservador, há agora quatro grandes centros, visualizados nas cores azul, verde-escuro, verde-claro e verde-oliva. Os claros resultam na estrutura de apoio midiático; os escuros, na estrutura de bots; e os oliva, na estrutura militar do governo federal. Concentram juntos 28% das interações do período no Twitter. A perspectiva dos verdes é de apoio incondicional às medidas de Michel Temer. Entendem que o Rio de Janeiro estaria “entregue à marginalidade” e, mesmo sendo a intervenção “um remédio amargo”, é preciso “pacificar o Rio”. Para eles, “só a intervenção militar pode dar garantias de paz à sociedade carioca”.
Esse ponto de vista pode ser resumido em um tuíte de apoio à intervenção, feito por um militar e compartilhado 11 mil vezes: “Intervenção militar é ruim, legal é tu sair 6h30 da manhã e vagabundo te assaltar no ponto de ônibus. Ter militar andando nas ruas é ruim, legal é bandido pronto pra te dar o bote no primeiro mole que tu der com celular. Eu nunca vou entender alguns pensamentos, na boa!”, escreveu.
O avanço de novas arrobas políticas, os generais, aliás, é uma novidade demonstrada no grafo. Faço cartografia de redes políticas brasileiras desde 2012. Nunca generais e o Exército apareceram como atores relevantes nos meus mapas. Agora aparecem sob a liderança do general Villas Boas, com seus 76 mil seguidores. Outros companheiros de batalhas virtuais surgiram, como os perfis dos generais Pinto Sampaio, Freitas, Miotto e Theophilo. A lista pode continuar a crescer se incluirmos os amigos dos amigos de @gen_villasboas, mostrando a rede militar dentro da rede social. Se procuradores e juízes já brilharam no Twitter, chegou o momento de os militares entrarem no palco.
O grafo acima mostra também que Temer conseguiu atrair perfis que eram mais inclinados politicamente a Aécio Neves nas eleições de 2014, espalhando a influência que Bolsonaro demonstrava sobre essa sub-rede eleitoral. Alguns exemplos são os usuários Ana Paula do Vôlei, Felipe Moura e Joice Hasselmann, que sempre se destacaram no campo mais antipetista.
A investida causou um efeito colateral que pode servir como contrapeso à intervenção: a viralidade dos conteúdos de um “neoprogressismo” (gradações de laranja) que vêm aparecendo fora da bolha petista (vermelha). O conteúdo desse grupo tem dado o tom das conversas sobre o tema, emplacando o tuíte mais popular desde o dia da intervenção, com 13 mil compartilhamentos. O texto sintetiza o viés desse grupo, identificado com a centro-esquerda: “Intervenção militar no Rio. Muda quem mata mas não muda quem morre.” Esse grupo pode servir para monitorar a intervenção, inclusive violações de direitos nas favelas.
É uma rede que reúne celebridades, organizações sociais, jornalistas, ativistas, youtubers e usuários nativos do Twitter (ou “famosinhos”, com muitos seguidores) – eles aparecem nas gradações de laranja do grafo. Já foi possível sentir essa presença, com o vídeo viral mostrando como a população negra deve se comportar durante a intervenção. Uma curiosidade: Ciro Gomes é ator chave nesse grupo alaranjado. Trata-se de uma rede fragmentada, o que não é, em si, um problema nas plataformas digitais – quando ganham muita popularidade orgânica, posts se espalham, sem ficar presos à remissão repetitiva de uma bolha ideológica.
O“efeito bolha” está mais presente na rede lulista (vermelha). Em síntese, o ponto de vista desses apoiadores do ex-presidente é que a intervenção federal dá sequência ao que a rede vermelha define como “golpe parlamentar de 2016”, “sacrificando pobres, alvos das operações militares”.
Se essa concepção tem um teto de audiência lulista (quando o alcance fica restrito a um grupo específico de usuários), ela é vantajosa quando se tem muita repercussão. O alto grau de conexão entre usuários – coesão demonstrada pela intensidade de compartilhamentos mútuos de conteúdo, ou seja, panelinhas vermelha e laranja fortes – faz com que uma batida de bumbo seja escutada rapidamente. E também contra-atacada.
Outra novidade da cartografia sobre a intervenção é mostrar que o lulismo está envelopado por uma rede de centro-esquerda bastante fragmentada, que forma 43% das interações, capaz de se contrapor ao oficialismo da informação que circula em rede.
Mais conclusões até aqui? Lulismo e bolsonarismo já não protagonizam sozinhos em seus polos. E, se Temer perde na corrida dos hits do Twitter e do Facebook, ele tem levado vantagem nas ruas. Até agora, não há nem sequer um evento de manifestação contra a intervenção marcado no Facebook, rede social que tem sido, nas páginas analisadas pelo Labic, majoritariamente crítica à intervenção.