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    Linn da Quebrada, primeira travesti a participar do BBB - Foto: Reprodução/Redes sociais

questões de diversidade

No War do BBB, a estratégia de Linn da Quebrada

Como a primeira travesti a participar do reality se preparou para o programa

João Batista Jr. | 03 fev 2022_12h02
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Com uma carreira musical de sucesso, que se construiu de forma independente, sem o respaldo de gravadoras ou empresas de agenciamento artístico, Linn da Quebrada também não precisou de intermediários para chegar à 22ª edição do Big Brother Brasil. Foi a própria cantora, compositora e atriz quem recebeu uma mensagem de WhatsApp do programa em meados de dezembro. Tratava-se de um convite para integrar o reality da Globo que começaria dentro de quatro semanas. Linn – que orgulhosamente se define como travesti e, no final de 2021, conseguiu alterar sua documentação para se chamar oficialmente Lina Pereira dos Santos – não respondeu de cara à proposta. Com ajuda de Thiago Félix, seu melhor amigo e produtor-executivo, elaborou uma lista de prós e contras antes de se decidir.

Até dizer “sim”, ela e Félix reuniram-se algumas vezes com a direção do BBB por videochamada. Além dos ganhos financeiros que a megaexposição proporcionada pelo reality poderia trazer à cantora, pesou na decisão o fato de que Linn seria a primeira travesti a participar do programa. Estar dentro da “casa mais vigiada do Brasil” lhe permitiria ocupar espaços negados a uma população bastante marginalizada e debater em escala gigantesca os problemas dessa minoria. O BBB 11 já havia abordado questões semelhantes ao convocar a ex-cabeleireira e atual modelo Ariadna Arantes, que se diz uma mulher trans. Mas o mundo era outro, sem a polarização política de hoje e a força das redes sociais. Vale lembrar que travesti e mulher trans são conceitos distintos. Em linhas gerais, a palavra trans ainda dialoga com o espectro binário. Assim, uma pessoa trans se reconhece ou como homem ou como mulher na sociedade, independentemente de seu sexo biológico. Já a travesti assume uma identidade que rejeita o binarismo. “Não sou homem e não sou mulher. Sou travesti”, proclamou Linn da Quebrada recentemente. 

Moradora da Zona Oeste paulistana, a cantora bolou um plano para conseguir dialogar com um público mais amplo e criar uma base de torcedores. No mesmo dia em que aceitou participar do BBB, ela marcou uma reunião presencial com sua amiga Ana Flor, também travesti. A pedagoga e mestranda em educação pela Universidade de São Paulo atua como consultora de assuntos identitários. Uma de suas clientes é a apresentadora Tatá Werneck, da Globo e do Multishow, que a contratou para fazer um pente-fino no programa Lady Night de modo a evitar qualquer deslize capaz de prejudicar ou ofender alguma minoria. O que soa pejorativo é suprimido da edição final.

Ana Flor topou gerir a estratégia digital de Linn, mas reivindicou a presença de mais alguns “adms”, como são chamados aqueles que cuidam das redes sociais de uma celebridade ou empresa, para dar conta do intenso trabalho. Neste momento, além de Flor, outras quatro pessoas – todas travestis – administram o Twitter e o Instagram da cantora. “A Lina não exigiu que ninguém fosse formado em jornalismo ou TI. O fundamental era saber como funciona a linguagem das redes”, afirma a gestora. A equipe trabalha em turnos de seis horas, que podem se estender conforme a demanda. Quem acompanha o programa pelo pay per view já notou que Linn não pega no sono antes das duas da manhã.

A cantora também contratou a advogada Juliana Souza, que tem clientes como o ator Bruno Gagliasso, para lhe dar respaldo jurídico caso fosse atacada por haters nas redes. Desde 2019, graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal, a homofobia e a transfobia são crimes equivalentes ao de racismo. Linn ainda fechou contrato com a mesma assessoria de imprensa que presta serviços para Marina Ruy Barbosa, Flávia Alessandra e outras estrelas. O staff da participante do BBB 22, porém, não revela quanto a artista gasta mensalmente com toda essa estrutura. 

 

No dia 26 de janeiro, a advogada de Linn esteve na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), em São Paulo, para fazer um boletim de ocorrência por racismo, transfobia e injúria racial. “Minha cliente foi alvo de ataques por parte de um blog que já saiu do ar. Entre outras coisas, o blogueiro dizia que iria comemorar a morte dela”, relata Souza. Quando a cantora sair do confinamento, a advogada vai decidir se entrará com uma ação de danos morais contra o autor dos ataques. De acordo com a Decradi, o blog surgiu justamente para praticar crimes de ódio contra integrantes do BBB. O ator negro Douglas Silva, outro participante do programa, também foi alvo de ofensas racistas.

