No mapa que indica o progresso social do Brasil, a gradação de cores mostra que nem sempre uma boa renda é garantia de prosperidade. No pequeno Sergipe, um dos que menos contribuem com o Produto Interno Bruto (PIB) do país, a qualidade de vida tem índices melhores que em Mato Grosso, que gera 4,5 vezes mais divisas que o estado nordestino. Isso é o que aponta o Índice de Progresso Social (IPS), uma avaliação feita pela primeira vez para todos os 5.568 municípios.
Criada há uma década por cientistas de Harvard e do MIT, nos Estados Unidos, a ferramenta vai além da performance econômica para medir os desempenhos social e ambiental das cidades. O trabalho, realizado entre 2023 e este ano, contou com uma equipe de cerca de vinte pessoas, que se debruçou sobre dados públicos dos ministérios da Saúde e da Cidadania, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), do Conselho Nacional de Justiça, entre outros.
O time também realizou entrevistas de campo com pesquisadores e ex-gestores, para entender os pormenores de cada localidade. Prefeitos no cargo não foram consultados. “O IPS considera moradia, segurança, meio ambiente, inclusão social, telecomunicação… Ele inclui um leque muito amplo pelo qual você observa as condições de vida. A realidade, claro, é mais complexa, mas o IPS vai no limite do que é possível ir”, explica à piauí Beto Veríssimo, pesquisador à frente da iniciativa e cofundador do Imazon, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. A organização atua em parceria com outras instituições, como Amazônia 2030, Fundación Avina, Anattá Pesquisa e Desenvolvimento e o Centro de Empreendedorismo da Amazônia e Social Progress Imperative.
O levantamento abarca ainda informações sobre a cobertura vacinal, casas com paredes e pisos, abandono escolar, obesidade, acesso a programas de direitos humanos como proteção às vítimas de violências, quantidade de praças e parques públicos e o número de mulheres empregadas com ensino superior.
São 53 indicadores distribuídos em três grandes dimensões: necessidades humanas básicas; fundamentos do bem-estar; oportunidades. Esses indicadores recebem notas de 0 a 100 e, no final, há uma média para cada item. Visualmente, quanto mais azul, melhor, e quanto mais próximo do vermelho escuro, pior.
O Brasil vai bem quando o assunto é moradia, água e saneamento, Nutrição e Cuidados Médicos Básicos, mas derrapa nas avaliações sobre liberdades individuais, inclusão social, acesso ao ensino superior e direitos individuais, onde acumula o pior desempenho.
O resultado desse mix dá uma nota geral: o Brasil marcou 61,83 pontos de 100. No cenário internacional, o índice é comparável ao nível medido de nações como México, China e Rússia. O trabalho completo sobre a realidade brasileira pode ser visto aqui.
Para os criadores do índice, dados econômicos não são suficientes para avaliar o desenvolvimento real da população. O mero crescimento da economia pode causar degradação ambiental, aumento na desigualdade, exclusão e conflitos, e não se traduzir em progresso social
Onde a vida é mais equilibrada
A cidade que lidera o IPS está no interior de São Paulo, a pouco mais de 300 km da capital. Gavião Peixoto, com 4702 habitantes, obteve a nota 74,49 e supera a média nacional. O município só apresentou baixo desempenho em um quesito: direitos individuais (32,53), que integra a dimensão Oportunidades.“Esse indicador avalia a existência do programa de direitos humanos. A gente não está avaliando a qualidade do programa, a gente está dizendo se existe ou não”, detalha Veríssimo.
Dentre as capitais, Brasília é a mais bem colocada e Porto Velho, no estado de Rondônia, a pior. Contrariando a lógica da geração de riquezas medida pelo PIB, Aracaju, em Sergipe, saiu à frente de capitais como Porto Alegre e Rio de Janeiro. No ranking dos municípios com maior participação no PIB, as cidades carioca e gaúcha estão, respectivamente, na segunda e nona colocações. Nesse método de classificação, Aracaju nem aparece entre as dez.
