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    Manifestantes posando para fotos ao lado de policiais militares, na Avenida Paulista Foto: Alf Ribeiro/Fotoarena/Folhapress

questões sociológicas

O baile do golpe frustrado

Observações sobre a psique bolsonarista na manifestação de domingo, 25 de fevereiro

Jonas Medeiros | 02 mar 2024_10h28
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Um dos objetivos centrais de Jair Bolsonaro com a manifestação de 25 de fevereiro, em São Paulo, era produzir uma fotografia para o mundo. Isto é, registrar a ocupação massiva da Avenida Paulista em defesa do estado democrático de direito – no caso, uma visão de Estado específica, mais alinhada à do imperador francês Luís XIV: “O Estado sou eu.”

Assim foi. Aparentemente, a extrema direita saiu novamente do armário. A primeira vez foi mais lenta, durou anos, contribuiu para a erosão do pacto de 1988 e atingiu seu ápice nos primeiros meses depois da vitória eleitoral de Lula, quando o intervencionismo e o golpismo militares circularam soltos nas redes, nas rodovias, nos quartéis e nos palácios brasilienses. 

A repressão aos atos do 8 de janeiro forçou a direita radicalizada a voltar à sua condição envergonhada. No ano passado, todas as tentativas do campo reacionário de convocar grandes protestos resultaram frustradas. Mas, ao que tudo indica, a ressaca causada pelo estigma do 8 de janeiro foi finalmente superada com a massificação do protesto no último domingo (25). Como disse um rapaz eufórico que passou ao meu lado na Avenida Paulista, e que transmitia a manifestação ao vivo em seu celular, “este é o fato: nós voltamos!”

Mas será que a quantificação basta, como métrica, para avaliar os efeitos políticos desta última (e animada) domingada? Acredito que, para interpretar o que vimos em São Paulo e o que ainda pode estar por vir, é fundamental considerar alguns outros elementos.

Os protestos bolsonaristas de novembro e dezembro de 2023 tiveram aspectos curiosos. Pela primeira vez, viu-se um carro de som unificado nas ruas, o que alterou de forma significativa a dinâmica das manifestações. A extrema direita parece ter se apropriado de um repertório característico da esquerda institucional, buscando emular um comício, com presença considerável de políticos profissionais, excetuando-se Bolsonaro, ainda ausente. Em novembro, o ritual político organizado pelo pastor Silas Malafaia conseguiu animar as massas bolsonaristas, sobretudo devido à martirização de um dos presos do 8 de janeiro, que morreu de mal súbito na cadeia. Em dezembro, porém, o protesto contra a indicação de Flávio Dino ao STF foi um fracasso: um evento pequeno e burocratizado, que entediou os presentes com um samba chamado Dino, não, cuja letra ninguém conhecia. 

O ato de 25 de fevereiro teve, novamente, um carro de som unificado, agora com uma estrutura ainda maior, disposta em L, pensada para comportar um grande elenco de políticos alinhados a Bolsonaro. Dessa vez, no entanto, o carro de som e a estrutura oficialesca não fizeram com que a manifestação fosse fria ou burocrática. Por que não?

O primeiro fator que ajuda a explicar isso é o fato de que, dessa vez, a convocação para a manifestação partiu do próprio Bolsonaro. Ouvi uma mulher dizer, na Alameda Santos: “Agora foi uma convocação, não foi algo espontâneo.” Os manifestantes alimentavam altas expectativas quanto à presença do ex-presidente. Durante o ato, podia-se ouvir, aqui e ali, avisos como: “Ele já tá em São Paulo!”; “Ele já chegou aqui!” Todo helicóptero que despontava no céu causava comoção. As pessoas sentiam Bolsonaro se aproximando.

O segundo fator foi a massificação do ato. Os protestos de novembro e dezembro foram pequenos: juntaram não mais que 15 mil pessoas, segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital, grupo coordenado pelos pesquisadores Márcio Moretto e Pablo Ortellado. No último domingo, eles estimaram a presença de 185 mil pessoas no pico da manifestação.

A diferença era perceptível no chão do ato. Nos protestos anteriores, não vi pessoas trajando verde e amarelo até que cheguei ao ponto de concentração do ato. Dessa vez, já se avistavam manifestantes em estações de metrô e restaurantes. Também foi muito mais difícil circular pelo ato. A multidão compacta que cercou o carro de som tomou cinco quarteirões, sem contar outros quarteirões ocupados com menor densidade de pessoas.

