Na primeira quinta-feira do ano, o diretor e roteirista iraniano Asghar Farhadi foi mais bem tratado, no Brasil, do que, na semana anterior, seus dois ilustres colegas Tomasz Wasileswski, roteirista e diretor de Estados Unidos Pelo Amor, e Pablo Larraín, diretor de Neruda. Credenciado pela carreira premiada em vários festivais internacionais, ao estrear no Rio O apartamento, escrito e dirigido por Farhadi, mereceu uma sala digna desse nome, com ar-condicionado funcionando e cinco sessões diárias, tratamento que os filmes polonês e chileno não tiveram, conforme comentado no post do dia 5.
Entre as láureas acumuladas, O apartamento recebeu prêmios de melhor roteiro (Asghar Farhadi) e ator (Shahab Hosseini) no Festival de Cannes, em 2016, foi pré-selecionado com outros 8 filmes para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira e, nessa mesma categoria, concorreu ao Globo de Ouro domingo passado, sem ter sido premiado.
À semelhança de A separação (2011), filme de Farhadi no qual um casal pleitea o divórcio, O apartamento tem os predicados básicos de linguagem realista, narrativa simples e personagens tratados com dignidade, independente do papel que desempenham na trama.
Os dois filmes guardam, porém, diferenças significativas entre si. A separação é mais despojado e a tensão inicial entre marido e mulher só se agrava – distantes um do outro, os personagens passam da eloquência verbal do princípio à mudez do encerramento. No começo de O apartamento, por sua vez, o casal Emad (Shahab Hosseini) e Rama (Taraneh Alidoosti) está em estado de aparente harmonia, mas fatores fortuitos, alheios à vontade de ambos, provocam crise profunda em seu relacionamento.
O apartamento se diferencia também pelo contraponto feito entre, de um lado, a encenação teatral de Morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller, na qual Emad e Rama atuam como Willy e Linda Loman, e de outro a “imperiosa prerrogativa do real”, conforme escreveu Clément Rosset. A vida fora do palco espelha a ficção, fazendo emergir traços de caráter insuspeitados em Emad – o vizinho prestativo e professor cativante se torna o vingador obcecado.
O quid pro quo da trama, beirando a comédia de erros, somado ao apego a valores tradicionais em uma sociedade puritana, leva Emad e Rama, intérpretes dos personagens Willy e Linda Loman na encenação teatral, a se defrontarem, no terço final do filme, com um verdadeiro Willy Loman. E o ator que vive no palco a humilhação e o suicídio do caixeiro viajante de Arthur Miller, é quem, na vida real, humilha e leva o vendedor à morte.
Em entrevistas dadas quando O apartamento participou do Festival de Cannes, no ano passado, Farhadi declarou estar “interessado em explorar o que as pessoas consideram ser uma vingança proporcional”. Não “a violência descontrolada, mas a que é premeditada. Algumas vezes você está convencido de que um ato violento que irá cometer é justificado”, disse. “Como terroristas. Eles acham que têm bons motivos para serem violentos. Às vezes você pode acreditar que tem o direito de ser violento e construir todo um conjunto de razões que levam ao ato. Um homem responsável e bondoso pode se tornar um ser humano potencialmente violento.”
Para quem assiste a O apartamento em pleno verão carioca, a ligação entre o personagem principal do filme e terroristas parece forçada. Mas é difícil avaliar até que ponto essa relação é mais plausível na Europa e no Oriente Médio.
Há violência e barbárie de sobra à nossa volta para indicar a necessidade de tentarmos entender o que leva homens comuns a cometerem atrocidades como as que temos visto.
Daí o impacto do sentimento trágico da vida, tema frequente do cinema iraniano retomado em O apartamento.