Territórios indígenas, quilombolas e populações extrativistas em unidades de conservação não são avaliados no IPS Brasil. Segundo Veríssimo, a metodologia não é adequada para medir a qualidade de vida nesses locais. “Uma moradia para um habitante da cidade não é igual para os indígenas. Não tem como medir de forma que se possa comparar”, detalha o pesquisador.
Em 2014, sob liderança do Imazon, a metodologia foi adaptada para medir exclusivamente o progresso social da Amazônia Legal. Desde então, foram lançadas outras três edições: 2018, 2021 e 2023. Na mais recente, a nota da região ficou em 54,32. O município de Jacareacanga, Pará, foi o pior colocado no IPS Amazônia (42,43) influenciado pelo desmatamento, degradação florestal e conflitos sociais.
Dimensão Necessidades Humanas Básicas: Nutrição e médicos
Cobertura vacinal, mortalidade infantil até 5 anos de idade e subnutrição estão entre os dados avaliados nesta componente. Os bons resultados vistos em cidades do Nordeste, com vários pontos azuis, analisam os pesquisadores, podem estar relacionados à continuidade de iniciativas dedicadas ao combate de mortes de crianças por desnutrição, como o Programa de Combate às Carências Nutricionais . Há pouco mais de duas décadas, o Ceará chegou a ser premiado pelas Nações Unidas por ações nesta área, com o programa Agentes de Saúde.
Água e Saneamento
Território que abriga o maior rio do mundo, a Amazônia aparece no mapa como a mais problemática. Saneamento básico e o acesso à água tratada são escassos, situação agravada pela imensidão e a diversidade geográfica da região, o que dificulta a implementação da infraestrutura.
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São poucos os locais que conseguiram equalizar a questão na região Norte. Uma delas é Colinas do Tocantins, dona da maior nota nesta componente (92,05). Com 34 mil habitantes, 96% das casas no município são atendidas pela rede de distribuição de água, apontam dados do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Em outros temas, por outro lado, a cidade obteve nota geral abaixo da média, 60,87.
Moradia
Dentre todas as componentes que formam o IPS Brasil, o quesito moradia foi o responsável pela maior média: 87,74. São consideradas informações como coleta de resíduos, iluminação elétrica e se os domicílios são feitos de paredes e pisos adequados. “Vale pontuar que a gente não está medindo se quem mora na casa é proprietário ou locatário. Aqui só entra quem mora em domicílio, ou seja, não estamos medindo as pessoas que estão em situação de rua”, afirma Veríssimo. Aqui quem lidera o ranking é a pequena Elisiário, com 3.138 habitantes, no interior de São Paulo, com 99,59 pontos.
Segurança pessoal
Como último item que compõe a análise da dimensão “necessidades humanas básicas”, a componente segurança obteve a menor média, 58,27. O mapa indica que a violência é endêmica no Brasil, especialmente no litoral do Nordeste e no Sul do Pará. Entre as dez melhores colocadas, oito são cidades mineiras (Antônio Prado de Minas, Aracitaba, Aricanduva, Carvalhópolis, Casa Grande, Córrego do Bom Jesus, Diogo de Vasconcelos e Frei Lagonegro). O posto de primeiro lugar é dividido por treze cidades, todas com 87,42 pontos: Divino de São Lourenço (ES), Galinhos, Ruy Barbosa e Santana do Seridó (RN); Mato Queimado, Nova Ramada, Ponte Preta, Ubiretama e União da Serra (RS); Celso Ramos, Santa Terezinha do Progresso e Santiago do Sul (SC); e Torre de Pedra (SP)
Dimensão Fundamentos do Bem-estar: Acesso a conhecimentos básicos
Apesar do seu vasto sistema educacional, com 178,5 mil escolas, o Brasil ainda registra grandes desigualdades regionais. A avaliação do IPS, que captura dados como abandono, evasão, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e reprovação, mostra que cidades nos estados do Ceará, Espírito Santo, Goiás e São Paulo têm melhor desempenho. Pará e Bahia, por outro lado, apresentam as notas mais baixas, com 58,19 e 59,25, respectivamente.
