Da primeira reunião no Ministério da Saúde até a revelação de pressões sobre um servidor para acelerar a viabilização da compra da vacina indiana Covaxin, a CPI da Pandemia segue as pegadas que podem levar o escândalo ao colo de Jair Bolsonaro. O único contrato de imunizante contra Covid-19 que teve o empenho do presidente foi fechado em tempo recorde e pelo maior custo – tomou oito meses a menos que a negociação com a Pfizer, fechada por dois terços do preço.
“Pessoal diz que eu tenho que ir atrás. Não, não. Quem quer vender, se eu sou vendedor, eu quero apresentar.” Foi assim que Bolsonaro, em 28 de dezembro, disse que os fabricantes de vacinas é que deveriam procurar o governo brasileiro. Duas semanas depois, resolveu se empenhar pela aquisição de imunizantes. Não aqueles com autorização sanitária mais avançada – a Covaxin até hoje não tem autorização definitiva da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Bolsonaro escreveu em 8 de janeiro ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, pedindo seu empenho no envio da vacina indiana, da empresa Bharat Biotech, além de doses da AstraZeneca produzidas naquele país.
Foi a primeira e única vez que se soube que Bolsonaro fez alguma gestão para aquisição de imunizantes para o Brasil – nos bastidores e em público, ele sempre agiu para boicotar a imunização. Funcionou.
Em 11 de fevereiro, os vendedores perguntaram que quantidade de doses o governo brasileiro compraria. No mesmo dia, o Ministério da Saúde respondeu que seriam 20 milhões. A Pfizer mandou o primeiro de 101 e-mails ao governo brasileiro em 14 de agosto de 2020 tratando da oferta de doses, mas só teve retorno dois meses e meio depois, em 26 de outubro, quando foi marcada uma reunião virtual. O contrato da Covaxin foi fechado em 25 de fevereiro, após 15 contatos em 97 dias de tratativas, iniciadas em novembro de 2020. O acerto com a Pfizer foi assinado em 19 de março, 330 dias e 184 contatos depois.
Assessores parlamentares esperam conseguir caracterizar no mínimo crime de prevaricação de Bolsonaro, uma vez que o presidente foi informado das anomalias do acordo, porém não tomou providências.
A assessoria do senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI, prepara materiais organizando o que os documentos já obtidos revelam e apontando os pontos nebulosos a serem esclarecidos nas próximas semanas, a começar pelo depoimento dos irmãos Luís Miranda, deputado pelo DEM do DF, e Luís Ricardo Miranda, servidor do Ministério da Saúde, que relatou pressões incomuns pela compra da Covaxin, marcado para esta sexta-feira, 25 de junho.
Um ponto central é a atuação da Precisa Medicamentos, uma empresa que não faz parte da indústria de vacinas, mas intermediou a compra da Covaxin – e teria com o negócio lucro de 1,6 bilhão de reais. Foi o único contrato de vacina para Covid-19 viabilizado por terceiros. O sócio administrador da Precisa, Francisco Maximiano, investigado em outro contrato com o Ministério da Saúde, presidiu a comitiva de clínicas de vacinação que foi à Índia para conhecer as instalações da Bharat Biotech. Na comunicação feita pela embaixada de Nova Delhi ao Ministério da Saúde sobre a comitiva, a diplomacia relatou que Maximiano disse pretender acabar com o “oligopólio” das vacinas no Brasil – inclusive da Pfizer. O comunicado da embaixada chegou ao Itamaraty no dia 7 de janeiro, um dia antes de Bolsonaro mandar a carta a Modi.
A CPI quebrou os sigilos telefônicos e telemáticos de Maximiano, que já é investigado pelo contrato da Global Gestão em Saúde, da qual também é proprietário, em que não entregou medicamentos comprados pelo Ministério da Saúde durante a gestão de Ricardo Barros, hoje deputado federal pelo PP do Paraná. Nos bastidores do Senado, comenta-se sobre a proximidade de Maximiano com o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente e adversário de Renan Calheiros.
No dia 17 de fevereiro, uma semana antes da assinatura do contrato da Covaxin, o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello anunciou o cronograma de entregas da vacina indiana: 8 milhões de doses em março, 8 milhões em abril e 4 milhões em maio. No dia 25, o governo assinou o contrato de compra: 20 milhões de doses a 1,6 bilhão de reais. O montante corresponde a 80 reais por dose, ou 15 dólares – a unidade da Pfizer custa 10 dólares. Até agora não chegou nenhum lote de Covaxin ao Brasil. Em nota, o Ministério da Saúde disse que empenhou (reservou) o valor, mas não o repassou efetivamente.
Maximiano voltaria à Índia no dia 5 de março e, segundo os documentos da CPI, afirmou que a Precisa faz os contatos com o Ministério da Saúde, mas a fabricante é quem receberá os pagamentos. No dia seguinte, a pasta pede à Precisa para aumentar o lote para 50 milhões de doses.
O descumprimento dos prazos de entrega e outras anomalias do contrato geraram suspeitas. Luís Francisco Miranda, servidor do Ministério da Saúde, contou ao irmão sobre as pressões que sofria para agilizar a transação envolvendo a vacina indiana, e o deputado Luiz Miranda foi com ele até Bolsonaro relatar o caso no dia 20 de março. O presidente disse que encaminharia tudo à Polícia Federal, mas não há informações sobre uma investigação ter sido aberta.
No dia 26 de março, o Itamaraty – então comandado por Ernesto Araújo – mandou um documento à embaixada em Nova Delhi pedindo pressão junto a autoridades indianas para que liberassem documentos requeridos pela Anvisa para iniciar a importação. No dia 29 de março, contudo, a agência negou a certificação de boas práticas da Bharat Biotech, alegando que a fábrica não garantia a esterilização do imunizante nem tinha controle adequado da pureza da vacina. No dia 31, a Anvisa barrou a importação da Covaxin.
No mesmo dia, o Ministério Público Federal colheu o depoimento de Luís Francisco Miranda sobre a condução atípica do processo até a compra da Covaxin – cujo teor foi compartilhado com a CPI. Os irmãos falarão à CPI na sexta – Maximiano deveria ter prestado depoimento à comissão do Senado na quarta-feira, 23 de junho, porém ele não compareceu por estar de quarentena após viagem à Índia, segundo seus advogados.
Em defesa do governo Bolsonaro, o ministro Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral) afirmou que as acusações são falsas, que o deputado cometeu o crime de denunciação caluniosa, que o irmão do deputado prevaricou. Onyx acionou a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Controladoria-Geral da União para investigá-los e garantiu que ambos “pagarão por isso”. Ele não mencionou se os órgãos de controle foram acionados por Bolsonaro para apurar a suspeita de corrupção na compra da Covaxin. Renan Calheiros estuda pedir a prisão de Onyx por coação de testemunha.