As últimas vezes em que senti a rua tão cheia, em uma manifestação das direitas, foram no primeiro ato pró-impeachment de Dilma Rousseff, em março de 2015, e no ato golpista de 7 de setembro de 2021. Naquele momento de alto engajamento emocional, em que Bolsonaro xingou Alexandre de Moraes de “canalha”, a Polícia Militar estimou que havia 125 mil pessoas na Avenida Paulista. No último domingo, a Secretaria de Segurança de São Paulo disse que havia 750 mil pessoas e atribuiu o dado à PM – que, por sua vez, negou ter feito o cálculo. Por essas e por outras, os números devem ser lidos com cautela. É muito provável que eles sejam produzidos conforme a conveniência política (talvez, em 2021, a gestão de João Doria tenha subestimado propositalmente a multidão bolsonarista, assim como talvez, em 2024, a gestão de Tarcísio Freitas tenha tentado inflá-la).

Como diria um divulgador da dialética, em determinadas circunstâncias “a quantidade se converte em qualidade”. Os números não devem ser tomados como uma medida única ou exata para atestar o sucesso ou o fracasso da manifestação, porque há muitos outros fatores envolvidos. A concentração de pessoas produz vínculos e emoções. O fato de que não só a Avenida Paulista estava lotada, mas também as travessas e ruas paralelas, alterou a dinâmica do protesto. Nas conversas, os manifestantes mostravam estar inebriados consigo mesmos. Como de praxe, ironizavam uma possível mensuração do Datafolha – apelidado por eles de “Datafoi” ou “Datafoda-se”.

Pude observar, dessa vez, algo que sempre foi característico das manifestações da direita e da extrema direita, mas que andava ausente: as pessoas, em vez de prestar atenção no que está sendo dito nos trios elétricos, preferem as conversas informais. A massificação permite uma sociabilidade que independe do carro de som. Familiares e amigos, circulando ou sentados na calçada, fortalecem os laços entre si. Conhecem outras pessoas. Alimentam um senso de pertencimento, de que compartilham uma identidade coletiva.

 

A trilha sonora foi o terceiro e último fator que impediu que o ato de domingo fosse tomado pelo mesmo tédio burocrático dos dois últimos atos. Nos carros de som na Paulista, ouvia-se uma só coisa, o tempo todo: uma versão instrumental eletrônica do funk Baile de Favela

A composição de MC João e DJ R7, lançada em 2015, fez muito sucesso. A letra, marcada por um certo grau de misoginia, enaltece os bailes de rua da periferia de São Paulo. Como é uma melodia forte, de fácil absorção, já foi apropriada para fins políticos outras vezes. Ainda em 2015, o MC Foice e Martelo da Zona Sul criou uma paródia da música intitulada Escolas de Luta. Em vez dos bailes, a letra exaltava o movimento secundarista, que estava mobilizado naquele momento contra a reforma educacional conduzida pelo então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Ao radicalizar nas ações diretas, o movimento foi bem-sucedido, e Alckmin foi forçado a recuar.

Anos depois, por ocasião das eleições de 2018, foi lançada pelo MC Reaça uma nova versão da música. Dessa vez, ela exaltava Bolsonaro, a direita e Olavo de Carvalho. Chamava a juventude de “degenerada” e atacava a esquerda e o feminismo. No ato de domingo, ouvi a letra dessa paródia apenas uma vez, quando um jovem cantou por conta própria, acompanhando o instrumental: As minas de direita são as top mais bela/ Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela. A batida eletrônica, sem letra, foi onipresente. Um dado que pode parecer banal, mas que produziu efeitos práticos.

Relato minha experiência. No momento em que Bolsonaro começou a discursar, eu estava na Avenida Paulista, na altura da Rua Itapeva. Como o trio elétrico estava distante, foram dispostas algumas caixas de som que reproduziam o discurso. As palavras do ex-presidente foram recebidas pelos manifestantes com silêncio mortal. Todos se mantiveram cabisbaixos, em um misto de reverência e concentração para ouvir seu líder. A temperatura era morna e havia, no fundo, um grau de melancolia devido ao tom do discurso. Bolsonaro se apresentou como um perseguido (antes, durante e depois de seu governo) e descartou, apesar das evidências, que houve tentativa de golpe no Brasil.

