Os “test drives” de bombas de insulina de uma mesma empresa – a Medtronic, maior fabricante mundial de dispositivos de saúde –, oferecidos todo mês em associações de diabéticos no interior de São Paulo. A médica amiga de um representante comercial da Medtronic, que só indica produtos da marca para os pacientes. E pelo menos 116 decisões judiciais que condenam o Sistema Único de Saúde a pagar por dispositivos da empresa, o que representou gastos de 1,7 milhão de reais aos cofres públicos nos últimos cinco anos. O lobby da Medtronic pelo estado de São Paulo, esmiuçado pela piauí nas últimas três semanas, é alvo de críticas do conselho de medicina paulista, o Cremesp. “Um médico que mantém relações com fabricantes de dispositivos médicos e privilegia a marca em suas decisões fere gravemente a ética da profissão. Ainda que não haja benefício financeiro na relação, ele induz o paciente por meio de sua autoridade”, afirmou o presidente da entidade, Mario Jorge Tsuchiya.
Entre os dias 25 e 29 de novembro, a piauí publicou reportagens da série Implant Files, coordenado pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ. O projeto reuniu 252 profissionais de 59 veículos de 36 países, que investigaram dezenas de fabricantes e distribuidoras de dispositivos médicos em todo o mundo. Uma das reportagens abordava em detalhes o cartel construído por quatro fabricantes de dispositivos médicos para burlar licitações do SUS no Brasil, entre elas a gigante Medtronic. O lobby da empresa não se restringe às concorrências públicas. Passa por um trabalho contínuo de convencimento de médicos, advogados e pacientes, que deságua na Justiça e, por fim, nos cofres do SUS.
O Tribunal de Justiça de São Paulo lidera o ranking de ações judiciais por demanda de medicamentos no país. Foram 45,9 mil em 2017, segundo o Conselho Nacional de Justiça. Nos últimos cinco anos, entre 2014 e 2018, juízes paulistas assinaram 152 sentenças em que portadores de diabetes pedem especificamente bombas de insulina – dispositivos que aplicam automaticamente o hormônio no paciente – do tipo Paradigm VEO MMT-754, fabricadas pela Medtronic. O levantamento da piauí não considera decisões em que a marca não é citada explicitamente na sentença. Em 116 delas, ou 76% dos casos, o magistrado condenou a Fazenda do estado de São Paulo a pagar pelo equipamento, que custa 19 mil reais, incluindo os custos mensais com a manutenção. Nas demais 35, ou o pedido foi negado ou o juiz faculta ao estado a escolha da marca. A título de comparação, nesse mesmo período, foram 41 decisões do Judiciário paulista favoráveis a pedidos de bombas da Roche, única concorrente da Medtronic na venda desse tipo de equipamento no Brasil.
No levantamento dos municípios paulistas em que a Justiça mais concedeu esse tipo de decisão, a cidade que lidera é Sorocaba, com 23 sentenças nos últimos cinco anos, todas favoráveis às bombas de insulina da Medtronic. Ourinhos vem em seguida, com sete decisões, e depois vem São José do Rio Preto, com seis. Para efeito de comparação – e para dar uma medida da força do lobby da Medtronic nessa região do interior paulista –, São Paulo, Guarulhos e Campinas, as três cidades mais populosas do estado, registraram no período, somadas, seis sentenças favoráveis às bombas da empresa.
Uma das justificativas para a prevalência de Sorocaba no ranking atende pelo nome de Rui Carlos Gaspar, 55 anos, representante da Medtronic na região. Desde 2010, mensalmente, Gaspar e outros funcionários da empresa dão palestras sobre as vantagens da bomba para portadores de diabetes na sede da Associação de Diabetes de Sorocaba. A Roche veio depois, em 2016. Robson Roman Luques D’Angelo, advogado da associação, disse que os médicos são os responsáveis por encaminhar pacientes às palestras (depois, D’Angelo mudou a versão, e afirmou que os pacientes se informam sobre os encontros pelo WhatsApp). Após apresentar as vantagens dos seus produtos, as duas empresas instalam o equipamento nos pacientes pelo período de trinta a quarenta dias, como teste. A Medtronic oferece o serviço de graça, enquanto a Roche cobra uma taxa para o “test drive”, como é chamado – a entidade não informou o valor.