Informação e Comunicação
Para criar este mapa, os pesquisadores colheram dados como cobertura e qualidade de internet móvel, densidade de internet banda larga fixa e telefonia. Cerca de 80% dos municípios do país têm pontuação individual abaixo da média nacional, que foi de 69,77. O dado é próximo ao medido pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação, que apontou, em pesquisa divulgada em abril, precariedade de acesso à internet em 57% da população brasileira.
Saúde e bem-estar
No mosaico de dados que forma essa componente, um resultado se destaca: os nordestinos são os mais saudáveis quando se avalia o índice de obesidade. Quando se consideram todos os indicadores dessa seção – como esperança de vida ao nascer, mortalidade entre 15 e 50 anos, morte por doenças crônicas e suicídio – a região Norte, e os estados de Minas Gerais, Santa Catarina e Pará proporcionam condições de vida mais saudável aos seus habitantes. A principal fonte de dados neste quesito é o Sistema Único de Saúde, SUS, fundamental por ter amplo volume de dados, segundo Veríssimo.
Qualidade do meio ambiente
Esta componente, calculado com base em áreas verdes urbanas, emissões de CO2 por habitante, focos de calor e desmatamento, aponta como as piores cidades estão situadas no arco de desmatamento da Amazônia Legal. É nesta região que a fronteira agrícola avança principalmente sobre a Floresta Amazônica. “O mapa mostra um padrão no Brasil que é inverso ao que acontece no resto do mundo. Aqui, à medida que o IPS piora, aumentam as emissões de CO2 per capita. Ou seja: onde se emite muito carbono há pouco progresso social”, comenta Veríssimo.
A situação mais crítica, com o vermelho acentuado, foi registrada em Canabrava do Norte e Nova Ubiratã, ambas em Mato Grosso; e Bannach, no Pará. Na outra ponta, Jundiaí, Louveira e Votorantim, todas no interior de São Paulo, lideram o ranking.
Dimensão Oportunidades: Direitos individuais
Dentre as doze componentes que formam o IPS Brasil, esta é a que tem a menor nota, 35,96. É o mapa em que a cor azul aparece mais timidamente e o alaranjado se sobressai. No ranking dos estados com desempenho mais razoável estão Teresina (PI), Brasília e Maceió (AL). Aqui são avaliadas questões como acesso a programas de direitos humanos, a existência de ações neste tema, índice de atendimento à demanda de Justiça e taxa de congestionamento de processos. Nas piores colocações estão Belém (PA) e Vitória (ES).
Liberdades e escolhas
Um dado até então inédito foi compilado para criar esta componente: a área de praças e parques nas cidades brasileiras. Essa pesquisa específica foi realizada pelo MapBiomas, iniciativa que reúne uma rede de universidades, ONGs e empresas de tecnologia focada em mapear a cobertura e uso da terra. “A oferta de parques e praças é um elemento de inclusão social, de liberdade, e que diminui tensões de violência. Existe uma literatura muito vasta sobre a importância de ofertar esses equipamentos de cultura e lazer como elemento de cidadania”, justifica Veríssimo. Outros aspectos, como gravidez na adolescência, trabalho infantil, e acesso à cultura, lazer e esporte também foram levados em consideração. Santa Cruz do Sul, Mondaí, Picada Café e Rio Negro, todas na Região Sul, lideram positivamente.
Inclusão social
O Maranhão é o estado com melhor desempenho neste parâmetro, que mescla informações sobre proporção de gênero e de negros em câmaras municipais, violência contra indígenas, contra mulheres e contra negros. Piauí, Paraíba e Sergipe e Bahia completam os cinco primeiros colocados. Rio de Janeiro, Paraná e Mato Grosso do Sul são os piores colocados.
Acesso à Educação Superior
Outro indicador que joga a média nacional (61,83) para baixo, com pontuação de 43,88 – isso explica o tom bastante alaranjado do mapa. O destaque é Nova Lima, cidade mineira com 111 mil habitantes e mais bem avaliada neste quesito – que inclui número de empregados com ensino superior, mulheres empregadas com ensino superior e nota média no Exame Nacional do Ensino Médio, Enem. A nota final do município é de 74,65, quase o dobro da contagem nacional.