minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Paulo Gustavo e Fil Braz na juventude - Acervo pessoal: Fil Braz

depoimento

O amigo genial

Um ano depois da morte de Paulo Gustavo, roteirista parceiro em vários trabalhos do humorista relembra juventude ao lado do criador de Minha Mãe É uma Peça

Fil Braz | 04 maio 2022_10h11
A+ A- A

Em depoimento a Tiago Coelho

Depois que Paulo Gustavo morreu, pensei em escrever umas memórias que chamaria de Cartas para Romeu e Gael. Queria deixar para eles o testemunho da experiência de ter tido um amigo tão parceiro como foi o pai deles. Para eles lerem quando tiverem 16 anos. Os meninos nasceram num momento de muito retrocesso no Brasil. Pensei em escrever: vocês não fazem ideia do que era ser gay em Niterói nos anos 1990… Apesar de tudo, era ótimo.

Em Niterói se tem uma vida de bairro. Todo mundo se conhece. Minha mãe conhecia Déa Lúcia, mãe de Paulo Gustavo, da convivência no bairro de Icaraí. Entrando na adolescência, eu só o conhecia dos relatos lá em casa: “O filho da Déa pintou o cabelo de colorido! O filho da Déa botou brinco no nariz!” Eu ficava curioso em saber quem era o tal filho da Déa de que tanto se falava. E, pelo que se falava, eu já sacava que era gay, feito eu. O que viria descobrir é que a avó dele morava no mesmo prédio que a minha.

Um dia, saindo do prédio de minha avó pela portinha da garagem, quando eu ia botar a mão na maçaneta, a porta se abriu de supetão. Tomei um susto. Era Paulo Gustavo. Na época, eu tinha lido Brida, do Paulo Coelho. E o livro dizia que a gente reconheceria nossa alma gêmea, assim que a olhasse, pelo brilho no olhar. Foi mágico quando eu o vi. A gente se encarou. Pelo piercing, pensei: é o filho da Déa. Anos depois, por tudo o que vivemos juntos, vi que o livro tinha razão. Aquele momento eram duas almas se reconhecendo.

Conheço Paulo Gustavo desde os meus 15 anos. Eu sou de 1980 e ele de 1978. Um ano e meio de diferença. Depois do nosso encontro na porta da garagem, me aproximei de Paulo na boate Madame Kaos, que ficava no Saco de São Francisco, um reduto de bares e boates heteronormativas de Niterói. A Madame Kaos foi o reduto dos undergrounds de Niterói. E era frequentada por clubbers, uma tribo dos anos 1990 que ouvia tecno, house, usava boné de vinil, botas, roupas e cabelos coloridos. Não era a intenção da casa ser uma boate gay, mas atraiu tão fortemente a atenção desse público que ficou “mal falada” na cidade. E começaram a proibir beijos homossexuais. Alguns amigos nossos chegaram a ser barrados na entrada. Mas mesmo assim todos se beijavam. Depois, a Madame Kaos reformulou a programação para mudar o perfil dos clientes, ou seja, ela não nos queria. Passamos a frequentar points no Rio como a boate Dr. Smith e o Mercado Mundo Mix.

Lembro de assistir ao programa Gente de Expressão, na TV Manchete, onde a Bruna Lombardi entrevistava um monte de artistas como Ney Matogrosso, Fernanda Torres, Sônia Braga, todos dizendo coisas modernas, abertas, livres. Era um momento pós-ditadura. Éramos filhos da Madonna, do Mick Jagger, do David Bowie.

Claro que não era tudo uma festa. Meus pais eram conservadores. Eu tinha medo de falar de minha sexualidade. Mas quando olhávamos o mundo lá fora, víamos artistas importantes referendando quem nós éramos, nossos desejos. Me sentia acolhido. A mãe da minha melhor amiga da escola descobriu que eu era gay e contou para minha mãe. Foi bem ruim. Minha mãe ficou quase um ano sem falar direito comigo em casa. Ela proibiu o pessoal lá em casa de passar telefonemas para mim, quando meus amigos ligavam.

Mas eu tinha que ir para a escola e encontrava lá meus amigos. E me sentia autorizado a desafiar quem praticava bullying. Raspei o cabelo, usava óculos de abelha, calças largas. Queríamos chocar com o visual. Ser clubber e ser gay ficava sempre meio misturado. Éramos quase uma gangue. “Estão olhando? É pra olhar mesmo”, dizíamos quando alguém passava. Nos sentíamos protegidos juntos. Paulo Gustavo todo dia passava na minha escola na hora da saída. Para quê? Fogo no rabo. Meio-dia e meia ele sabia que ia ter aquele furdunço na saída. Ele ia encontrar as pessoas, bater papo, sempre gostou disso.