A fala teve efeito paradoxal, o que demonstra como Bolsonaro caminha hoje sobre uma corda bamba. Precisa, de um lado, animar seus apoiadores (note-se: uma pesquisa divulgada há poucos dias pela Atlas Intel mostra que 36,3% da população brasileira apoiaria Bolsonaro caso ele tivesse declarado estado de sítio para impedir a posse de Lula); e precisa, de outro lado, sinalizar para o sistema político, em especial para o Supremo Tribunal Federal, que a direita pretende seguir as regras do jogo, varrendo para debaixo do tapete sua hostilidade e seu golpismo.

A melancolia dos manifestantes foi sendo superada gradualmente, primeiro com a inserção de uma música triunfante que acompanhou o final da fala de Bolsonaro, depois com Baile de Favela, que voltou a ser tocada no instante em que o ex-presidente acabou seu discurso. A música entrou em um looping eterno que deve ter durado quase uma hora. Parece ter sido calculada para animar o público de uma maneira que Bolsonaro não poderia, naquele momento. Desde antes, corpos jovens animados balançavam na Paulista como se estivessem numa balada a céu aberto. E diferentemente do que vi em dezembro do ano passado, a dispersão do ato dessa vez não apenas foi lenta como também foi energizada. As pessoas sentiram-se empoderadas. Ao contrário do que li nas redes sociais, não se tratou de uma “rave da terceira idade”. O funk transformado em música eletrônica engendrou naquele momento uma momentânea aliança intergeracional: crianças, jovens e idosos, dançando e batendo palmas, voltaram para casa com senso de dever cumprido e um sentimento de vitória.

 

O contraste entre Escolas de Luta e a versão instrumental de Baile de Favela nos ajuda a examinar os dilemas políticos que a extrema direita vive hoje. A paródia feita pelo MC Foice e Martelo marcou uma combinação brilhante de virada tática (a ocupação das escolas) com identificação coletiva: toda e qualquer escola que fosse ocupada pelos secundaristas, naquele momento, entraria para o rol das “escolas de luta” (não à toa, esse é o título do livro que escrevi com Antonia Malta Campos e Márcio Moretto Ribeiro, publicado em 2016). No caso da manifestação bolsonarista, a letra agressiva de 2018 – que atacava Lula e uma constelação de figuras da esquerda – foi deixada de lado. Dessa vez não havia mensagem.

Pode-se atribuir ao acaso a escolha da versão instrumental, mas a história está prenhe de consequências não intencionais das ações dos sujeitos. Não deixa de ser sintomático, neste momento, que a produção de emoções no campo da extrema direita não venha acompanhada de uma diretriz clara; de uma proposta de encaminhamento político. A música tocada no domingo expressa um vácuo.

Os manifestantes voltaram para casa energizados, mas em qual direção Bolsonaro pode canalizar essa energia? Talvez ele próprio esteja se perguntando isso. Saí do ato com a impressão de ter assistido a um espetáculo vazio, de fruição imediatista. Corações tremendo com o baixo dos carros de som, num êxtase breve, desprovido de um horizonte político de médio ou longo prazo. A manifestação foi, sem dúvidas, um sucesso enquanto demonstração de força política. O ex-presidente conseguiu a fotografia que tanto queria. Mas por trás do sucesso há um desconforto patente. Diante do fracasso da trama golpista, que vem sendo devassada pela Polícia Federal, como a extrema direita poderia responder à pergunta “o que fazer?”. Derrotada, a esperança messiânica de uma intervenção militar ainda não foi devidamente substituída.

O contexto dos últimos anos, em que a esquerda foi empurrada para a defesa da ordem (da ciência, da imprensa, do Judiciário – enfim, do sistema) e a direita encarnou a subversão, tornou-se momentaneamente desfavorável para o bolsonarismo, que agora parece frágil demais para abraçar sua disposição insurrecionista. Ao mesmo tempo, ele não tem outra opção. Eis o paradoxo. A única solução aparente para contornar a melancolia que observei na Paulista seria dobrar a aposta no discurso belicoso e golpista e organizar uma campanha por “anistia” baseada em ações diretas crescentemente radicalizadas. Nesse cenário, para evitar sua prisão, Bolsonaro poderia acelerar sua prisão. Como vão se comportar seus apoiadores caso isso venha a acontecer? Vão flertar com a desobediência civil, como fez parte da esquerda em 2018, incitando Lula a resistir à prisão? E quanto a Bolsonaro? Agirá como Lula e se entregará aos carcereiros?

Estamos em um entreato. A extrema direita ensaia sair do armário novamente, mas parece não saber bem para quê. É uma multidão à espera de um norte. Conhecendo Bolsonaro como conhecemos nas últimas décadas, a crença de que ele quer pacificação é infundada.

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