A bomba de insulina tem o tamanho de um celular e geralmente é presa na região do abdome. Normalmente é indicada para portadores de diabetes do tipo 1, em que o organismo não produz insulina em quantidade suficiente para metabolizar o açúcar ingerido. Do equipamento sai uma agulha subcutânea que injeta o hormônio no corpo. Sempre que se alimenta, o paciente precisa informar a quantidade de carboidratos ingerida para que a bomba calcule a quantidade da substância a liberar no organismo. Outro modo de controlar a diabetes é injetar manualmente a insulina, técnica mais barata (300 reais por mês, em média; a bomba custa cerca de 2 mil reais mensais). “A bomba é um ‘plus’, uma comodidade. Não se controla a doença só com o equipamento e nem há prejuízo à saúde pela falta dele. Basta aplicar [insulina] várias vezes ao dia”, afirmou Miguel Nasser Hissa, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Em janeiro deste ano, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, a Conitec, refutou o uso da bomba pelo Sistema Único de Saúde. “[…] De fato, existem importantes lacunas no conhecimento em relação à capacidade relativa dessas tecnologias para alcançar um melhor controle glicêmico e reduzir o risco de hipoglicemia […] Além disso, destacamos a ausência de evidências sobre eventos adversos, complicações tardias do diabetes, mortalidade e custo relacionados ao uso do SICI [bomba de insulina]”, apontou o estudo.
Nos últimos cinco anos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, registrou três ocorrências de problemas com bombas de insulina, ambas da Medtronic. As ocorrências, deste ano e de 2017 – uma sobre a dificuldade de acionar um botão do aparelho, outra a respeito do risco de o sinal do controle remoto da bomba ser interceptado e a terceira sobre a possibilidade de administração excessiva do hormônio –, foram solucionadas, segundo a Anvisa. É um número irrisório se comparado aos registros feitos nos Estados Unidos, onde, no mesmo período, foram reportados 306 mil problemas com o mesmo equipamento, que resultaram em 1,1 mil mortes e 70,4 mil complicações. A agência reguladora norte-americana, a FDA, é considerada modelo no registro e acompanhamento de problemas relacionados a dispositivos de saúde.
Na Associação de Diabetes de Sorocaba, prevalecem os pontos positivos do equipamento. “O paciente vai e fala para o médico: gostei e quero usar. […] Se ele gostou, se adaptou, nós temos na associação um serviço que é ação judicial para receber do estado, porque uma bomba de insulina é cara. […] Ganhando a ação judicial, ele passa a receber mensalmente da Divisão Regional de Saúde [em Sorocaba, subordinada à Secretaria de Estado de Saúde]. O enfermeiro da Medtronic vem e faz na associação a manutenção da bomba, uma vez por mês”, explicou a coordenadora da entidade, Eliete Venturini.
Das 23 ações judiciais em que pacientes de Sorocaba conseguiram as bombas da Medtronic, 19 foram propostas por D’Angelo, o advogado da associação. Entre os que conseguiram tanto a bomba quanto os benefícios da Justiça gratuita, em que o paciente fica livre de pagar eventuais taxas judiciais, estão uma médica, um dentista e uma engenheira agrônoma. “Sei que essa é uma questão polêmica, mas a Constituição prevê que todos têm direito a saúde, seja rico, seja pobre”, disse o advogado. D’Angelo afirmou que não recebe gratificação da Medtronic. “Queria que menos pessoas me procurassem, mas são muito raros os casos em que o paciente recebe o equipamento por meio de pedido administrativo ao estado. Então, só resta buscar a Justiça.”
Nas 23 ações na Vara da Fazenda Pública de Sorocaba, os advogados dos pacientes pedem expressamente que os produtos sejam da Medtronic. Os orçamentos apresentados à Justiça para a bomba e os insumos são sempre semelhantes, entre 19,3 mil reais e 19,5 mil reais. “Sem a utilização de tais medicamentos o autor corre risco de sofrer danos irreparáveis a sua saúde e, principalmente, a sua vida, pois sofre de doença grave”, aponta uma das ações, de 2017 – os termos se repetem em todos os pedidos, com poucas variações. Não há timbre da empresa nas ações, e sim uma planilha com os preços das bombas e seus acessórios seguido do nome do representante comercial Rui Carlos Gaspar, sem assinatura.
Treze dos processos judiciais contêm receitas médicas, assinadas pela endocrinologista Suziane Angelita da Conceição – é ela quem especifica tanto a bomba da Medtronic quanto insumos fabricados pela empresa. “Por um mês a paciente usou bomba de insulina da Medtronic. Durante o período de testes, obtivemos ótimos resultados, com melhora do controle glicêmico e diminuição do número de hipoglicemias. Como a paciente […] não pode arcar com os custos do mesmo, solicito o fornecimento do sistema Paradigm VEO MMT-754, que consiste na bomba de insulina, além dos insumos mensais e materiais pertinentes ao equipamento”, apontou a médica em uma das ações, de 2017. Conceição e o representante comercial Gaspar são amigos no Facebook, com interações frequentes na rede social.
A dona de casa Gislaine de Fátima Machado, de 37 anos, que luta há onze contra a diabetes, também é paciente de Suziane Conceição e conta qual caminho seguiu até decidir entrar na Justiça. “Por indicação da doutora Suziane, procurei a associação, e o advogado ingressou com processo [na Justiça].” Ela afirma que a bomba melhorou sua qualidade de vida. “Diminuíram muito minhas infecções urinárias”, disse à piauí. Conceição não respondeu aos pedidos de entrevista, e nem os recados deixados em seu consultório particular, em Sorocaba.
Nas demandas judiciais, o governo paulista argumenta que a bomba não é essencial à sobrevivência do diabético. “A bomba de infusão de insulina não é um item indispensável à sua sobrevida, mas uma tecnologia que traz comodidade ao paciente. […] Incabível disponibilizar a um paciente um aparato tecnológico que proporcione comodidade ao custo superior a 20 mil reais iniciais e 3 mil reais mensais, sendo que poderia fazer pelo custo de pouco mais de 300 reais. Diferentemente se fosse um aparelho para um portador de câncer, onde traria a sua cura ou ainda sobrevida”, escreveu Alexandre Yano, representante do Departamento Regional de Saúde de Sorocaba. O argumento não convenceu o juiz Alexandre Dartanhan de Mello Guerra, titular da Vara da Fazenda Pública local. Ele assina metade das 22 sentenças pró-pacientes, e, nesses casos, também pró-Medtronic.
“Existe uma falha do Judiciário ao não questionar o órgão público se há produtos similares, de outras marcas”, afirmou o presidente do Cremesp, Mario Tsuchiya. Ele disse que o órgão pretende discutir a questão com representantes do Ministério Público e do Judiciário. Procurada pela piauí, a Promotoria do Patrimônio Público de Sorocaba informou, por meio de sua assessoria, que desconhece o caso e que denúncias podem ser feitas pela ouvidoria da instituição.
Uma pequena nota na edição anual de 2013 da revista Jeito de Viver, uma publicação da Associação de Diabetes Juvenil de São Paulo, trazia um balanço da atuação da Medtronic na Associação dos Diabéticos de Ourinhos: “Durante os meses de janeiro até novembro de 2013, foram realizadas a colocação de quatro bombas de insulina. Todas instaladas na própria associação pela enfermeira Elaine Matukawa, da Medtronic, com a colaboração do médico endocrinologista Antonio Carlos Abujamra, que acompanha estes pacientes na associação. Foi um grande avanço, pois facilitou muito a vida desses jovens adolescentes.”
Três médicos assinam os laudos que pedem bombas de insulina da Medtronic para os sete pacientes que conseguiram na Vara do Juizado Especial Cível de Ourinhos o direito de receber o produto do SUS. Além de Abujamra, Fernando Celso Bessa de Oliveira e seu filho, Felipe Martins de Oliveira. Todos trabalham ou trabalharam na Associação dos Diabéticos de Ourinhos. Na entidade, quem faz o lobby da Medtronic há oito anos, incluindo o “test drive” da bomba, é a enfermeira Matukawa. “Às vezes as pessoas questionam: mas por que só a Medtronic? É que ela é a mais presente, a que apresenta o serviço, as novidades. Então temos mais contato. A Roche chegou a apresentar alguma coisa, mas não voltaram”, disse Sônia Aparecida Dias Garcia, enfermeira da associação. Ela disse que a entidade não recebe nenhuma gratificação por parte da empresa. “Apenas cedemos o espaço.” Abujamra e Fernando Oliveira aposentaram-se recentemente, segundo Garcia, e não foram localizados pela reportagem.