Madonna, a maior pop star do mundo, falava de sexo o tempo todo, sempre cercada de gays. Todos os adolescentes tinham visto Na cama com Madonna. Falar merda reaça era coisa de político, do Sarney, de gente muito velha. Parecia que o mundo seria o que a Madonna propunha. Parecia que a modernidade venceria. Havia uma esperança.

Paulo Gustavo estudou até um certo ponto, depois fez supletivo e terminou a escola antes. Tinha muito mais tempo que todo mundo. Eu estava no ensino médio. Depois da escola, por volta das 14 horas, ele tocava o interfone lá em casa. 

“Tá fazendo o quê?”, ele perguntava.

“Nada”, eu respondia, mas cheio de exercícios para fazer.

“Ah, então vamos dar uma voltinha na Moreira César?”, ele propunha.

A Rua Coronel Moreira César é cheia de lojas, de gente circulando. Do fervo, como Paulo Gustavo sempre gostou. Se você o chamasse para sentar num barzinho para tomar cerveja, ele não queria. Gostava mesmo de bater perna, atazanado, para cima e para baixo. Queria o agito, ver gente bonita e interessante.

Passávamos uma tarde inteira de bobeira e fumando. Pedíamos cigarro para estranhos na rua. Antes de pedir o cigarro, ficávamos avaliando as pessoas para não dar bola fora. Quando passava alguém fumando com a cara fechada, a gente dizia: “Essa daí não vai dar, não. Está com cara de que está cheia de ódio.” Fazíamos toda a biografia da pessoa, sem nunca tê-la visto na vida. “Essa acordou cedo, brigou com o marido, passou no banco. Aquela ali está tranquilona, pode pedir para ela.” Um dia pedimos para uma mulher bonita, muito bem vestida, que disse: “Você traga?” A gente disse que sim. Ela respondeu debochada: “Então traga seu cigarro de casa.” A gente gargalhava. Achamos a mulher maravilhosa. Tínhamos essa coisa de observar os tipos humanos na rua. Acho que tudo começou ali.

Dia desses eu estava andando pela Moreira César e lembrei muito da gente. Eu era muito tímido. Paulo Gustavo me levava para dentro das lojas e me botava para experimentar roupas. Eu morria de vergonha de entrar em loja. Ele não tinha vergonha de nada.

Eu gravava os episódios do programa da Globo A Comédia da Vida Privada, em VHS. Paulo me fazia andar com elas numa mochila. E parávamos na casa de amigos. Ele dizia: “Vem cá, tem vídeo cassete? Quero te mostrar uma cena de Fernanda Torres, hilária.” Antes de botar a fita, encenávamos, eu e ele, a esquete para as pessoas, que morriam de rir.

Paulo Gustavo passou a dizer: “A gente tem que escrever uma peça maneira e mandar para Fernanda Torres.” Eu pensava: Paulo Gustavo é maluco. Para mim, escrever para famosos era um universo inalcançável. E ele insistia: “A gente é engraçado, tem um jeito muito nosso. A gente não é igual aos outros.” Com o Paulo era assim, sempre a gente.

Eu fui cursar letras na Universidade Federal Fluminense. Virei professor concursado numa escola pública. A essa altura, Paulo Gustavo tinha se formado na Casa das Artes de Laranjeiras. Já era ator. E sempre dizia: “Você é um literato, tem que escrever.” Na primeira metade dos anos 2000, a peça Surto esteve em cartaz em Niterói. Samantha Schmütz, nossa amiga, fez uma participação. Depois da peça, saímos com a equipe para um bar. Paulo, sempre hilário, acabou sendo convidado para uma participação na peça. Perguntaram se ele tinha um personagem. Mesmo não tendo, disse que tinha.

Fomos para a casa de Samantha criar uma esquete de cinco minutos para ele se apresentar. A Samantha sugeriu que ele imitasse a mãe, coisa que ele fazia muito bem. Ele entrou na sala com uma vassoura na mão. Eu e Samantha sentados no sofá. Paulo Gustavo começou a improvisar. Nós passamos a improvisar junto com ele. Anotamos os improvisos e saiu uma esquete de cinco minutos. A apresentação foi um estouro. Pediram para ele aumentar o tempo. Me juntei ao Paulo e aumentamos para quinze minutos.

