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questões cinematográficas

O descontentamento de Eduardo Escorel

Vai transcrito a seguir, na íntegra e sem comentários, texto do roteirista e produtor Alberto Flaksman, recebido pelo editor do blog. [EE]
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Este é o verão do descontentamento de Eduardo Escorel. Segundo ele, tudo vai mal no cinema brasileiro, o que pode ser demonstrado a partir de três teses e uma questão:

| 15 fev 2012_16h08
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Vai transcrito a seguir, na íntegra e sem comentários, texto do roteirista e produtor Alberto Flaksman, recebido pelo editor do blog. [EE]

Este é o verão do descontentamento de Eduardo Escorel. Segundo ele, tudo vai mal no cinema brasileiro, o que pode ser demonstrado a partir de três teses e uma questão:

1. o cinema argentino e o iraniano são “muito superiores” ao brasileiro;

2. criamos um “monstrengo burocrático” – leia-se a ANCINE – que “tolhe a criatividade” dos cineastas;

3. o cinema brasileiro é “irrelevante”.

4. finalmente, diante desse quadro tenebroso, Escorel se pergunta por que fazer filmes.

Do cinema iraniano, conheço apenas Kiarostami, Panahi e, recentemente, Farhadi, que nos deu o belo A Separação. É pouco para me estender sobre o assunto. Agora, dizer que os filmes argentinos são melhores que os brasileiros é com certeza uma rematada besteira. De quais filmes estamos falando? Alguém já viu algum filme argentino de ação melhor que Cidade de Deus ou os dois Tropa de Elite? Ou algum documentário melhor que Janela da Alma ou Santiago? Alguns filmes que tratam dos dramas e frustrações do cotidiano da classe média argentina são de fato muito bem escritos e interpretados, e por isso encontraram justo reconhecimento no Brasil. Ao passo que, no nosso país, esses temas parecem infelizmente ter sido esquecidos pelos cineastas patrícios, embora sejam degustados com deleite pelo público das telenovelas e minisséries televisivas.

A comparação generalizada enfraquece Escorel como crítico. Passando dos filmes aos livros, é possível dizer se a literatura argentina é melhor ou pior que a brasileira? Borges, Bioy Casares e Cortazar, ou Machado, Rosa e Jorge Amado? E na música, Tom Jobim ou Astor Piazzola? Com base em quais critérios se pode responder? E para que serve mesmo essa comparação? Argumentos como a de Escorel caem melhor em rodas de discussão sobre futebol.

Para se justificar, Escorel recorre a uma tentativa de explicação de Luiz Paulo Horta, segundo quem o “sentimento trágico da vida”, presente no espírito dos argentinos, seria a causa primeira da sua superioridade artística. Essa ideia é divertida, mas inconsequente. Horta, geralmente um ótimo articulista quando escreve sobre música ou religião, dessa vez derrapou. Mais consistente seria lembrar que, já no início do século 20, a Argentina era o sétimo país mais rico do planeta, com uma renda per capita superior à da França, Itália, Japão e Canadá, entre outros países, e não muito distante da renda per capita dos Estados Unidos. Nos anos 40, quando a grande maioria da população brasileira ainda vivia no campo e era extremamente pobre, o índice de analfabetismo na Argentina já era próximo a zero. Nos anos 60, havia mais livrarias em Buenos Aires do que em todo o Brasil. Todos esses indicadores, e ainda a beleza arquitetônica da capital argentina e a evidente qualidade da sua produção de alta cultura, são muito mais o resultado de políticas de imigração muito bem sucedidas e da riqueza produzida por uma agricultura e pecuária altamente produtivas, na primeira metade do século passado, do que do “sentimento trágico da vida”, mais uma dessas generalidades pseudo-filosóficas que não explicam nada.

