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O coitadismo de héteros, brancos e homens

População menos vulnerável se acostumou ao mimimi

Fabiana Moraes | 31 out 2018_15h14
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Em minha primeira coluna para a piauí, falei sobre indígenas, gays, quilombolas, pessoas trans, negros e feministas. Esse povo que representa “tudo o que não presta”, de acordo com as memoráveis palavras do senador eleito Luis Carlos Heinze (PP). Naquele texto, que escrevi ainda pensando morar em um país que apreciava sua civilidade, abordei como os chamados “grupos identitários” formavam o naco mais expressivo da estrutura social brasileira. Refleti sobre as porradas que andavam levando à direita e à esquerda e sobre a vesguice de entendê-los como meros penduricalhos de uma disputa política maior.

Esta é a última coluna deste período repleto de declarações nefastas e notificações no celular. Pois bem: bichas, lésbicas, pretos, indígenas, mulheres – e nordestinos – estão de volta. Na verdade, estiveram no debate o tempo todo. Foram elas e eles que protagonizaram as eleições. De maneira muito clara, parte do pleito se estruturou em prol da eliminação dessa gente. O objetivo: garantir que retornem para seus armários, becos, medos e papéis de coadjuvante. Determinar que suas presenças saiam dos holofotes. Assegurar que suas vozes vacilem. Que as cabeças voltem a baixar.

Os recados foram claros: um homem negro e duas travestis assassinadas (há relatos de uma terceira). Várias mulheres e gays espancados e/ou ameaçados. Em Fortaleza, uma estudante universitária negra foi estuprada após receber várias ameaças por conta de sua posição política. Em resumo, quase todas e todos integrantes dos tais grupos identitários que andavam enchendo o saco da esquerda raiz e da direita civilizada.

Mas com o pessoal da nova velha ordem, que propaga o futuro para repetir o passado, é diferente. Tolerância zero. Avisam: aqui não vai ter coitadismo, hein? Curvem-se ou desapareçam. Vamos faxinar a área e extinguir vocês.

Aprendi que a prática do antidiscurso é uma ferramenta necessária em tempos de repetição de inverdades e que muitas vezes, em sua lógica ligeira, retira do texto parte de sua elegância – mas, vocês devem concordar, o momento não é exatamente o de conferir se os guardanapos de linho estão todos imaculados sobre a mesa.

O que significa esse coitadismo, afinal?

A expressão, usada em um discurso historicamente tóxico ao ambiente democrático, é gêmea univitelina do “vitimismo” ou do popular “mimimi”, que saiu dos domínios virtuais juvenis para ser utilizada por vários candidatos no último pleito (em especial, aqueles que acionam o modo “ouvido mouco” perante a qualquer fala relacionada às especificidades de gênero, raça, origem social e afins). Sua força política, no entanto, indica uma forte adesão popular. Ou seja: são milhões que também passaram a se sentir em sério risco quando, por exemplo, pessoas negras começaram a ocupar de maneira mais expressiva os bancos das universidades, quando políticas públicas de proteção à mulher foram sistematizadas, quando pessoas transexuais tiveram seus nomes sociais valorizados.

 

Uma questão nasce aí: quais os perigos que essa população só recentemente um pouco mais protegida por ações institucionais oferece aos que reclamam, em longo mimimi, do tal mimimi? A quem pertence mesmo o coitadismo nacional? Será que nossa obsessão por um pai autoritário nos faz agora ter muita dó de parlamentares cujos salários beiram os 34 mil reais mensais, além de auxílio-moradia e plano de saúde garantidos? Devemos lamentar muito e dar passos largos para trás para que alguns dos políticos mais bem pagos do mundo sintam-se novamente à vontade e não corram nenhum risco por conta do aparecimento massivo desses pretos, mulheres, nordestinos e homossexuais inconvenientes?

As pessoas com acesso a uma alimentação de baixa qualidade, aquelas que estão na mira das balas da polícia, do constrangimento imposto por um salário baixo, do assédio nas ruas e nos ônibus e metrôs lotados devem silenciar para não incomodar os ouvidos augustos de vossas senhorias?

Foram muitas as perguntas – avisei sobre a possível ausência de elegância – para concluir: o coitadismo verde e amarelo tem outro endereço. Ele reside, por exemplo, em Daniel Silveira (eleito deputado federal pelo PSL) e Rodrigo Amorim (deputado estadual também eleito pelo mesmo partido). Silveira, policial militar de 35 anos, com superior completo, casado e branco, estava ao lado de Amorim, 39, advogado, casado e branco, quando ambos quebraram a placa em homenagem a uma mulher negra assassinada no Centro do Rio de Janeiro com quatro tiros na cabeça. Marielle Franco, mãe de Luyara Santos, 19, tinha 38 anos, era vereadora (PSOL) e as balas que a atingiram vieram de lotes vendidos em 2006 para a Polícia Federal. Sua morte permanece sem solução.