Depois dessa peça, Paulo Gustavo ficou desempregado, procurando algo para fazer. Decidiu pegar a personagem Dona Hermínia e transformar numa peça. Ele pediu que eu escrevesse algo e mandasse para ele. Não pude me dedicar integralmente como ele precisava, mas mandei alguns escritos. Ele disse: “Não. Está muito literário, formal.” Mas ele usou algumas piadas e comentários que fiz no texto. Acabei colaborando com os quinze minutos que havíamos feito juntos para a esquete e algumas piadas do texto que enviei. Mas Minha Mãe É uma Peça foi uma criação dele. Uma vez Paulo Gustavo me disse que a terapeuta dele falou que ele exumou Minha Mãe É uma Peça. Botou tudo que estava dentro dele para fora.

Minha Mãe É uma Peça estourou e o Paulo achou que era hora de levar a Dona Hermínia para o Zorra Total, da Globo. Eu achava que não tinha nada a ver. E dizia a ele: cara, a tevê a cabo é muito mais maneira, mais moderna. Mas fomos ver no que ia dar. Escrevemos cinco esquetes e fomos mostrar na redação do Zorra Total. Eles adoraram. Entramos no carro para ir embora. Paulo Gustavo ficou em silêncio. Quando ele ficava pensativo, parecia que o olho dele virava para dentro. “Não sei se quero levar a personagem para o Zorra”, ele disse. E falei: “Amooor, estou te falando isso há muito tempo. Não tem nada a ver a personagem perdida ali no meio de várias outras. A gente tem que fazer uma coisa mais GNT, igual Fernanda Young e Alexandre Machado.” Invertemos o papel. Passei a dizer para ele: “A gente é diferente.” Na mesma hora ele pegou o telefone e avisou à equipe do programa que não queria mais levar o personagem para lá. Eles entenderam. E sugeriram que eu entrasse na redação. Eu era professor do estado. Ganhava 870 reais por mês. Se fosse contratado como redator do Zorra Total, ia ganhar muito mais. Mas não queria, eu ia diluir ali dentro. Escrever para um monte de gente que não conheço. Mais um nome ali perdido. E se para o Paulo era “eu e Felipe”, para mim era “Eu e Paulo”.

Em 2010, escrevemos Hiperativo, peça de esquetes. No mesmo ano, Paulo Gustavo disse que conhecia a produtora Iafa Britz, que havia feito a produção de filmes como Divã, Se eu fosse você. Ela topava produzir uma adaptação de Minha Mãe É uma Peça para o cinema. Ficamos de sentar para escrever, mas fomos adiando. Até que em dezembro o Paulo disse que ela precisava botar o roteiro num edital até fevereiro de 2011, mesmo que fosse uma ideia inicial. A Iafa achava difícil terminar um roteiro em um mês, ainda mais porque não tínhamos experiência com longa-metragem. Paulo Gustavo disse: “A gente consegue.” E sou do signo de satanáries. Sentei na frente do computador em janeiro e escrevi. Ele estava gravando a série Divã e nos falávamos por telefone, e-mail, ele dizendo para mudar isso e aquilo. Conseguimos. Paulo Gustavo tinha isso, ele não gostava de mandar texto. Achava que se a pessoa lesse sozinha em casa, não entenderia o humor do texto. Ele precisava interpretar a fluidez, o ritmo, o jeito dele de falar o texto. A Iafa disse: “Acabam de nascer duas estrelas do cinema nesta sala.”

Mas cinema é demorado. Ficou nas mãos dos produtores. Nesse meio-tempo, surgiu um convite do canal a cabo Multishow para Paulo Gustavo apresentar um programa. Ofereceram a ele vários roteiristas famosos. E ele disse: “Não. O roteirista vai ser Felipe, meu amigo lá de Niterói.”

Foi feito um piloto do programa 220 Volts. Numa sala, a direção assistiu, adorou e aprovou. Nos pediram um prazo para entregar doze programas. Eu não era profissional ainda. Chutei quarenta e cinco dias para entregar doze episódios. Eles concordaram e perguntaram se iríamos querer ajuda para escrever. Paulo Gustavo disse: “Não. Só nós dois. Mais ninguém.” Eu ponderei. Disse que faríamos, mas que, se atrasássemos, acenderíamos a luz amarela e pediríamos socorro.

Saímos da reunião e voltamos para Niterói no carro do Paulo. “Você peidou na farofa, hein”, ele disse. Eu respondi: “Não, não, não. Eu falei por mim. Não posso dizer que dou conta sozinho. Eu preciso de você. Você está com peça e agenda cheia. Por isso titubeei.” Ele ficou em silêncio. Revirou os olhos para dentro de si e disse: “Entendi. Não se preocupe, a gente vai estar super junto nessa.” Deu uma pausa e provocou: “Mas você deu uma peidada.”