É verdade que durante a fase mais negra da ditadura militar no Brasil, o Cinema Novo mostrou ao mundo que a nossa capacidade de criação ainda permanecia viva. Mas parece que para alguns de nossos artistas o fim da ditadura representou o estiolamento da única fonte de inspiração. Como alguns outros veteranos cineastas brasileiros, Escorel busca freneticamente novos inimigos que talvez possam fazer rebrilhar os seus galardões de antigo combatente e voltar a emprestar legitimidade à sua voz e ao seu trabalho. Esses cineastas acreditam que a opinião negativa, a visão depreciativa – que não se confunde com a crítica inteligente – e uma boa dose de autoflagelação em público são características inescapáveis dos verdadeiros intelectuais.

Essas são as atitudes que se encontram na origem das declarações de Escorel sobre a ANCINE. Depois de manifestar de início o seu pesar pela morte de Gustavo Dahl, Escorel se atira com gosto na destruição daquela que foi a última e mais importante obra de Gustavo, este sim um lutador incansável e otimista incorrigível.  Foi esse “monstrengo burocrático”, criado e presidido por Gustavo em seu período inicial, que fez com que o número de filmes brasileiros lançados nos cinemas passasse de 30 a quase 100 em dez anos. Que permitiu o surgimento de dezenas de novos profissionais de cinema no Brasil, a produção de grandes sucessos de bilheteria, a premiação de filmes brasileiros em grandes festivais internacionais.

Nada disso vale para Escorel. Ele não gosta dos sucessos de público, mas se queixa que os filmes dos seus amigos não conseguem chegar a esse mesmo público. Essa frustração o leva a utilizar a mídia ou qualquer outra tribuna para atacar de maneira genérica e sem qualquer tipo de argumentação sólida o conjunto das políticas públicas destinadas ao desenvolvimento do cinema brasileiro. Estudar e discutir essas políticas a sério dá muito trabalho, Escorel e seus amigos não têm paciência para tanto. Mais fácil e cômodo é criar expressões de vezo populista, como “monstrengo burocrático”, e usá-las para fazer valer os seus pontos-de-vista. Historicamente, já sabemos que o resultado dessas acusações tem sido o enfraquecimento do nosso cinema e a destruição das suas instituições. Basta ver o que já aconteceu com o INC e a Embrafilme.

Discursos como o de Escorel em Tiradentes e seu texto original no blog da piauí servem apenas para inocular o pessimismo e disseminar uma visão derrotista no conjunto do cinema brasileiro e, temo, principalmente entre os jovens que aspiram a se tornar profissionais de cinema. Como entender de outra forma a sua declaração sobre a “irrelevância” do cinema brasileiro como um todo? O cinema argentino é relevante? E o cinema francês, ou o italiano, ou o alemão, ou o americano, são relevantes? O que Escorel desconhece ou finge não saber – o que é grave, em se tratando de um crítico – é que talvez o cinema como um todo esteja deixando de ocupar o lugar central que deteve, entre todas as manifestações artísticas e culturais, do pós-guerra até o final dos anos 70. Essa, sim, é uma discussão que vale a pena travar, mas não no tom de amargura proposto por Escorel.

A última dose de veneno do texto letal de Escorel é a sua pergunta “por que e para que fazer filmes”. Os índios navajos são convocados para dar legitimidade a essa questão, que Escorel considera “fundamental”. Aí minha santa paciência com as bobagens emitidas no tom grave de quem formula pensamentos profundos. Como é que ninguém ainda, antes dos navajos e Escorel, tinha se perguntado igualmente por que e para que os livros são redigidos e publicados, peças de teatro são escritas e montadas, músicas são compostas e interpretadas, quadros são pintados e expostos, algumas pessoas dançam, outras cantam, outras jogam vôlei na praia e a minha avó assava uma maravilhosa torta de maçã?

Agora, graças a Escorel, foi dada a partida para a pesquisa de tão urgentes matérias. Na minha humilde incapacidade de filosofar nessas profundezas, acho mais interessante e útil nos perguntarmos por que e para que Escorel escreve semelhantes textos.

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