“Linn não entrou no reality para bater o tempo inteiro na tecla do identitarismo. Ela está na casa para trocar, dar close na piscina e ir à academia, como todo mundo”, explica Ana Flor. Havia o receio de a cantora acabar no paredão logo na primeira semana de confinamento, a exemplo do que aconteceu com Ariadna Arantes. O temor, no entanto, não se concretizou. Na segunda semana dentro da casa, Linn procurou seguir uma rotina normal e fez o que os solteiros costumam fazer durante o programa: beijar na boca – no caso, a da atriz e cantora Maria. Mesmo assim, numa edição até o momento considerada insossa devido à falta de atritos, os temas que mais têm motivado controvérsias nas redes sociais partem da travesti. Linn se refere a si mesma no feminino e tatuou na testa a palavra “ela”, mas isso não impediu que alguns participantes a tratassem no masculino.

A modelo Eslovênia Marques a chamou de “amigo” em mais de uma ocasião. A cantora, sem alterar o tom de voz, apontou o equívoco: “Não dá para ficar mais errando.” A médica Laís enviou um torpedo para Linn em que perguntava: “Você está solteiro?” O gerente comercial Rodrigo Mussi, numa numa conversa com outros integrantes da casa, usou o termo pejorativo “traveco” como sinônimo de travesti. Ecoando o burburinho das redes, o novo apresentador do programa tocou no assunto ao vivo. Linn esclareceu, então, que se reconhece como travesti e que gostaria de ser tratada sempre no feminino. Contou, ainda, que fez a tatuagem no rosto para que sua mãe, empregada doméstica, parasse de errar o uso do pronome. 

 

Paulistana, a cantora negra de 31 anos cresceu entre Votuporanga e São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. Foi abandonada pelo pai e criada por uma tia durante parte da infância. No início da vida adulta, depois de trabalhar num salão de beleza, ganhou uma bolsa para estudar dança contemporânea na capital do estado. Mais tarde, fez dramaturgia na Escola Livre de Teatro de Santo André. “No terceiro ano do curso, enquanto ensaiava uma peça, ela sentiu umas dores”, relembra Thiago Félix. Exames detectaram um câncer de próstata. Após o tratamento de quase um ano, nasceu a artista Linn da Quebrada. Uma de suas principais músicas se chama Bixa Travesty, cuja letra diz: “Eu já cansei de falar, já perdi a paciência/Você finge não escutar, abusa da minha inteligência/Mas eu tô ligada, seu processo é muito lento/Vou tentar te explicar mais uma vez o fundamento.”

A trajetória da cantora serviu de mote para um filme também batizado de Bixa Travesty. Dirigido por Claudia Priscilla e Kiko Goifman, o longa-metragem ganhou o prêmio de melhor documentário com temática LGBTQIA+ no Festival de Berlim de 2018. No Festival de Brasília do mesmo ano, mereceu uma menção honrosa e mais dois prêmios: o de melhor trilha sonora e o do júri popular. Pela última conquista, a mais importante do festival, receberia 200 mil reais da patrocinadora Petrobras para que fosse distribuído em pelo menos dez salas e três cidades durante os primeiros noventa dias de lançamento. Entretanto, apenas metade desse valor foi paga. “Veio o governo de Jair Bolsonaro, e toda a política cultural do país mudou. Por isso, atrasamos o lançamento e tivemos de colocar o filme em menos praças do que planejávamos”, conta Claudia Priscilla.. O documentário está disponível no catálogo do Globoplay. 

Antes do BBB, Linn havia participado como jurada do programa Amor e Sexo, na Globo, como atriz na série Segunda Chamada, também na Globo, e como apresentadora do programa TransMissão, no Canal Brasil, ao lado de outra travesti, Jup do Bairro. As três semanas que já passou no reality ampliaram muitíssimo o alcance da cantora nas redes sociais. Seus seguidores no Instagram saltaram de 330 mil para 1,7 milhão. Os do Twitter, de 192 mil para 469 mil. No Spotify, suas músicas estão sendo executadas três vezes mais do que no fim de 2021. “Claro que os números são importantes, mas Linn entrou na casa para que o Brasil todo vote numa travesti e a faça ganhar o prêmio de 1,5 milhão de reais”, diz Thiago Félix. 

Entre os materiais que a equipe da artista preparou com o intuito de levantar discussões durante a permanência dela no BBB, está um vídeo que até agora soma 75 mil visualizações no Instagram: “O que venho propor é disputa. Eu estou disputando territórios. Tipo War, né? Eu disputo ocupar o espaço de ser travesti e de reinventar um imaginário social, para que, quando eu diga ‘travesti’, o que surja na cabeça de vocês sejam outras imagens. Se antes as imagens que vinham estavam ligadas à prostituição, à violência e à morte, eu proponho algo além disso. Quero que vocês consigam pensar em ter filhos travesti.” O vídeo foi gravado poucos dias antes de Linn entrar no reality. Outros deverão ser divulgados nas próximas semanas.

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