O 220 Volts bombou no Multishow. Em dezembro de 2012, eu estava dando aula para uma turma do ensino médio no Colégio Estadual Joaquim Távora, quando um aluno olhou pela janela: “Olha ali, professor, aquele teu amigo, o ator careca do Multishow.” Era o Paulo Gustavo filmando uma das cenas finais do filme Minha Mãe É uma Peça em que Dona Hermínia se reconcilia com os filhos no Campo de São Bento. Entreguei as notas finais, liberei a turma e desci para ver as filmagens. Paulo me pediu para ajudar com o improviso de uma piada. Foi o meu último mês na escola. Pedi exoneração. Como desejava na adolescência, tinha virado roteirista. Minha Mãe É uma Peça estreou em junho de 2013. Um sucesso (o filme brasileiro mais assistido aquele ano, 4.600.145 ingressos vendidos). Vieram duas outras continuações.

No primeiro, botamos muita coisa da nossa vida. Dona Hermínia diz no filme que o filho, Juliano, sempre foi “diferente”. E sofria bullying na escola. Quando o filho é adolescente, ela o chama para conversar, desconfia de que ele é gay. Pergunta das boates e amigos com quem convive, mas não é direta. Juliano a desafia: “Mãe, o que você quer saber?”A cena mostra que Hermínia não reage facilmente de cara, mas ela já sabe. E Juliano mostra uma coragem em desafiar. Que era a coragem que a gente tinha em nossa adolescência.

Em dezembro de 2015, Paulo Gustavo se casou com Thales Bretas. Antes de começarmos a escrever Minha Mãe É uma Peça 3, Paulo disse que a única coisa que ele tinha certeza era que o Juliano se casaria no filme. Ainda que o casamento fosse uma das tramas principais, o filme é contado sob a ótica da Hermínia. Na hora de escrevermos o roteiro, não discutimos a questão do beijo. Às vezes o beijo pode ser descrito no roteiro, mas não foi o caso. Se rolasse o beijo, faria parte da mise en scène do casamento, como tantas outras (mise en scène são os elementos que compõem uma encenação. No caso de um casamento, a entrada dos noivos até o altar, a troca de alianças e até um beijo). Na hora de gravar foi que se pensou sobre isso. Vai ter beijo? Não vai ter beijo? Eu não estava no dia da gravação dessa cena. O que sei sobre isso é que Paulo Gustavo tinha uma visão estratégica. O objetivo dele era se comunicar com todo mundo. Não afastar ninguém.

E ele intuía que um beijo poderia causar polêmica e desviar o foco do que interessava. Talvez, se tivesse um estalinho bobo, os sites dariam manchetes alarmadas: “Há um beijo gay no filme!” Somos tão carentes dessa imagem, e o Brasil se tornou tão careta, que aconteceria um estardalhaço. E o foco seria o beijo, quando o que queríamos era mostrar uma mãe casando um filho homem com outro homem. E com ela discursando sobre o amor.

A decisão se provou acertada. Paulo Gustavo era ousado, mas tinha uma visão estratégica. Muita gente criticou o filme antes de ter visto. O triste dessa história foi ter sido criticado por aliados. É um filme protagonizado por um cara assumidamente gay, com um roteirista assumidamente gay. O que não faltava nesse filme era viado. Quando o filme foi lançado, as pessoas que criticaram se retrataram.

Recebi muitas mensagens dizendo: “Fui ver o filme com minha mãe e nós nunca havíamos conversado sobre isso e, na hora da cena do casamento, minha mãe segurou a minha mão.” O filme furou bolhas. Para além do filme, Paulo Gustavo furava bolhas. Ele sempre fez pontes entre diferentes grupos. Ia para boates gays, andava com gays, mas nunca se isolou. Tanto que quis ser artista e visto por todo mundo. Minha Mãe É uma Peça 3 foi visto por mais de 11,5 milhões de pessoas. A maior bilheteria do cinema brasileiro.

Na pandemia, Paulo Gustavo se isolou na serra fluminense. Me ligava todos os dias. Sempre procurou muito os amigos. Não deixava ninguém se afastar. Ele mergulhou na paternidade, na vida familiar com o Thales. Descobriu o prazer de ficar quietinho. “As pessoas achavam que eu não ia aguentar, mas estou adorando”, ele dizia. Fiz um teste de Covid e fui visitá-los na serra. Trabalhamos juntos, por videoconferência, no roteiro da série Minha Mãe É uma Peça para a tevê e depois em um especial de fim de ano para a Globo.