Além do caráter político de seu assassinato, a vereadora passou a integrar uma estatística aterradora: no Brasil, matam-se 71% mais mulheres negras do que brancas. O Atlas da Violência mostra que, de 2006 a 2016, os homicídios diminuíram 8% entre as últimas e aumentaram 15,4% entre as primeiras. O assassinato de Marielle ainda contribuiu para outra estatística: a da baixíssima presença de mulheres nos postos da política representativa brasileira. Somos mais da metade da população, mas apenas 11,3% do Congresso Nacional, por exemplo, é feminino. Assim, o deputado eleito Daniel Silveira pode ficar bastante tranquilo: em janeiro, seguirá para um parlamento branquinho e masculino, como ele.  O mesmo para o colega Rodrigo Amorim: homens brancos, casados e com ensino superior serão a maioria na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Estão representadíssimos. Então, sem coitadismo, por favor. A placa não irá morder vocês, mas tem um peso fundamental na vida de Luyara.

 

É preciso pedir o mesmo ao empresariado brasileiro que, há anos, derrama lágrimas caudalosas sobre a pele bem tratada. A onipresente crise que levou quase 14 milhões de pessoas a ficarem sem empregos no Brasil reverbera no mesmo momento em que as empresas de capital aberto começaram a se recuperar: o lucro do setor em 2017 foi de 144 bilhões de reais enquanto em 2016 foi de 123 bilhões. Bancos e mineradoras foram os que mais ganharam. Outra questão importante: enquanto a maioria da população LGBT e milhões de mulheres e pessoas negras temem não só ataques de eleitores extremistas do PSL, mas a perda dos poucos direitos só recentemente conquistados, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, já afirmou que o empresariado não está minimamente assustado com uma Presidência da República ocupada pelo candidato 17. Aqui, impossível não lembrar o estilista e empresário italiano Ermenegildo Zegna, que produz alguns dos mais belos e bem cortados ternos usados pelo empresariado nacional: nem crise nem eleição, disse ele na semana passada, ameaçam o mercado de luxo no Brasil . Acompanhando ambos, fica difícil entender o chororô de empresários como Luciano Hang, varejista dono da Havan que este ano viajou a bordo de seu avião particular para inaugurar a centésima unidade da rede, no Acre, enquanto comemorava um faturamento de 4 bilhões de reais em 2017.  Este ano, estima que seu lucro vai bater os 7 bilhões de reais. O vitimismo performado em vídeos no YouTube não pega bem para bilionários – nesse ponto, o empresário Roberto Justus, que também foi de PSL, tem se comportado mais discretamente.

Há também que se falar das filhas de militares que recebem pensões de, em média, 5,3 mil reais ao mês (podendo chegar a 10 mil reais). São 470 milhões de reais mensais (377 milhões só com o Exército) ou 6 bilhões de reais ao ano para as 87 mil mulheres beneficiadas – com uma boa vantagem: ao contrário das dependentes dos servidores civis, elas podem ser casadas, solteiras ou ter união estável. Uma maravilha nesta terra em que, segundo o IBGE, metade dos trabalhadores e trabalhadoras recebe 15% abaixo do salário mínimo. Deixemos o mimimi para os últimos, pois não?

Em resumo, a população branca, masculina, heterossexual e, principalmente, concentrada no Sul e no Sudeste do país, regiões mais ricas, pode chorar um pouco menos. Dificilmente apanhará na rua, será estuprada, ganhará menos, terá os piores empregos ou estará na mira dos revólveres. Dos 62 mil assassinados por ano, informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 71% são negros. O número de brancos assassinados caiu 12% enquanto aumentou 18% entre negros (de 2005 a 2015).  A Unesco aponta que jovens negros nordestinos têm 4,3 mais chances de serem mortos em contraste com jovens brancos de outras regiões do país.

Mas atente: é preciso considerar que essa população “das minorias”, mais do que se enclausurar em coitadismos, passou a disputar com mais força os espaços de visibilidade, tanto os do poder (já falei das universidades, mas a política é outro nicho fundamental) quanto o imagético, com a publicidade tendo um papel importante na produção e reprodução de rostos, estilos e modos de vida que quebram as monocórdicas representações usualmente oferecidas. Um gatilho interno foi acionado e uma autoestima transformadora, também embalada por vários programas sociais, eclodiu. Isso, como bem lembrou a cientista social Suellen Guariento, não vai ter retorno. O que essa gente também aprendeu é que a visibilidade transformadora também mata. Gays, lésbicas, pretos e nordestinos sempre estiveram aí, mas subalternos, discretos. Agora que elas e eles não só existem, mas aparecem, suas vidas correm (mais) risco. É essa presença que incomoda. É a possibilidade de dividir espaços – de dividir poder, enfim.

Como essa é uma presença sem volta, é melhor se acostumar e parar de reclamar. Chega do coitadismo de sudestinos, héteros, brancos e homens.

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