Em entrevista à piauí, Felipe Oliveira argumentou que a bomba da Medtronic tem vantagens tecnológicas em relação à da concorrente, como um sensor de glicose, ausente no equipamento da Roche. Segundo ele, atualmente trinta pacientes de Ourinhos usam a bomba dessa marca – 28 deles obtiveram o equipamento por via judicial (o número abrange período maior do que cinco anos). O médico diz não receber gratificação da Medtronic. “Seria antiético.” Uma de suas receitas médicas para paciente diabético indicando especificamente a bomba de insulina da Medtronic, anexada a um dos processos na Justiça, traz o logotipo da Prefeitura de Ourinhos e, logo abaixo de sua assinatura, o aviso: “Conforme resolução estadual SS-126, de 13/08/2009, utilizar a nomenclatura genérica dos medicamentos.”
Em São José do Rio Preto, cinco das seis ações judiciais que concederam bombas da Medtronic a portadores de diabetes têm o laudo médico assinado pelos endocrinologistas Marco Antonio Fernandes Dias e seu filho, Fabio Guirado Dias – um dos processos tramita em sigilo e não é possível saber qual médico indicou os produtos. “Hoje falta concorrência nesse mercado. A Medtronic domina. Eu recebo mensalmente visitas de representantes da empresa. Já da concorrente, a Roche, nunca recebi.” Ele afirmou não ter relações comerciais com a empresa. “Eu não imponho a bomba ao paciente. Mas alguns apresentam quadro clínico que exige o equipamento.”
Apesar de mais tímido, o lobby da Roche pelo interior paulista também tem surtido efeito na Justiça. No ano passado, a empresa doou vinte bombas de insulina para a Associação de Diabetes Juvenil, de Birigui. “Pedimos [os equipamentos] para a Roche e para a Medtronic, mas até agora só a Roche fez a doação”, disse Claudia Terensi, enfermeira da entidade. Treze bombas foram cedidas para pacientes em sistema de comodato, e as outras sete ainda estão na associação, à espera de recomendação médica. “A Medtronic ficou de dar um retorno ao nosso pedido [dos equipamentos] em 2019”, afirmou Terensi.
Como a fabricante não financiou os gastos mensais com a bomba, entre 2 mil e 3 mil reais, coube à advogada Gabriela Daloca entrar com ações na Justiça contra a Prefeitura de Birigui – todas foram favoráveis aos pacientes. “Não ingressei contra o estado de São Paulo porque eles costumam desobedecer decisões judiciais”, disse Daloca. A Secretaria Estadual de Saúde negou o descumprimento. A advogada já contabiliza cinquenta ações na Justiça da região pedindo tanto a bomba quanto os insumos, incluindo para ela mesma, que é diabética. “Meu trabalho para a associação é voluntário.”
Em nota, Marcos Hume, diretor de relações públicas da Medtronic no Brasil, atribui a predominância da marca nos pedidos judiciais de bomba de insulina à liderança da empresa no setor. “A Medtronic é atualmente considerada líder de mercado em tecnologia de bomba de insulina globalmente e, como resultado, tem mais participação de mercado […]. Portanto, não é surpreendente que mais pacientes estejam solicitando nossos dispositivos por meio de programas de reembolso do governo.”
Hume defendeu a presença de representantes da empresa em entidades que reúnem portadores de diabetes. “A educação do paciente por meio destas fontes não é, por si só, imprópria ou ilegal. A Medtronic cumpre com todos os regulamentos e leis que regem este tipo de atividade educacional. Nosso compromisso com as associações de pacientes é baseado no respeito pela condição dos pacientes e na necessidade de apoiar os esforços para aumentar a conscientização da sociedade sobre uma doença específica, e não sobre a venda de qualquer um de nossos produtos.” Leia a íntegra da nota da Medtronic.
Já a Roche afirmou, também por meio de nota, que doações de produtos para as entidades podem ocorrer “com o objetivo de promover a conscientização” sobre como lidar com a doença, mas a escolha da terapia “fica sob a decisão do médico responsável”.
Procurada pela piauí, a assessoria do Tribunal de Justiça paulista não comentou diretamente as decisões pró-Medtronic por parte de seus juízes. Informou apenas que há limites para o “exercício da função jurisdicional”, como “a necessidade de que as decisões judiciais sejam fundamentadas”, a ampla defesa e o contraditório, o duplo grau de jurisdição (primeira e segunda instâncias) e “mecanismos de correção das possíveis arbitrariedades do juiz”, como mandados de segurança.
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Atualizações: Esta reportagem foi atualizada à 12h31 de 19 de dezembro de 2018, com a inclusão da nota enviada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e às 21h23 de 21 de dezembro, para incluir as informações prestadas pela Roche.