Em janeiro de 2021, decidi que me mudaria para Salvador. Dia desses, Susana Garcia, diretora de Minha Mãe É uma Peça 3, me contou que ele dizia para ela: “Susana, a gente vai perder Felipe. Não estou gostando disso de ele mudar para Salvador. Ele vai se perder da gente lá.” Ele falava meio zoando, meio sério.

No início de 2021, meu pai ficou seis semanas internado e morreu em fevereiro. Foi fazer uma cirurgia de intestino, pegou Covid no hospital e, depois de recuperado, teve uma infecção e morreu. Paulo Gustavo me ligava todos os dias para saber como eu estava. Ele era muito ligado no assunto morte. Quando diziam para o Paulo que alguém havia morrido, ele ficava mexido. Achava a morte um assunto intrigante. 

Algumas semanas depois, em março de 2021, Paulo Gustavo pegou Covid. No quinto dia de sintoma, ele estava bem. Falando, fazendo piadas. Pelo sétimo dia, teve uma piora e foi hospitalizado. Ele me mandou uma mensagem. Dava para ver que ele não estava num estado normal. Algumas palavras eram em caixa alta. Ou frases incompletas. Mesmo o texto escrito sugeria alguém respirando com dificuldade. Algumas diziam: “Meu amigo da vida”, “Quero te ligar, mas eu evito porque choro, me emociono. Mas amanhã vou te ligar. Reza por mim.”

Fiquei surpreso com as mensagens dele naquele momento, e respondi correndo: “Meu amor, você vai ficar bem!” E ele respondeu: “A batalha ainda não está ganha. Ainda posso ser intubado.” Eu só respondia que ele ia ficar bem. Ele me mandou uma foto com um grampo de oxigênio no nariz. Apesar de tudo, estava bonito. Terminamos a conversa dizendo eu te amo um para o outro. Era uma quinta-feira. Na sexta-feira, ele não me ligou mais. Foi intubado no sábado.

O vírus foi muito rápido e devastador depois da intubação. A partir daí vinham sempre notícias de melhoras. Mas eram melhoras com relação às pioras. Durou quase dois meses. Numa terça-feira, dia 4 de maio, eu estava empacotando meus pertences para me mudar para Salvador na sexta-feira. Quando foi por volta de meio-dia, chegou a notícia pelo Whatsapp de que Paulo havia tido morte cerebral. Fiquei catatônico. Não chorei. No automático, empacotei minhas coisas com plástico bolha. Aquela casa que não era mais meu lar. Meu melhor amigo estava indo embora. Fiquei parado olhando o sol lá fora. Fui para a casa de amigos em comum e ficamos juntos. Depois das 21 horas foi confirmada a morte.

Me deu uma sensação de que era aquele o destino dele, a história dele. Viveu três encarnações em uma vida. Depois, eu pensei: foda-se. Foda-se que era esse o destino dele, a missão dele. Eu não queria que fosse assim. São sentimentos muito confusos. Uma aceitação e uma não aceitação ao mesmo tempo.

O luto tem passado por altos e baixos nesse último ano. Um dia, em Salvador, fui à igreja de São Lázaro e São Roque. Decidi ir num dia 4 de outubro, pois queria rezar para o Paulo num dia 4. Quando entrei, o padre começou a falar em São Francisco de Assis. Era dia de São Francisco. Eu não sabia. Paulo Gustavo era devoto dele. Desabei a chorar.

O Réveillon passei com Déa Lúcia, Juju, irmã dele, Thales, as crianças e Malu Valle, atriz e nossa amiga. Foi lindo. Mas sempre tem uma presença da ausência. No dia 23 de abril, dia do desfile da São Clemente em homenagem a ele, peguei uma virose e não pude ir. Acho que fui poupado. Todo mundo disse que foi lindo, mas que no dia seguinte ficava um vazio.

Quando escrever as cartas para as crianças, vou querer que elas conheçam um cara extremamente humano. A estrela, a celebridade, está aí, eles vão saber. Quero que eles saibam do cara que tinha muitos sonhos, sentimentos, desejos, atravessamentos. Uma pessoa com as complexidades de alguém que ousou ser original neste planeta.

Paulo Gustavo, como um grande artista famoso, deve ter imaginado em vida que um dia poderia ganhar uma estátua dele. E ganhou. Tem duas no Campo de São Bento. Mas tenho certeza de que jamais passou pela cabeça dele que a Rua Moreira César levaria o nome dele. E hoje ela se chama Rua Ator Paulo Gustavo. Ele tocou o interfone da minha casa, me fez descer, me pegou pela mão, me botou na rua e me arrastou para a vida.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí