Políticos costumam se indispor contra os bons conselhos da matemática, mas são indispensáveis para ensinar economistas a usar convenientemente os talheres da democracia. Assim como não adianta sugerir a um sujeito com os pés na brasa que coloque a cabeça no congelador para melhorar sua temperatura média, o eleitor vai precisar bem mais do que explicações didáticas sobre os índices de inflação para se conformar com a recente alta de preços da cesta básica e as soluções que partem de Brasília.
Para o povo de baixíssima renda, que começou a gostar do governo graças a um auxílio emergencial equivalente a pouco menos de 2% do salário de um ministro de Estado, é difícil digerir o argumento de que o preço do arroz está nas alturas, mas, apesar disso, a inflação caminha tranquila, abaixo da meta, graças, por exemplo, à queda no preço das passagens aéreas.
O arroz não está sozinho. A despensa do presidente no condomínio carioca Vivendas da Barra, por exemplo, deve ter amargado o aumento sensível no preço do leite condensado que compõe o café da manhã presidencial (no Rio, 10,17% acumulados de janeiro a agosto, segundo o IPCA do IBGE). No caso de Bolsonaro, o pão de cada dia é garantido pelo contribuinte, aquele de quem o presidente espera o voto para aliados nas eleições deste ano, e para a Presidência em 2022. É justo imaginar que, se o crescimento da popularidade presidencial nos últimos meses se deu, principalmente, graças ao maior poder aquisitivo dos mais pobres, a comida mais cara cobrará seu preço em votos. Contra o governo.
Magnânimo como um nobre europeu do século XVIII, o presidente da Associação Brasileira de Supermercados, João Sanzovo Neto, teve a ideia revolucionária de sugerir aos pobres que, na falta de arroz barato, comam macarrão. Só não acrescentou uma dica importante: convém economizar no molho; o preço do extrato de tomate aumentou, neste ano, 5,3% em média nacionalmente – mais ainda em SP, RJ e no DF, cerca de 6%; e acima de 9% no Recife.
O tomate acumulou uma alta de 12,4%, em média, no país, e seu preço aumentou em torno de 30% em Recife, Fortaleza e Salvador, e quase 80% em Vitória. Mais ardido foi o aumento da cebola, que ficou mais cara em mais de 50%, em média, no país; alta de mais de 85% em Porto Alegre e Curitiba, e mais de 96% em Fortaleza.
Com os preços dos alimentos nessas alturas, o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, poderá provar sua tese de que não há problema em aumentar o imposto sobre os livros, já que, tão cedo, esse bem de primeira necessidade não encontrará espaço na cesta dos sem-arroz. Coube ao colunista Fernando Dantas, do Estadão, constatar que economistas da equipe governamental veem com meritocrática bonomia a elevação do custo da cesta básica, que pode fazer o indicador oficial de preços subir um pouco mais neste ano, dos menos de 2% previstos pelo mercado atualmente, para o piso da meta de inflação, de 2,5%. Assim, as autoridades monetárias poderão interromper a inédita queda na taxa básica de juros, que começa a incomodar os investidores.
Essa tranquilidade em meio àquilo que os mais memoriosos já estão chamando de carestia pode parecer insensibilidade de tecnocrata. Mas, para os mais incomodados, vale a lembrança de que essa alta de preços de comida, em parte provocada pelo aumento no consumo interno, em parte estimulada pela fome dos importadores com dólar valorizado, pode ter fôlego curto. A safra de grãos do próximo ano pode deter e, quem sabe, reverter, em parte, os aumentos de preços – embora o mais provável seja sua manutenção em patamares mais altos, sustentados pela fome internacional por commodities agrícolas.
Resta às autoridades o argumento dos argumentos: esse aumento emergencial de renda dos mais pobres que fez crescer a demanda por bens de primeira necessidade tem data para acabar e, com ele, vai baixar a pressão sobre os preços dos alimentos. O auxílio emergencial de R$ 600 chegou aos bolsos de mais de 65 milhões de pessoas e representou um reforço de R$ 50 bilhões mensais na renda do trabalhador, segundo o governo. Com o fim dessa ajuda, em 2021, ainda que compensada por um novo programa de apoio aos mais pobres, espera-se que caia a demanda e, com ela, os preços dos alimentos.
Do ponto de vista econômico, a conta faz sentido. Do ponto de vista político, isso significa tirar comida da mesa do pobre, que estava gostando da novidade, e até arriscando também fazer um crediário para outros bens de consumo. Segundo o Dieese, a cesta básica de alimentos para uma família de quatro pessoas (casal e dois filhos) chegou, em São Paulo, a quase 540 reais, um aumento de 12,15% em doze meses; em Recife, onde o custo dessa mesma cesta é o mais baixo do país, o aumento foi de 21,44% nos doze meses até agosto, e de quase 12% só neste ano.
Para comprar essa cesta básica, em agosto, o trabalhador remunerado com salário mínimo gastaria, em média, no país, 48,85% de seu rendimento, após desconto para a Previdência. Em julho, teria gastado 48,26%. Dedicaria 99 horas e 24 minutos de seu mês para poder comprar esses alimentos, mais de uma hora a mais que em julho. Em SP, a cesta básica levaria 55,86% da renda do trabalhador de salário mínimo.
Não à toa, o pesquisador Daniel Duque, do Ibre-FGV, constatou que a desigualdade no Brasil, medida pelo índice de Gini, teria batido um recorde, e não diminuído como se viu neste ano, caso as estatísticas se concentrassem apenas no rendimento dos trabalhadores assalariados. O índice de Gini de um país mede a desigualdade da renda de seus habitantes, e varia de 0, quando não há desigualdade, a 1, quando o país tem o máximo de desigualdade (quando apenas uma pessoa detém toda a renda, e os outros, nada têm). Em 2020, no segundo trimestre do ano, quando o indicador costuma melhorar, o índice Gini da Renda do Trabalho deu um salto de quase 5% em relação ao trimestre anterior, e alcançou seu maior valor histórico, de 0,68.
Como é hábito no governo, as indicações de que os mercados salgariam o preço da comida só provocaram reação quando chegaram às primeiras páginas dos jornais. E foi anunciado o corte das tarifas de importação para a compra de arroz de outros países, medida classificada por um especialista em comércio exterior, Welber Barral, como “perfeitamente legítima”… e inútil. Ele prevê que será insuficiente o tempo necessário para vencer a burocracia de importação e aproveitar a isenção de tarifa, que só dura até dezembro. Outros analistas veem, na iniciativa, uma medida para ocupar espaço nos jornais, sem efeito prático sensível. E se perguntam por que só o arroz. O leite longa vida, por exemplo, teve aumento de 23% neste ano (31% em São Paulo), segundo o IBGE.
O governo, à revelia dos compromissos liberais de seu ministro da Economia, ameaçou supermercados de investigação por “abuso”, como se não tivesse fartas indicações de que as investigações devem, em sua maioria, constatar o óbvio: a demanda interna e externa provoca disputa por produtos, e o mercado se regula… elevando preços.
Ainda não apareceu quem proponha publicamente o que alguns produtores de carne vêm resmungando à boca pequena: taxar a exportação de grãos usados na alimentação animal, como soja e milho, para abastecer o mercado interno com menores preços. E o presidente Bolsonaro rejeitou, alegando que não vai “tirar do pobre para dar ao paupérrimo”, a proposta apresentada pela equipe econômica, de garantir o futuro programa de renda para os pobres, o Renda Brasil, com verbas arrancadas de outros programas sociais, como o abono salarial e o seguro defeso.
Assim como as empregadas deixaram de lado suas viagens à Disney que incomodavam certos endinheirados, os pobres, no futuro cenário de austeridade cozinhado no ministério da Economia, terão de se contentar com refeições bem mais modestas do que nos últimos meses. Com preços em alta, desemprego ainda elevado, pouco dinheiro no caixa do governo e o fim do auxílio emergencial, a única previsão infalível é a de que Bolsonaro não vai se satisfazer com uma receita que lhe tire a popularidade recém-conquistada entre os mais necessitados. E, aí, a questão é saber o que fará com o ministro Paulo Guedes, na frigideira.